Salvador no Brasil: a série que gravei com o Salvador Martinha

A 20 de Outubro de 2011, recebi uma mensagem do Salvador Martinha no Facebook dizendo que me queria lançar um repto. Conhecia o Salvador mais ou menos. Tínhamo-nos cruzado uma ou outra vez quando trabalhei nas Produções Fictícias e sempre me pareceu bem disposto (há quem não saiba que isso não é regra entre humoristas) e bastante profissional. Porém, não o conhecia a ponto de poder assegurar que era uma ótima pessoa. Hoje, posso fazê-lo.

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O repto que o Salvador me lançou foi gravar um documentário sobre a tournée que ele planeava fazer pelo Brasil. Logo disse que sim. Nunca me considerei humorista, mas trabalho muito com humor no que faço. Estou próximo o suficiente para entender o universo de quem, noite após noite, se submete ao julgamento imediato do público pronunciado nos cruéis termos de rir/não rir. Em Portugal, os humoristas não são tratados com seriedade. Um documentário como o Comedian seria impossível há uns anos na Tugalândia. Fazer o Comedian português sobre a tarefa hercúlea que o Salvador Martinha se propôs - um português, no Brasil pela primeira vez, a fazer rir os brasileiros com um texto construído in loco - era um desafio ao qual não podia dizer que não.

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O Canal Q bancou-nos o projeto, com um previsível orçamento reduzido. Não podiamos garantir resultados, só força de vontade. Ajudou o fato de eu ter acabado de começar a morar sozinho quando ele chegou. O Salvador entrou numa casa nova, sem móveis, que nem eletrodomésticos tinha (aliás, ele testemunhou a chegada de alguns deles). Nunca uma queixa lhe saiu da boca. Ficamos amigos imediatamente e, durante 3 semanas, gravei-o dia e noite. Gravei-o a escrever, a dormir, a comer, a tomar banho, a dar os espetáculos, a descobrir a cidade, a entrevistar alguns dos humoristas mais conhecidos do Brasil. Ajudei-o com as palavras que deveria evitar, com as punchlines que deveria preferir. O Salvador entrou no meu círculo de amigos aqui. Foi muito divertido e, no final, os resultados viram-se. Com dezenas de horas gravadas, a descoberta de um mundo novo, o confronto do comediante com o público e os vaivéns do processo de construção do texto ficaram registadas como nunca antes se viu em português.

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A série que acabou sendo transmitida pelo Canal Q enche-me de orgulho e tenho que dar um agradecimento especial ao Nuno Alberto, que nos emprestou a câmara principal com que gravámos, e ao Tiago Câmara, que navegou pela imensidão do hard drive que seguiu para Portugal e com esse material criou grandiosos episódios. Espero que esta série ajude a mudar a imagem que alguns portugueses têm sobre os brasileiros e a que alguns brasileiros têm sobre os portugueses. E, acima de tudo, espero que ela ajude a mudar a imagem que a generalidade do público tem sobre a profissão de humorista.

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Sobre o Bloco do Eu Sozinho de Los Hermanos

Pensamentos e observações enquanto ouvia um disco completo de Los Hermanos pela primeira vez. Para a escuta, tinha as músicas e as letras e nada mais. Portanto, se aqui houver incorreções por falta de informação, considerem que não pretendo fazer uma crítica, mas tão só registar uma experiência. Mais explicações aqui.

COISAS PRÉVIAS
"Bloco do Eu Sozinho" é um título interessante e bem revelador daquilo que imagino que a banda queira dizer: à alegria e multidão associadas aos blocos de Carnaval contrapõem a introspeção, o sentimento, o pensamento. O diabinho dentro de mim espeta a forca e pede-me para lhes chamar maricas e chorões, mas não me vou deixar render já aos pensamentos maliciosos.

(começo a tocar o disco)

Todo Carnaval Tem Seu Fim
Considerando o título do disco, faz todo o sentido que se comece com esta canção. Um trompete interessante, que lembra algo dos Beatles. Por momentos parece algo perdido, mas suponho que conquista o seu espaço no final.
Há uma coisa que sempre notei nalguma música brasileira: usa muitas palavras, fazendo fácil falar muito sem dizer nada. Versos como "Todo dia o dia não quer raiar o sol do dia" ou "Toda rosa é rosa porque assim ela é chamada" não me fazem mudar de opinião. E alguém me explica porque é que, para esta gente, brincar de ser feliz significa pintar o nariz? Estranho.
O que é isto que oiço no final? Parece o concerto de Aranjuez. Um momento para respirar. Vamos ver o que segue.

