O documentário que deveria passar nas escolas

Graças à Internet, podemos ver várias coisas do nosso país natal quando estamos fora, como jogos de futebol, noticiários e concorrentes de reality shows dizendo que não sabem onde é África. E, felizmente, podemos ver também o documentário Os Donos de Portugal, que, num extraordinário ato de interesse público, a RTP passou no 25 de Abril. Adaptação do livro do mesmo nome, trata da hegemonia secular de algumas famílias na posse de Portugal e de como essa hegemonia foi mantida em estreita relação com todos os regimes, partidos e governantes que lideraram a política portuguesa desde o final do século XIX.
"Para quem contrata, a influência política é o ativo mais desejado. A promiscuidade torna-se um problema colateral. Quem dirigiu a privatização, passa a dirigir o que privatizou. Quem adjudicou a obra pública, passa a liderar a construtora escolhida. Quem negociou pelo Estado a parceria público/privado, passa a gerir a renda que antes atribuiu. Ou vice versa."

httpv://www.youtube.com/watch?v=jg_gd9aUWJQ

Para os meus amigos brasileiros

Gostaria que vocês entendessem que hoje faz 38 anos que Portugal se tornou uma democracia com uma das revoluções mais bonitas que já houve. Desculpem-me dizer isto assim, eu sei que parece presunçoso e uma espécie de patriotismo babaca. Mas eu acho isso mesmo. Foi uma revolução linda, porque teve flores, canções, quase nenhum sangue derramado. Os militares, em vez de fazerem uma nova ditadura, derrubaram a que lá estava e vigiaram todo o processo que levou até à democracia. As senhas para eles saberem quando avançar foram dadas pela rádio, com duas canções, "E Depois do Adeus" e "Grândola Vila Morena". Eu tenho orgulho disso. Eu tenho orgulho que a revolução do meu país, um país que começou então a descobrir quem realmente é, tenha começado nas palavras "quis saber quem sou, o que faço aqui, quem me abandonou, de quem me esqueci" e "dentro de ti, ó cidade, o povo é quem mais ordena" sendo cantadas na rádio. Não choradas, não só faladas: cantadas, por uma voz que rompeu a noite como se rompesse o breu onde até aí tinha vivido. Os presos políticos regressaram às famílias. Todos os jovens souberam que deixariam de ir ter de matar pessoas para África. E, acima de tudo, o mais belo, o mais pungente, é que todo um povo estava unido em volta da mesma esperança. O mais extraordinário sobre o 25 de Abril é isso. Os portugueses podem ser quezilentos, problemáticos, reclamões e, ao mesmo tempo, conformados com a situação e incapazes de mudar seja o que for. Mas no 25 de Abril todos nós nos unimos por sabermos que todos somos iguais enquanto donos do nosso país e do nosso destino. Que Portugal, ao fim e ao cabo, não é de um primeiro-ministro, da Igreja ou dos grandes grupos económicos - ele é nosso. Ainda hoje, o 25 de Abril é o dia em que os portugueses se lembram disso. Por isso, eu não digo que não é por eu estar no Brasil que Portugal deixa de ser meu. Eu digo que não é por eu estar no Brasil que Portugal deixa de ser nosso.
httpv://www.youtube.com/watch?v=uMiAYRRp-cE

Contenta-te com o que tens

Quando tinha 90 anos, Billy Wilder recebeu um prémio de carreira e começou o discurso de agradecimento com uma história. Um homem de 90 anos vai ao médico e diz "doutor, não consigo mijar". O médico pergunta "qual a sua idade?". O homem diz "90 anos". O médico responde "já mijou o suficiente".

O passeio à tarde

Havia uma ponte. Eu estava a atravessá-la, sozinho. À minha volta, estavam dezenas de pessoas. E era isso. Um dia muito quente, o céu estava azul. Não sei o que havia por baixo. Talvez um rio, mas ninguém falava disso. Todas as pessoas pareciam satisfeitas só por saberem para onde estavam a ir. Eu também. A ponte era enorme, larguíssima, do tamanho de uma cidade. Mas era mesmo uma ponte, com faixas desenhadas no chão para os carros saberem por onde ir. Todas as pessoas seguiam em frente, sem conversar. Eu não estava à frente, mas também não estava no fim. As pessoas que iam mais à frente começaram a chegar ao fim. Fila por fila, todos entravam no fim. E eu também.

O tapete mais feio do mundo

Escrito para a última edição d'A Cabra, porque é sempre bom sentir um pezinho em casa. Inspirado numa história real.