A Flor
Uma típica canção de dor de corno pop rock. Los Hermanos parecem ser ao mesmo tempo melancólicos no sentimento e de uma fúria contida no som, mas acho que isso empobrece mais do que enriquece. Marcelo Camelo é como um narciso que prefere curtir a doçura da própria dor e se perde dentro dela. Assim a coisa nem fica realmente triste nem realmente furiosa.

Retrato para Iaiá
Um começo meio ska e lá vem o rapaz dizer como se enganou com a tal mulher e o catano. O refrão chega, o rapaz grita e as guitarras ficam mais lentas e poderosas. A secção de metais é muito interessante. Olha isto aqui a meio, parece um oboé flutuante. E a bateria, tem uns breaks interessantes, bem independente e solta.

Assim Será
Os metais dão um início do caraças. É o melhor que ouvi até agora. Ficaria a ouvir esta secção horas e horas, dispensava o resto... não, espera, que lá vem o rapaz outra vez dizer que está triste. Ele vai-se embora porque sabe que a mulher de quem ele gosta vai ser mais feliz sem ele. Será que é porque ela já não o aguenta ouvir dizer coisas como "seu fel fenecerá em nome de nós dois"? Como eu a entendo. Uma guitarra que lembra bons momentos de Ornatos Violeta, uma percussão samba e um final em que o baixo e a guitarra se enrolam numa dancinha latin jazz bem agradável até uma batida seca na tarola prenunciar...

Casa Pré-Fabricada
...o início duro de Casa Pré-Fabricada. Viva Weezer. Pelo menos o rapazola já diz "tristeza nunca mais", apesar de o seu "pranto" valer "esse canto em solidão". Ora sim. Um break acelerado da bateria é logo cortado para entrarmos noutro verso, e repete-se o refrão. Esta gente tem vergonha de se soltar? Vamos lá, rapazes, mostrem lá do que são capazes.

Cadê Teu Suín?
Que bela secção de metais, pá. Parece que Beirut ouviu isto para fazer lá o álbum mexicano dele. A última sílaba de cada verso é cortada para colar com a do seguinte, num exercício formal muito interessante. A flauta saltita lá atrás durante o refrão, o arranjo é fabuloso. Apesar de o título só me fazer pensar nos porcos que o meu avô tinha, é até agora a canção que me conquistou e que claramente ouviria de novo. O cantor começa a divertir-se no final, enrolando-se com os sopros. Bom, muito bom.

Sentimental
Não poderia ter outro nome: um início lento, em que os instrumentos se vão encontrando uns aos outros e a si mesmos. Quase pós-rock, mas logo faz a sua concessão ao rock fm, com as guitarras a rasgar no refrão. Pessoal, o Manu Chao já tinha gasto o estoque de vozes tipo rádio no meio de canções e de um jeito bem mais inventivo. Como é? Assim fica aquém, ok?
Bem, o rapaz já deixou bem claro que não vai ser neste álbum que ele se vai alegrar. Aliás, rir para ele é só fingimento e ocultação da tristeza. Está no seu direito e já bons artistas se fizeram assim, antes e depois de Los Hermanos (Bon Iver vem logo à cabeça). Mas se queres ser triste sê mesmo, porra, chora e faz-nos chorar as pedras da calçada em vez de andares para aí nesse ganha-força-perde-força, nessas explosõezinhas bestas de raiva ocasional. Chora ou enfurece-te, meu, escolhe.
Este final, em que os instrumentos ganham saliência de novo, sombrio e problemático, é interessante.

Cher Antoine
Bonito e engraçado, este mix de chanson française. E olha a guitarra elétrica disco! Ahahahah. Pedaços soltos por cima de uma toada uniforme . Sentido de humor, que era algo que ainda não se tinha ouvido muito. O gajo diz "e confundir", e vem uma explosão quase Queen! E pura loucura disco no final, com slapzões no baixo e tudo! Sim, senhor, curti.

Deixa Estar
Ambiente interessante. Parece que estamos no circo, bem no meio do picadeiro. Então porque é que o homem continua a falar do amor e de estarmos juntos na distância e na discrepância do destino? Porra, que chato. Se estamos no circo, fala de elefantes. Ou, pelo menos, de amor a elefantes. A banda é definitivamente bem calibrada, mas o Marcelo Camelo é monótono em temas e imagens líricas e registo vocal. Alguém o devia avisar que os colegas dele conseguem tocar várias canções, para ele não ficar a cantar a mesma do início ao fim.

Mais Uma Canção
Tuba? Uma tuba?! Estou fascinado. Nada a dizer, uma bela e simples canção pop, sem que o Camelo se perca dentro dele mesmo e caia lá nas viagens líricas dele. E tem até um pífaro, tipo Fool on the Hill, mas ainda mais näif, a transportar para um coro de homens bêbedos que cantam à desgarrada. Só apetece agarrar um amigo e cantar também. É isto o que a música deve fazer.

(pausa para um cigarrinho, já volto, ok?)

Fingi na Hora Rir
Uuuuuuh, entramos no domínio do noturno e da guitarra a fazer barulho. Mas espera aí um coche, que o Camelo tem que dizer outra vez que a alegria para ele é só fingida, porque houve uma mulher que o fodeu e em quem ele não consegue deixar de pensar. Parece a história de um amigo meu, mas isso são outros assuntos.
Olha como ele suspende, se ouve um acorde solto de piano, ele diz mais alguma coisa e as guitarras arrebentam. Banda definitivamente muuuuito bem afinada, melhor do que o motor de um Rolls Royce. Final em crescendo, raiva, fúria. Talvez seja por também já não aturarem o vocalista.

Veja Bem, Meu Bem
Bom. Um tango eletrificado, mas se eles começarem a rasgar no refrão, eu juro que arranco os fones da cabe… não, não rasgaram. Ainda bem. Só uma guitarra mais forte a meio, que combina com a confissão "a solidão deixa o coração neste leva-e-traz". Belo momento lírico, que condensa tudo o que o homem esteve a dizer até agora e com um toque de ironia que só lhe fica bem. Um grande remate, "Se eu te troquei não foi por maldade… amor, veja bem, arranjei alguém chamado saudade", a banda rasga - agora, sim -, mas para um solo de trompete e não para um gritinho pseudo-dolorido do cantor. Novo refrão, nova tranquilizada, novo solo de trompete, o resto dos metais a juntar-se. Belíssima canção.

Tão Sozinho
Eh lá! Viva o punk! Bora, pessoal. Mas, calma aí, vão devagar. Pensam que o Camelo é o Rodolfo Abrantes? O homem ainda se vai cagar todo, pá! Olha ele aqui a tentar gritar. Ahahahahah. Muito engraçado. Até há um gajo a rir-se no final. Deve ter pensado o mesmo que eu. Ou então o Camelo mordeu a língua e ficou louco por provar sangue pela primeira vez.

Adeus Você
Tipo, é a última canção e chama-se Adeus, topam? Golpe de gênio! Concentra tudo o que o disco mostrou: banda ótima, vocal monótono, letras sobressentimentalizadas, metais do outro mundo. Aliás, pá, quem fez os arranjos disto? Quero esta secção de metais todos os dias a entrar no meu quarto de manhã para me acordar! Que coisa fabulosa. E um cheirinho, um cheirinho só de violinos meio dissonantes no fim, só para mostrar que ouviram os Beatles todos e curtem esta mistura entre música erudita e popular. Nada mau.

CONCLUSÕES
Los Hermanos são uma banda pop-rock. E, admito, são uma boa banda pop-rock. Não boazinha - boa mesmo. "Bloco do Eu Sozinho" é uma espécie de triste celebração da solidão depois de uma relação fracassada. Relação-alegria-Carnaval vs. solidão-tristeza-fim parecem ser as linhas de tensão que estruturam a coisa. É eclético, variado, com músicos alinhadíssimos e a procurarem soluções imaginativas. Pelo menos neste disco, têm uma secção de metais incrível e arranjos francamente geniais, que a momentos me lembraram muito a Mesa, de Sérgio Godinho. Porém, isso não chega para me distrair do fato de que a banda parece sempre tocar mais do que aquilo que canta. A unidade das letras, o conceito, se quisermos considerar assim, é conseguido, mas não sem muita repetição, floreado e batidas na mesma tecla. Uma tecla que se chama "sentimento" e "narcisismo". Isto não é uma crítica ao tom em si mesmo, mas à falta de variação com que ele foi apresentado. Ouvi Bloco do Eu Sozinho com gosto apesar do vocal, e não também por ele, como deveria ter sido. Depois deste disco, iria ver um show de Los Hermanos? Iria. Esta banda, estes metais, estes arranjos merecem uma visita. Ainda não estou apaixonado, é verdade, mas já aceitaria ir jantar lá a casa e ver o que rola.