Era uma vez um tapete. Muitas histórias poderiam começar assim. Mas ele não era um tapete qualquer, porque ele era o tapete mais feio do mundo. O dono já não se lembrava de onde o tinha encontrado. Pelo menos, nunca o admitiu a ninguém. Quando Márcio e Dora, um casal de amigos, o visitaram, Márcio riu-se e disse "não acredito que deste dinheiro por isto. Este é o tapete mais feio do mundo!". Dora baixou os olhos, triste com as coisas que o namorado dizia. E o dono do tapete tentou lembrar-se porque é que ainda era amigo do Márcio.
O tapete já ouvia coisas parecidas desde que, acabadinho de sair da linha de produção, o pessoal da fábrica o olhou com preocupação. Um funcionário disse mesmo "será que pode ir para a loja assim?". O patrão chegou, viu toda a gente parada, atirou o tapete para a pilha dos vendidos e gritou "a crise já acabou ou quê? Tudo a trabalhar!".
Na loja, as empregadas puseram-no no fundo da pilha, com a esperança que ninguém o visse e saísse assustado. Mas, um dia, alguém comprou o camarada que estava por cima dele e, sem querer, levou-o também. A rapariga da caixa reparou no engano, mas não disse nada. O tapete mais feio do mundo tinha que se fazer à vida.
Quando o dono do tapete fez aniversário, diminuiu e direcionou sabiamente as luzes para que ninguém na festa conseguisse notá-lo Ao tapete, soube bem sentir tantos pés a pisarem-no. Normalmente, era evitado. Mas nessa noite não: ele podia por fim sonhar que era um tapete igual aos outros, peludo e grande, aqueles tapetes que os pais passam para os filhos e os filhos para os netos e assim por diante. Mas o Márcio estava na festa também, e o Márcio é daquele tipo de pessoas que cria uma roda de convidados em volta dele e se põe a contar coisas que as fazem rir. Entre elas, o tapete mais feio do mundo. Todos explodiram numa gargalhada, menos Dora, que ficava triste com as coisas que o namorado dizia, e o dono do tapete, que decidiu enfiá-lo num armário até decidir o que fazer com ele.
No dia seguinte, enquanto o dono arrumava a confusão que ficara da festa, o tapete estava triste. Ele não gostava do armário. O seu destino enquanto tapete era o chão, onde todos o podiam pisar e limpar os sapatos. O escuro do armário era a humilhação suprema na sua curta vida. E "curta" era realmente a palavra certa: o dono planeava deitá-lo ao lixo no fim do dia.
A campainha tocou. Era Dora. "Posso entrar?". "Claro", respondeu ele com surpresa. Dora era uma mulher cobiçável pelos homens, e o dono do tapete não era exceção. O que ela fazia ali? Ela entrou e despiu-se à frente dele. "Quero-te aqui e agora, com uma condição". Ele estaria disposto a tudo. Ela continuou: "vai ser em cima do tapete".
Nas horas seguintes, o tapete sentiu coisas inimagináveis para a maioria dos tapetes do mundo. O toque amigo da pele humana. A confusão do prazer enquanto joelhos e mãos se fincavam nele. As umidades caindo nos seus pelos, muitas vezes, repetidas vezes. E a perversão também, quando ela gritava o nome do Márcio no meio de uma onda de insultos enquanto o dono do tapete a ia preparando para o clímax. Ela, gozando, levantou os olhos. E o dono do tapete lembrou-se então porque era amigo de Márcio: para ficar com Dora por perto.
Depois de fumarem um cigarro, ela levantou-se, pegou as roupas do chão e vestiu-se. Ele riu-se: "E eu que ia deitar o tapete fora". Ela, que já estava perto da porta, disse "podes fazê-lo. Ele é feio mesmo. Mas há coisas que é má educação dizer". E saiu.
Mais tarde, o tapete estava no meio do lixo de um contentor e sentia o ar frio da noite. Era o fim, ele sabia. Mas, em tão pouco tempo, ele tinha conseguido mais do que tantos outros seus camaradas. Em si, para a morte, levava as marcas de uma tarde de amor. E, sorrindo, foi levado pelos almeidas enquanto, em casa, o seu ex-dono pensava na Dora e tentava inventar uma maneira de preencher o espaço em branco com que ficara no chão.

O que eu quero que o livro que vou escrever tenha

O livro tem que me pôr em causa. E eu vou ter que saber defendê-lo. Defendendo aquilo que me põe em causa, conseguirei, não sei como nem porquê, defender-me a mim também.

Vou escrever sobre o que conheço, o que me interessa e as coisas que me aconteceram. O livro deve ser uma defesa do que acredito ser preciso defender (fora ou dentro de mim), um ataque do que acredito ser preciso atacar (fora ou dentro de mim) e uma narração do que acredito que é preciso ser narrado.

O livro vai ter capítulos curtos. Ninguém tem paciência para nada. Nem eu. Muitos capítulos curtos. Muitos episódios.

Algumas personagens serão uma mistura de várias pessoas que conheci. Isso deve estar justificado dentro do próprio livro: a sucessão de pessoas fez-me esquecer de algumas delas.