Os Los Hermanos baterem-me


Há uns tempos, sonhei com um novo projeto artístico. Seria um grupo de hip hop, que só faz versões da banda Los Hermanos. Chamar-se-á Os Manos.

Quem me conhece sabe que eu não tenho grande apreço por Los Hermanos e por isso é que faço piadas sobre eles. Nem é o caso de ter ficado mal impressionado com o êxito de "Ana Júlia". A verdade é que para mim a banda carioca faz parte de um grupo de gente talentosa com uma visão artística que me irrita. Aparecem-me no mesmo saco de Miranda July, a quem só me apetece dar um murro na cara e dizer que não há uma beleza trágica em tudo no mundo.

É como alguém que achamos bonito, mas com quem não queremos mais do que amizade. O que ouvi não me apaixonou, mas também não posso dizer que conheça a obra da banda bem o suficiente para me conseguir defender. Por isso, em nome da justiça, decidi submeter-me a uma experiência. Vou ouvir o "Bloco do Eu Sozinho"; álbum de 2001, do início ao final, registar tudo o que estiver a pensar e postar aqui amanhã. Assim pelo menos poderei dizer que o meu juízo é fundamentado. Ou, pelo menos, terei um link para enviar.

Roberto Freire e a ignomínia


Roberto Freire é um político de carreira, que já foi candidato à Presidência da República em 1989 e que em 1992 fundou o Partido Popular Socialista, de Terceira Via e opositor dos governos do PT. Hoje ele leu um artigo no site G17, que dizia Dilma pede e Banco Central coloca em circulação notas com a frase "Lula seja louvado" e, sem saber que o site publica notícias satíricas, ele postou isso no seu Twitter, classificando a ação de "ignomínia".

Até aí tudo bem. Por muito que nos custe acreditar que políticos também podem cometer erros, a verdade é que os fazem de vez em quando. Agora, o que não se entende é a insistente amargura que sai dos tweets posteriores de Freire. Apesar de décadas de vida pública, ele parece empenhado em responder a toda e qualquer provocação de todo e qualquer tweetador, bloqueando seguidores, "insistindo para poder responder aos que pertencem ao mundo digital" e pedindo desculpas porque, segundo ele, "nos tempos imorais lulodilmistas tudo é possivel".

Entre isto e o caso da Carolina Dieckmann, há por aí alguma síndrome esta semana que impede as pessoas de perceberem a real importância do que fizeram, cagarem de alto e deixarem os cães ladrar enquanto a caravana passa? É impressão minha ou anda tudo muito preocupado com aquilo que os fait-divers da vida fazem os outros pensar?

A poética dos dedos de Tony Iommi


Tony Iommi é o guitarrista dos Black Sabbath e, como saberá qualquer um que fazia parte das gentes que faziam rodas de violão e tinham cabelo comprido, ele perdeu duas falangetas da mão direita enquanto trabalhava numa fábrica. Ele pensou que isso o impediria para sempre de tocar, mas ele colocou umas próteses plásticas, o que acabou por definir a guitarra dos Sabbath: riffs grandiosos e lentos (já que ele não conseguia tocar muito depressa), e um som pesado, que as novas pontas postiças dos dedos facilitavam, porque, sendo canhoto, conseguia bater as cordas com muito mais força do que qualquer outro guitarrista.

Agora, pensemos: os Black Sabbath são de Birmingham, cidade fortemente industrializada, onde as opções eram ser operário de fábrica, patrão de fábrica, dono de fábrica - e para os membros da banda só a primeira era viável. O som deles é repetitivo e grande, tal como o barulho de máquinas industriais produzindo sem parar, e esta influência não é só deles. Já ouvi o James Hetfield dos Metallica, que trabalhou numa fábrica quando era puto, dizer exatamente a mesma coisa e até a expressão "heavy metal" foi criada, ao que parece, quando um crítico disse que a música do Jimi Hendrix era como "heavy metal falling from the sky".

Ou seja, há uma ligação direta entre o metal da indústria e o da música, como se este fosse a consequência musical no século XX da Revolução Industrial do século XIX. E nada incorpora tanto essa ligação como os dedos de Tony Iommi. O acidente que ele sofreu e o que ele conseguiu fazer com ele transformaram-no em História feita em corpo. E isso é bem bonito.

As fotos íntimas de Carolina Dieckmann


A atriz Carolina Dieckmann apareceu nua em fotos que supostamente foram tiradas com o seu celular. Golpe de marketing ou não, não consigo deixar de pensar: porque é que achamos isto interessante? Reparem, isto não é uma crítica, é mesmo uma pergunta. Nós já vimos Dieckmann nua, ela já fez fotos sem roupa, não é nem por sombras a pessoa mais coberta do mundo. Então: mais do que o que diz sobre ela que se divirta a tirar fotos sem roupa, o que diz sobre nós que queiramos tanto ver e falar sobre isto?

Eu acho que diz que já acreditamos em muito pouca coisa. Nós somos pessoas, temos impulsos e um deles é gostar de ver gente boa sem roupa. Mas há no meio disto tudo uma espécie de cheiro a desespero. Nada do que vemos na tv, no cinema, na Internet ou nas revistas é verídico. Tudo é fabricado, até os corpos. E nós sabemos disso. É por isso que corremos para o Google depois de sabermos que estas fotos existem. Não tanto para ver Carolina nua, mas para perceber que uma pessoa de um universo que nos está sempre a querer vender tipos de beleza e de comportamento e de consumo, que nos está sempre a dizer "estas pessoas são melhores do que tu porque são ricas, compram estas marcas, fazem estas coisas caras e são bonitas e educadas, e tu vais acreditar porque nós dizemos", é igual a nós. Carolina Dieckmann é o que menos importa no meio disto tudo. A verdade é que, sem estes escapes no meio da farsa das imagens, não poderíamos continuar a participar dela e sentirmo-nos humanos ao mesmo tempo.

Meu amor artificial de plástico

Como há dias escrevi sobre música e uma desgraça nunca vem só, vou fazê-lo mais um pouco. Deu-se o caso de na 2a feira ter ido ao Studio SP ver os Radiolarians, de André Frateschi, uma banda que parece ter um pouco de receio de admitir que é uma banda cover de Radiohead, o que é desnecessário, porque, não só são uma belíssima banda, como fazem belíssimos covers. Já mais para o final, eles fizeram-me o favor de tocar isto.

httpv://youtu.be/4B0KfEGNKDw

Foi tipo biscoito do Proust. Recuei para Novembro de 2011. Estava em Londres, numa cafetaria de Camden com vista para o canal. O Jorge estava a mostrar-me a cidade. A dada altura, ele foi à casa de banho e eu fiquei a olhar pela janela. Havia pouca gente e estava a tocar uma compilação de Radiohead. De repente, essa canção começou.

Sabes aquele tipo de momentos bem, bem simples, que poderiam acontecer a qualquer hora, mas por qualquer razão, são tão perfeitos, tão perfeitos, que nada poderá estragar a lembrança que deles tens? Aqueles em que parece que não há merdas dentro de ti, que não há merdas no mundo e o tempo faz um parênteses? Foi um desses momentos. Pensei "estou em Londres, à beira do canal. Está tudo calmo, a água corre no escuro, ainda tenho um pouco de café. Estou sozinho. E está a tocar Radiohead. Estou em Londres e está a tocar Radiohead. Foda-se".

Como conheci Fernando Lopes

Estive com Fernando Lopes duas vezes. A primeira foi há 13 anos, no festival dos Caminhos do Cinema Português, em Coimbra. Ele tinha 63 e parecia ter 50. Foi lá para ser homenageado pela carreira. Houve uma retrospectiva, que passou todos os filmes dele até então. Eu era da organização, por isso deveria era ter estado na organização a organizar coisas, mas caguei. E não me arrependi, porque, se não o tivesse feito, não teria visto "Uma Abelha na Chuva", que é o melhor filme português de sempre juntamente com o "Belarmino" (também dele) e "Noite Escura" (do Canijo) e que tem esta discussão, das mais bem filmadas que alguma vez vi.

httpv://www.youtube.com/watch?v=CAgBCiCyt-o

Lembro-me que ele gostava que nós, putos, o tratássemos por "tu". Perguntei-lhe porque é que ele punha a "Sabor a Mi" em todos os filmes. Ele olhou-me, sorriu semicerrando os olhos e disse "aaah, isso é um fetiche, pá..."