O meu livro vai ser concreto. Mesmo que fale de sonhos e coisas imaginadas, queridas, idealizadas, ele vai ser concreto nelas e não adotar esse idealismo como parte da sua matéria constitutiva.

O meu livro não vai ter vergonha daquilo que é, tal como eu não tenho vergonha daquilo que sou.

O meu livro não vai ter medo, pois eu também não tenho medo.

O meu livro vai ser uma história com princípio, meio e fim, mas que pode ter digressões.

A linguagem e a gramática vão variar conforme o lugar que está lá. No Brasil, será brasileiro. Em Portugal, será português.

Eu vou escrever o meu livro como se filma um documentário. Escrever os capítulos que têm unidade temática como se fossem a gravação da realidade. E depois editar.

O meu livro vai ser uma coming up story em que o protagonista é um homem que se transforma num outro homem, e não um adolescente que se transforma num adulto.

O meu livro é escrito numa época de reality shows que apresentam uma versão higienizada do sexo e das relações humanas, ou seja, uma versão que não é real. O meu livro, sendo ficcional, vai ser mais real do que um reality.

Se eu tiver que chorar enquanto escrevo o meu livro, eu vou chorar.

O Kindle e a existência


Eu tenho um Kindle. E eu adoro o meu Kindle. Não tive grandes problemas em adaptar-me à leitura nele e, quanto mais o tempo passa, mais encontro novas maneiras de o utilizar. Uso-o para o trabalho, para tirar notas em textos, que posso depois ver num arquivo à parte. Posso comprar livros na Amazon que são imediatamente baixados. Com o Klip.Me, envio para lá os textos extensos que encontro em sites, para ler de modo bem mais confortável. Sublinho excertos que depois posso encontrar imediatamente, uso o dicionário inglês para palavras que não conheço, faço pesquisa no texto para encontrar só aquilo que me interessa. No fim das contas, o Kindle permite ser mais rápido e prático em ações morosas que uma leitura atenta implicava. Ele tem toda a agilidade que é necessária num tempo em que a leitura pode vir de mil lugares e em mil formatos diferentes. Lutar contra ele (ou contra os livros físicos, que ele não substitui) não faz muito sentido e, sinceramente, irritam-me muitos argumentos de detratores da leitura em ebooks, que raramente percebem que só se trata de uma escolha entre um ou outro fetichismo.

Mas há outra razão para o meu apreço pelo aparelho da Amazon. Eu sou um homem que mora fora do seu país e que, como tal, sente a vida sempre em suspenso. Isso transforma. Sentimos a tendência para reduzir o excesso. Costumo dizer que agora não quero nada na minha vida que não caiba dentro de duas malas. Claro que eu tenho eletrodomésticos em casa, mesas, cadeiras e um colchão de ar. Mas eu não levaria essas coisas para lugar nenhum. Não preciso delas.

É normal dizer-se que, quando compramos um livro físico, o sentimos mais nosso, porque a posse aí é física, material. Eu contraponho que, quando leio um livro eletrónico, a minha ligação com o texto é imediata, porque acontece uma coisa curiosa com o Kindle: enquanto objeto, ele é independente do próprio texto. Num livro impresso não é assim. O livro é o texto que nele está escrito. Mas o Kindle recebe os livros que quisermos, apagamo-los, modificamo-los, substituimo-los. Quando lemos, a nossa ligação com a escrita é uma outra, diferente da que temos com a máquina, com o objeto. Ou seja, com ele nós somos donos, não do livro, mas do texto.

Acho que o resumo disto tudo é que eu acho que não precisamos de muitas coisas, mas precisamos de ler. O Kindle é um passo num caminho em que a leitura se desliga das coisas. É por isso que gosto dele.

O dia e a noite

Pouco a pouco, vou sendo mais deste lugar do que do outro que era. Sempre foi assim, mas nunca me deixa de surpreender a rapidez. Nem uma semana passou e já conheço as padarias, os cafés, os mercados. Também já conversei com um rapaz dos que circulam errantes pela São João. Chamava-se Eduardo, devia ter vinte e poucos anos. As compras estavam a cair-me da mão, porque tinha caixas a mais, e ofereceu-me ajuda. Perguntei-lhe se me ajudava a levar as panelas até casa e ele veio. No meio da brisa lá me disse que o tentaram matar enquanto estava a dormir. Pode ser verdade. Havia uma moda de deitar fogo aos gajos da rua, deitar-lhes querosene em cima enquanto dormiam ou estavam chapados e acender uma faísca para os ver morrer. Na primeira noite que passei aqui, havia vários a dormir por baixo do Minhocão. Sossegados, sem fazer mal a ninguém, só a dormir. Devem ter vindo para aqui depois de a Polícia limpar a Cracolândia ou do incêndio da favela do Moinho. Acredito que um fato não estará desligado do outro, mas isso é o que eu acho. No Minhocão que os abriga, tenho visto passar à noite dois gajos. Parecem-me sempre os mesmos. Presumo que vendam droga, ou pelo menos a andem a procurar. Eles podem fazer isso porque o Minhocão fecha aos carros todas as noites às 22h e só reabre às 6h. No domingo, está fechado o dia todo e enche-se de famílias, corredores, ciclistas, que vêm curtir o sol do fim de semana como se estivessem no Ibirapuera, mesmo que não haja árvores. Hoje vi uns cinco ciclistas que juntaram o dia à noite e se sentaram de lado a fumar um. Quando acabaram, não podiam com as bicicletas. Lembrei-me do Eduardo. Quando chegamos à porta do meu prédio e ele me passou as panelas, dei-lhe os 4 reais que tinha no bolso e disse-lhe para ir comer alguma coisa. Ele sorriu.

O dilema

Às vezes na vida temos que fazer coisas que nunca pensamos que faríamos. Uma delas é elogiar os Backstreet Boys. Eles são o que são, fazem a música que fazem. E, se não fosse o fato de eu preferir pessoas que não se levam muito a sério, talvez me doesse muito afirmar isto. Como prefiro, é só com uma ligeira estranheza que digo que este vídeo é admirável.
httpv://www.youtube.com/watch?v=EDvRs3SceGo
Agora podem chamar-me nomes e tal. Abraços.

O marechal

O militar Manuel Deodoro da Fonseca foi o primeiro presidente da república do Brasil. Amigo do Imperador e com fortes ideias monarquistas, os republicanos só o conseguiram convencer a entrar na revolução fazendo correr o boato de que teria sido emitida uma ordem de prisão contra ele. Sofria de dispneia, que o impedia de dormir. Morreu pouco menos de um ano depois de terminar o seu conturbado mandato de dois anos. O seu desejo de ser enterrado em trajes civis não foi respeitado. Deu nome a várias praças e cidades por todo o Brasil. E, a partir de hoje, eu sou o mais recente morador da Praça com o seu nome.

Escrever: 5 anos, 10 regras

Notei há umas semanas que ando a trabalhar exclusivamente nisto de escrever prosa há já cinco anos. Por isso, lembrei-me de escrever uma série de regras que aprendi na prática ao longo desse tempo. Não se trata de coisas só para quem trabalha com TV ou cinema, até porque não acho que "escritor" e "romancista" sejam os sinônimos que às vezes parecem querer que sejam. Simplesmente, são noções de quem trabalha profissionalmente com histórias.

1. 5% de inspiração, 95% de transpiração
Somos privilegiados por trabalharmos sentados à frente de um computador em vez de carregarmos tijolo na construção civil. As pessoas que desvalorizam as suas vidas tendem a esquecer-se de que poderiam sempre estar pior, e isto não quer dizer que o trabalho na construção civil seja menos nobre, mas só de que não tem a ver com aquilo que somos. Seja como for, isto é trabalho. Temos de fazer uma história funcionar e, para isso, temos de reunir conhecimentos e capacidade de imaginação suficiente para poder vê-la acontecer na nossa mente antes de a passarmos ao papel. Seja lá qual for a modalidade de escrita em que nos apliquemos, o nosso trabalho é pré-ver e registar em papel essa pré-visão, e de um modo absolutamente fascinante, porque as pessoas que vão ler vão ter que se sentir movidas de alguma forma. Já aqui citei Carolina Kotscho: um roteiro é um objeto de sedução. Poder-se-ia dizer o mesmo de qualquer texto, até da legenda de uma foto de meias num catálogo de roupa.

2. Uma história é um castelo de cartas
Um filme são múltiplos setups e payoffs a acontecerem. Causas e consequências. Ações e reações. Como quando se constrói um prédio, um tijolo encaixa no outro e a mudança de um único elemento pode afetar toda a estrutura. Por isso, é preciso conhecer os pilares que podem ser retirados e os que não podem, as paredes que são mestras e as que as não são, porque um dia alguém vai pedir para mudar alguma coisa e nesse momento temos que estar prontos para dizer "Sim, posso mudar isso" ou "Vai ser difícil mudar isso, mas" ou "isso vai ser outra coisa diferente daquilo que começou por fasciná-lo".

3. Manuais de escrita são a teoria específica da nossa atividade
Nós não temos uma sebenta. Existem livros sobre literatura, existem livros sobre cinema. Mas para construir uma história é preciso ler o "Story" do McKee. Para conhecer a arquitetura narrativa cristalizada na experiência dos espetadores, é preciso ler o "Script" do Syd Field. Por muito que se diga que esse tipo de livros passa uma visão limitada e estereotipada do que um filme deve ser - e eu não concordo com isso -, eles são a literatura que ensina na prática a construir uma história e temos a obrigação de os ler e de dominar o seu jargão. Mas...