A segunda vez que estive com ele foi em 2007, quando gravei este vídeo para a iniciativa das PF Os 50 Melhores Programas de Sempre.

http://rd.pftv.sapo.pt/play?file=http://rd.pftv.sapo.pt/ND0Edm7rKoe7zA29y08U/mov/1

Gravamos em casa dele e ele foi o mais simpático e afável que se pode ser. Já não parecia ter dez anos a menos. O peso da idade já tomara conta dele, mas ainda tinha toda a majestade de quem, depois de décadas de prática, domina todas as ferramentas da sua arte. Um verdadeiro mestre. Era suposto ter ido ao colóquio que finalizava a iniciativa, mas depois não pôde. Nunca mais estive com ele.

Fernando Lopes, falecido ontem, foi o realizador do Cinema Novo com quem mais senti empatia, quer pelas influências anglosaxónicas, quer pela obra em que as verteu. Ele nunca me iria reconhecer, mas gosto de acreditar que tinha lembrança de, um dia, em Coimbra, um fascinado miúdo de 18 anos lhe ter perguntado o porquê do Sabor a Mi. As probabilidades são pequenas. Mas é nisso que gosto de acreditar.

O Pingo Doce e as doces hipocrisias

Admito, eu sou uma pessoa de esquerda. Naturalmente, vim-me a considerar assim. Nunca fui doutrinado para acreditar em nada, mas, ao longo da vida, acabei por perceber que partilho as coisas que me parecem de bom senso e razoáveis mais com pessoas de esquerda do que de direita. Então, tudo bem, serei de esquerda. Mas eu não tenho saudosismos de uma época que não vivi e acredito numa economia livre regulada pelo Estado. Então, fico com algumas perguntas sobre os tumultos que aconteceram no Pingo Doce por este ter feito um desconto de 50% no 1º de Maio a quem fizesse compras de mais de 100 euros.

httpv://www.youtube.com/watch?v=NY-jf86ODt0&feature=player_embedded#!

Primeiro, houve produtos vendidos abaixo do custo? Se não, não há nada a dizer, tirando o fato de, se for assim, pela lógica o Pingo Doce estar a vender produtos com margem de lucro acima dos 50%, o que não será ilegal, mas não muito inteligente em tempos de crise. Eles não se parecem queixar de falta de compradores, por isso... Se sim, isso é dumping, mas será preciso perceber até que ponto é que a lei permite contornar essa regra numa promoção, o que foi o caso. Alguém pode explicar o que aconteceu e o que a lei diz sobre isto?

Segundo, os trabalhadores foram obrigados a trabalhar num feriado? Se sim, isso é terrorismo laboral e deve ser condenado. Se não, os trabalhadores foram voluntariamente fazer horas extraordinárias e não há nada a dizer. Alguém pode explicar o que aconteceu?

Terceiro, os trabalhadores foram compensados por terem feito horas extraordinárias? Se sim, é assim mesmo que tinha de ser. Se não, eles foram roubados e a empresa deve ser submetida à Justiça. Alguém pode dizer o que realmente aconteceu?

Em 2004, por um acaso, passei o 1º de Maio em França e surpreendeu-me o fato de estar tanta coisa fechada. Supermercados, lojas, tudo, até bares, o que era quase doloroso na cidade universitária onde estava. Mas não havia nenhuma razão honrosa e etérea para esse fecho. Simplesmente, em França as empresas têm que pagar três salários diários a quem for trabalhar no 1º de Maio (em qualquer outro feriado pagam dois) e isso não compensa para a maioria dos estabelecimentos.

O curioso neste caso do Pingo Doce é que tudo se trata de uma encantadora cadeia de hipocrisias. Os partidos de esquerda vêm pedir às grandes superfícias para respeitarem o 1º de Maio, mas aos olhos da lei este não é um feriado diferente dos outros. Porque é que elas têm que ter uma obrigação especial perante ele? Só porque sim? O Governo, que é esperto e anda à cata de dinheiro, invoca um moralismo semelhante para propor uma nova lei sobre promoções especiais, mas eu aposto que vão é querer criar uma taxa especial sobre os lucros assim conseguidos. Já a Jerónimo Martins, dona do Pingo Doce, vem dizer que fez a promoção para ser boazinha para as paupérrimas famílias portuguesas, o que também é um monte de tretas, porque ela não tem nenhuma obrigação de ser boazinha. Ela é uma empresa de comércio. Uma empresa de comércio quer vender para ganhar lucro. A questão é: as leis que regulam a prática foram cumpridas, sim ou não?