4. Manuais de escrita não são verdades indiscutíveis e válidas para tudo
Até porque nenhum desses livros ou teorias quer sê-lo. Um caso claro para mim é a jornada do herói de Joseph Campbell. Para mim, ela serve para histórias com um herói claro, como O Feiticeiro de Oz, Matrix, Harry Potter, Star Wars. Pode-se sempre tentar analisar através dela um filme de um outro tipo, com enredos paralelos, multiprotagonistas, miniplot, mas no final dá-me sempre a sensação de exercício formal. A jornada do herói é um modelo que tem os seus méritos, mas é preciso saber quando ela nos pode servir, tal como qualquer outro modelo de construção narrativa. Contar histórias é, antes de tudo, uma aplicação da nossa experiência humana de ouvi-las e sonhá-las. Às vezes, vamos dar por nós a escrever algo que nos surpreende sem entendermos de onde vem tudo aquilo e sem que nisso consigamos reconhecer nenhum modelo. Esse é um momento de pureza absoluta. Por isso, concordo com Unamuno quando ele diz que escrevemos para nos conhecermos a nós mesmos.

5. Contar uma história é guiar a psicologia do público
Samuel Fuller dá-nos em "O Desprezo" de Godard a sua visão do cinema: numa palavra, "emoções". Qualquer produto de entretenimento - e até uma grande obra literária o é - é consumido por quem espera uma viagem emocional, ou seja, uma sucessão de estímulos emocionais que não sentiria se não o fruísse. Diz-se com frequência que é preciso enganchar a atenção do espetador ou do leitor, mas é preciso ir mais longe do que isso. Nós temos que dominar a arte de manipular emocionalmente as pessoas primeiro e de decidir o que fazer com essa manipulação depois. O suspense de Hitchock é um exemplo maior. Nós sabemos que a explosão de um carro vai assustar o público, mas o que é mais eficaz: uma explosão de surpresa ou darmos a saber que o carro tem uma bomba dentro e deixarmos acumular a tensão do público enquanto uma família com 3 crianças vai às compras nele, transformando minutos em horas? Não existe uma resposta certa para esta pergunta fora do contexto da história onde essa cena aparece. Tudo tem de ser decidido caso a caso.

6. Conflito antes de mais nada
A lição de McKee sobre conflito é preciosa e nunca me sai da cabeça. Quanto mais conseguirmos carregar uma cena com conflito, quanto mais conseguirmos fazer com que uma personagem, num determinado momento, esteja em oposição com outra e com ela mesma e, se possível, com o mundo inteiro, mais rica a cena vai ser. A minha experiência prática é que metade das dificuldades com enredo e com progressão dramática ficam resolvidas se pensarmos bem as cenas essenciais em termos do conflito que implicam.

7. Trabalho "estacionado" vai-te morder no cu
É normal trabalharmos em várias coisas ao mesmo tempo e, às vezes, deixamos um projeto de lado para fazer coisas mais urgentes, com prazos mais apertados, como um projeto que está mesmo a calhar para um edital de um canal de TV. Deve fazer parte da nossa rotina de trabalho uma organização sobre o material que temos incompleto, quais os elementos que faltam para o concluirmos e uma expectativa realista de dias até o terminarmos, porque, no futuro, esse projeto deixado de lado vai ser o ideal para um outro edital, um outro canal de TV. E das duas uma: ou o temos debaixo da mão ou nos deixamos levar numa onda como um surfista que não sabe nadar.

8. É preciso dar sempre o melhor
É o que é esperado. E a verdade é que nem sempre ele vai ser bom ou, pelo menos, bom o suficiente para quem o espera. Lidar com a falta de satisfação dos outros faz parte do pacote de se escrever sob contrato. Mas, se se aquilo que saiu foi mesmo o melhor, teremos uma justificação para todas as palavras. Se não a tivermos, talvez seja bom repensar se é mesmo o melhor que conseguimos. Qualquer roteiro, livro, artigo de jornal ou post de blog é a defesa de alguma coisa. Quando o enviamos para o mundo, seja através de um email para o nosso chefe ou clicando no "Publish" aqui do lado, estamos a dizer "este texto é aquilo que eu acho que um texto deve ser".

9. Nem sempre o melhor vai sair
Isto é o que se faz para ganhar a vida. Escrever não é ser um génio. Algum trabalho vai ser melhor do que outro. Todas as coisas que podem atrapalhar um trabalho normal podem atrapalhar aqui. Problemas pessoais, sobrecarga, falta de tempo geral. É preciso saber lidar com as expectativas das pessoas que te vão cobrar. Tu és uma pessoa que te vai cobrar. Lida com as tuas expectativas também. Algum dos trabalhos não vão ser os melhores da tua vida e muitas vezes vais ter que fazer coisas que não gostas de fazer e que não terão até necessariamente que ver com a atividade de escrita. Produção, assistência, redação seja lá do que for. Michael Cunningham fala em Screen Plays: How 25 Scripts Made It to a Theater Near You--for Better or Worse, "só podemos ter a experiência que já temos, só podemos fazer o melhor que podemos e nunca conseguiremos saber o que o mundo vai fazer com qualquer coisa que façamos. (...) É sempre uma aposta. Às vezes, trabalho bom vence; às vezes, trabalho bom falha. Só podemos fazer aquilo que conseguimos fazer e depois esperar para ver como o mundo reage".

10. Toda a gente se esquece de quem escreve
O roteirista é o profissional mais generoso do mundo, porque é o seu trabalho que dá o arranque para o de inúmeros outros profissionais que tendem, na esmagadora maioria dos casos, a esquecer-se dele. Porque é que em curtas-metragens universitárias os técnicos recebem dinheiro, os atores recebem atenção e o roteirista recebe nicles? Só porque toda a gente sabe escrever e nem toda a gente sabe montar uma boa iluminação, isso não quer dizer que toda a gente saiba construir uma história. Sim, devemos ser humildes e aceitar opiniões que são melhores do que as nossas. Mas é precisamente essa humildade que nos vai dar autoridade para depois dizer "eu aceito todas as boas soluções e essa não é uma delas". Todas as pessoas andam no mundo querendo só uma coisa: conseguirem dormir bem à noite. E roterista não é excepção.

Dois barbados, quatro índios e um brasileiro

GIF made with the NYPL Labs Stereogranimator - view more at http://stereo.nypl.org/gallery/index
GIF made with the NYPL Labs Stereogranimator - view more at http://stereo.nypl.org/gallery/index
GIF made with the NYPL Labs Stereogranimator - view more at http://stereo.nypl.org/gallery/index
GIF made with the NYPL Labs Stereogranimator - view more at http://stereo.nypl.org/gallery/index
GIF made with the NYPL Labs Stereogranimator - view more at http://stereo.nypl.org/gallery/index
GIF made with the NYPL Labs Stereogranimator - view more at http://stereo.nypl.org/gallery/index
Só um aviso:
isto vicia.

A culpa não é do cachorro!


Numa noite de Novembro, quando ainda estava em Portugal, ia pegar o carro para sair e pus o pé em cima de algo volumoso. Levantei o pé e o volume fez um "cóóóó..." como se fosse um fole. Olhei para baixo. Era uma galinha, que o assassino do meu cão tinha caçado lá fora e trazido para o quintal. Ele faz isso desde pequeno e nunca pensei que isso prejudicasse o meu país. Mas depois de ler este título não tenho tanta certeza.

Comissão Europeia processa Portugal por não proteger as galinhas poedeiras

O que parece que está acontecendo no Pinheirinho...

...é a consequência de um entendimento entre poder e dinheiro para impor os interesses da especulação imobiliária sobre os da população.

O art. 6º da Constituição da República Federativa do Brasil reconhece o direito à moradia como um direito fundamental. Deixemos isso ficar na mente. Em 2006, o Movimento dos Trabalhadores sem Terra ocupou um terreno desocupado pertencente a um grupo empresarial. O curioso é que esse terreno, após o assassinato de antigos proprietários sem herdeiros em 1969, foi bem vago e, como tal, passou para as mãos do Estado. E, ainda assim, acabou misteriosamente incorporado pelo grupo de Naji Nahas, que, aparentemente, deve 15 milhões de reais em impostos à Prefeitura de São José dos Campos. E agora o Estado age para desocupar terra em nome da propriedade privada sem que se saiba bem como ela deixou de ser pública.

Agora vejam este vídeo.
httpv://www.youtube.com/watch?v=H8pPOYHmkCc
Como diz o site Maria Frô, observe com atenção o casal com o carrinho de bebê por volta de 2:40; homens pedindo para a polícia parar de atirar que na rota dos tiros tinha idosos, cadeirantes por volta de 4:40; aos 5:40 mulher e criança tentando passar no meio de tiros; as expressões de terror e indignação da família por volta dos 6:03.. Leiam também a reportagem do Blog do Tsavkko para uma perspectiva in loco do que aconteceu no Pinheirinho.