Seria agradável que alguém, de preferência sóbrio, viesse explicar melhor isto em vez de se andar para aí a fazer dramas e choradinhos sobre a educação e a angústia do povo português e não sei mais o quê.

O sorriso de Alex James


Para quem não sabe, Alex James é o baixista dos Blur. Sempre foi das figuras rock que mais me chamou a atenção, e o fato de ser um músico ótimo não tem muito a ver com o caso. Às vezes interessa-me mais a personagem que cada um é do que o virtuosismo com que toca. James é alto e no tempo da guerra Blur/Oasis, quando eu os conheci, o cabelo caía-lhe para a frente, tapando-lhe os olhos, enquanto ele dava à cabeça um abano dandy, completamente desfrutando todo o prazer que a vida do artista enquanto jovem estrela de rock lhe poderia proporcionar. Enquanto personagem, portanto, era ótimo.

A caraterística mais marcante de Alex James sempre foi o sorriso. Quando ele era novo e no crescendo da fama, este era irónico e afiado, como se não se importasse com nada do que estava a acontecer à volta. Era um sorriso arrogante, mas tão bon vivant que era impossível não sorrir também enquanto pensava "tu é que curtes, pá".

Agora, eu quero que entendam que houve sempre canções de Blur na minha vida, mas eu nunca fui um conhecedor profundo. Na verdade, o único álbum que eu tenho deles é o The Great Escape, precisamente porque era um puto com espinhas que queria saber mais sobre essa confusão toda do Britpop. Mas há um ano, numa altura em que estava muito triste, ouvi esta canção na casa de uma amiga.

httpv://www.youtube.com/watch?v=dgA_DlR8WsM&ob=av3n

Quando a música subiu na sala, com aquela espécie de slide miraculoso do Graham Coxon, perguntei-lhe "Isto é Blur. É novo?" e ela disse que eu era maluco e que a canção já tinha uns 12 anos. Desde então, ouço No Distance Left To Run sempre que preciso de consolo. Há uns dias, percebi que uma outra amiga estava muito triste e quis mandar-lha. Enquanto procurava a canção no YouTube, descobri que havia um documentário com o mesmo nome sobre o regresso da banda em 2009.

De novo, a primeira coisa que reparei em Alex James foi no sorriso. Mas agora, mais velho, mais tranquilo, o sorriso é diferente. Para além de aparecer com mais raridade, a arrogância e o hedonismo sumiram. Alex James, no fundo, sorri agora não como um rapaz convencido, mas como um homem, alguém que se feriu, cicatrizou e está mais tranquilo e mais conhecedor daquilo que o mundo é. E, enquanto ouvia as histórias sobre as zangas, o afastamento e a conciliação dos quatro, percebi algo que nunca tinha percebido antes: o regresso de uma banda não é só um reencontro entre eles, mas é também um reencontro de nós, que os escutamos, com eles, com aquilo que fomos quando os conhecemos e com aquilo que somos nesse momento.

É um lugar comum em poesia dizer-se que o leitor é também poeta, porque o significado final do poema só surge com aquilo que ele lhe acrescenta enquanto novo criador. Os Blur estão velhos e com as marcas da vida de músico no corpo, na cara, nos olhos. Mas, quando tocaram em Glastonbury e aquela multidão inacreditável que enchia o festival cantou Tender em coro e continuou a cantar depois de os instrumentos já terem parado de tocar, eles ficaram a olhá-la, pasmados.

Aquele coro estava cheio de vida: das vidas dos compositores que criaram a canção, mas também das vidas que aquelas centenas de milhares de pessoas tinham quando a ouviram e tiveram ao longo dos anos que a canção as acompanhou. No final, a banda agradeceu chegando-se à frente e levantando os braços. Todos os espetadores a aplaudiram por se ter reunido e se aplaudiram também por de certa forma reconhecerem que cantarmos as mesmas canções é saber que somos todos mais iguais e próximos uns dos outros do que poderíamos pensar.

No meio disto tudo, Alex James sorria.