Independentemente de a ação policial estar apoiada numa decisão de tribunal - suspensa pela Justiça Federal e reafirmada sem base jurídica por um juiz estadual -, o que vemos aqui não é uma simples operação de desocupação. Entrar com helicópteros e balas de borracha e atirar indiscriminadamente em pessoas cujo único crime é morar na sua casa, sem acautelar a segurança de crianças, inválidos e idosos, é um ato injustificado e desmedido. A lógica de "no Brasil é assim" já teve o seu tempo. Nenhuma Polícia, em nenhum país do mundo, tem legitimidade para se virar contra a população que jura proteger. Qualquer ordem superior que a oriente nesse sentido é inconstitucional e, como tal, nula.

Enquanto ventos tristes sopram em São José dos Campos, é bom lembrar Adoniran Barbosa. E também que o art. 6º da Constituição da República Federativa do Brasil reconhece o direito à moradia como um direito fundamental.
httpv://www.youtube.com/watch?v=0NCvDg6E3JQ

Explicação ao Brasil da lista da Vice Portugal

A Popload republicou uma lista da Vice Portugal. Para desvanecer as dúvidas sobre os artistas portugueses que lá aparecem:

B Fachada: bem mais novo do que Marcelo Camelo e bem menos fashion. Mais um Devendra Banhart, se Devendra Banhart tivesse influência de música tradicional portuguesa e pop-rock tuga dos anos 80.
httpv://www.youtube.com/watch?v=Ld2hDc5R9iQ&feature=related

Fausto Bordalo Dias: um dos gigantes da música nacional, veio na onda de cantautores de esquerda ligados à revolução democrática nos anos 70. Autor de "Por este rio acima", um dos álbuns mais importantes de sempre em PT. Pode ser considerado um Caetano, mas, como esteve muito tempo desaparecido, será mais um Tom Zé, menos alegre e menos louco.
httpv://www.youtube.com/watch?v=vPxBNVs0s6E

Norberto Lobo e Filho da Mãe: os dois novos expoentes do violão em Portugal. Com a influência clássica da guitarra portuguesa de Carlos Paredes, mas já com trejeitos de jazz e rock - ao contrário da geração anterior -, fazem música melancólica, muito, muito portuguesa e muito, muito bela.
httpv://www.youtube.com/watch?v=XL6r9E7dR1c&feature=related
httpv://www.youtube.com/watch?v=O3J0OHNHOEw

Paus: a banda rock que está acontecendo em Portugal. Têm um toque eletropunk, um tanto de pós-rock e, mais uma vez, bastante de rock português dos anos 80. Estive em Portugal em Outubro e posso dizer que todo mundo lá adora Paus.
httpv://www.youtube.com/watch?v=SMwbye9H84Q

As chouriças pretas da Rosinha do Lapa


Não lhes vou chamar morcelas, porque toda a vida lhes chamei isto: chouriças pretas. Ou de sangue, pronto. Digo com segurança que as da Rosinha do Lapa, que tem o talho na Praça da República de Monção, são as melhores do mundo. Não sei se é do fumeiro ou da carne, mas alguma coisa elas têm, porque são diferentes de quaisquer outras. Em Monção, notava logo a diferença quando a Rosinha não as tinha e a minha mãe tinha de comprar outras noutro lado qualquer. Em Coimbra, ficava-me pelas alheiras que a minha amiga Cândida trazia de Macedo. Deliciosas também, mas alheira é outra liga. Quando almoçava cozido à portuguesa nos cafés de Lisboa e provava aquele sucedâneo com sabor de plástico de embalado, chorava por elas. Aqui, no Brasil, foram das primeiras coisas que trouxe, porque o André, com quem fiquei na primeira semana, me disse logo que isto não era famoso de enchidos e que, se lhe queria mostrar gratidão, era um bom jeito. Nunca mais deixei de as trazer. Se Marcel Proust tivesse conhecido a Rosinha do Lapa, não se tinha andado a meter nas madalenas para lembrar a infância.

Não é normal cozinhar-se com sangue em São Paulo e os nativos ficam meio surpreendidos quando as vêem. No Natal, levei uma para um churrasco na minha produtora (ver foto) e as reações variaram entre a repugnância e a adesão total. Pelo meio, houve quem tivesse franzido o sobrolho no início e repetido a dose no final.

Durante a minha vida aqui, as chouriças pretas da Rosinha do Lapa acompanharam-me por alegrias e tristezas. Uma alegria foi o cozido à portuguesa que o pessoal do Inov-Art armou quando ainda cá estávamos todos e pude vê-los, todos de diferentes regiões de Portugal, a confirmar o que eu já sabia: que são as melhores da História. As tristezas deram-se normalmente como, quando ontem, assei a última chouriça. Mas talvez esqueça isso quando hoje estiver a almoçar a outra metade dela com um belo arroz de açafrão.

Ação e reação

Há um limite para escrever filmes. Um roteiro é um exercício de causalidade. Aquilo que acontece no início tem que ter uma justificação mais à frente. Um guião perfeito é aquele que se fecha em si mesmo, que apresenta um conjunto fechado de causas e consequências conduzido irremediavelmente para um final catártico. Mas a vida não é lógica ou consequencial. Por exemplo, estive a ver o primeiro filme dos X Files, que começa com uma cena em que um cavernícola encontra um amigo morto e com uma ferida aberta na pele. Ele poderia pôr o dedo na ferida e provar o seu sangue. Está dentro do universo selvagem da pré-história, a lógica não se feriria com isso. Mas não faria sentido no filme, porque não serviria para nada mais tarde. A vida é construída com acasos, acessos inexplicáveis, coisas que as pessoas fazem sem justificação. E uma história, com essa ordem ou não, tem de ter um princípio, meio e fim, porque as narrativas servem para acreditarmos que a nossa passagem livre e desorientada por este mundo segue uma continuidade e não faz parte do caos que reina sobre tudo o mais. Uma história não pode copiar a ordem natural das coisas na sua desconexão. Se o fizer, perde a sua motivação, desencontra-se do seu DNA.

Não acredito em ter vida privada

Pelo menos, enquanto escritor. Por duas razões, ou talvez três. É preciso trabalhar muito, sentado a escrever e de pé a viver. Mesmo quando se vive, trabalha-se, porque o nosso trabalho é conhecer o mundo, as pessoas, os temperamentos. Sair à noite e conhecer alguém, amar alguém, quebrar um coração ou ter o teu quebrado, tudo isso é trabalho. Como todo o trabalho, tem objetivos a serem cumpridos. O nosso é dominar o conhecimento da polpa humana. Mas o escritor também não pode ter vida privada porque a vida do escritor é pública. Tudo o que se vive vai alimentar o que se produz. Por isso não acredito em vida privada.

Alô, alô, estupro, Brasil

Os fatos são que uma moça ficou bêbeda no Big Brother, andou aos amassos com um rapaz, foi dormir e ele saltou para baixo dos lençóis. Desde essa noite, o Brasil anda a discutir se ela foi estuprada. Se uma mulher bêbeda pode ser violada, os limites do consentimento, se o rapaz estava bêbedo também, se um bêbedo pode estuprar, etc. A Globo não mostrou nada na versão editada e, se não fosse o pessoal que viu tudo no pay per view e fez barulho nas redes sociais, talvez a polícia nem tivesse sido chamada.

Talvez seja o final da reality TV nos moldes que conhecemos dos últimos 15 anos. Parece-me claro que um programa que chega ao ponto de tornar tópico de discussão se uma mulher foi estrupada ou não em frente às câmeras foi longe demais. O formato BB assenta em fazer coisas acontecer para gerar fofoca, esse é a motivação dele. Um noticiário informa, uma novela conta histórias, o BB gera fofocas. Tudo bem. Ninguém é santo, a fazer TV muito menos. Mas permitir-se colocar pessoas numa condição em que este tipo de dúvida pode surgir é chegar no puro vazio. O atrativo que o BB poderia ter foi-se. A fantasia que ele criava, o mundo além do mundo que, como a Disneylândia, ele arquitetava, desfez-se quando ele se perdeu dentro dele mesmo e bateu de frente contra o real. E essa fantasia nunca mais se recuperará, porque mais ninguém volta a acreditar no Papai Noel depois que sabe que ele é o tio com uma barba.

Marcelino Freire tem razão:
Acho que virei puritano,
melhor eu ficar na minha.

Só não posso concordar
que apenas o negro
tenha de pagar pelo abuso
coletivo.

Por debaixo dos panos,
todas as noites,
sempre foi este
o nosso programa
preferido.

Pensando

Uma vez, ouvi Carolina Kotscho dizendo que um roteiro é um objeto de sedução. A frase é em cheio e não se costuma ler em manuais de escrita. É um texto técnico, ao mesmo tempo uma obra artística que alimenta outros artistas. Ou combate, pois, como disse Truffaut, filma-se contra o roteiro e monta-se contra a filmagem. Mas, para além disso tudo, um roteiro é um instrumento de engate. Escreve-se para fascinar o teu chefe, colegas, produtores, investidores, canais de televisão, estrelas, gajos do marketing. E escreve-se para ti mesmo também, porque qualquer sedução é um discurso com que, na verdade, te conquistas a ti mesmo e a outra pessoa é só alguém que te confirma. A cada história nova que me é proposta, o meu primeiro desafio antes de escrever uma palavra é entender como me posso apaixonar pelo projeto. É uma atividade em que me questiono, me guerreio e me encontro ou desencontro. Entregar-me a um trabalho, como entregar-me a uma pessoa, exige que me apaixone por ele. Que me conquiste a mim mesmo através dele, que ele me confirme. Mas os trabalhos variam por necessidade e uns entram no lugar dos outros. Por isso, a diferença entre mim e as meninas que vendem amor no Love Story não é assim tão grande.