Acidentes

heitor penteado, ao lado do martelinho de ouro: um anão acende um cigarro.
Poderia ser um poema surrealista ou as palavras de um louco. Mas foi isso que eu vi: na avenida Heitor Penteado, junto a uma oficina chamada Martelinho de Ouro, um anão acendia um cigarro enquanto franqueava o portão de uma casa. Isto me importa porquê? Uma das citações que tenho no meu perfil do Facebook é de uma carta que W.H.Auden escreveu a Frank O'Hara, onde ele o aconselha e ao John Ashberry para terem "atenção àquele que é sempre o grande perigo de qualquer estilo 'surrealista', nomeadamente o de se confundir autênticas relações não-lógicas, que causam espanto, com as acidentais, que causam uma mera surpresa e, no final, cansaço". Mas os acasos como o do anão lembram sempre que o surrealismo é diminutivo de super-realismo - a realidade vista de tão perto que a perspetiva se perde e ficamos apenas com isso mesmo: a realidade em macro, sem foco, bruta e absurda. As cabeças com flores no casamento do rei. O elástico que abraça um lápis. A madeira na perna de Roberto Carlos. Tudo no mundo pode ser revelação de deus ou do diabo. Estas palavras também.

eMorte

Lendo "O Museu Darbot e Outros Mistérios", de Victor Giudice, deparo-me com a frase ‎"Ninguém resolve a vida ou a morte numa quinta-feira". Pelos vistos, a frase também se aplica ao facebook, já que, alguns minutos depois, ele perguntou-me se quero ser amigo do Carlos Pinto Coelho. Afinal, temos 66 amigos em comum e o facebook trata disso mesmo: amigos. Vida e morte não passam por lá.

A última frase que Fernando Pessoa escrevinhou antes de a cirrose o vencer foi "I know not what tomorrow will bring", o que acabou por ser uma das suas citações mais frequentes depois do "primeiro estranha-se e depois entranha-se" com que ele introduziu a Coca Cola em Portugal durante o seu breve período enquanto copywriter. Aliás, se me recordo bem do "Fazer Pela Vida" de Mega Ferreira, esse período terminou devido a esse próprio slogan, que levou a que Ricardo Jorge, diretor de saúde de Lisboa, desconfiasse das propriedades narcóticas da nova bebida e mandasse atirar ao mar todo o stock que tinha chegado a Portugal, proibindo a sua comercialização. Como nenhuma agência quer trabalhar com um copywriter que faz com que o produto anunciado acabe com os peixes (a menos que se trate de coisas para aquários, mas não foi o caso), Pessoa nunca mais conseguiu trabalhar com publicidade. Mas, regressando: Pessoa era um poeta, conhecido, respeitado por um grupo de amigos fiéis, e escreveu uma última frase num papel, que alguém guardou, porque, enquanto poeta, a sua aproximação da morte expressa em palavras era considerada de valor para toda a gente. Mas todos nós temos blogs, facebooks, twitters. Todos hoje podemos ter o nosso "I know not what tomorrow will bring". Aliás, pode até haver plágios de citações post-mortem, o que poderá levar à criação de um tribunal de direitos inteletuais no Além. Basta que, em vez de pedir um papel e um lápis, peçamos um laptop.

Depois de os nossos corpos se extinguirem, o que acontecerá a esses espelhamentos da personalidade que ao longo de anos fomos distribuindo por aí? E-mails, sites, fotografias, coisas de que já nem me lembro, ocultas por pseudónimos atrás de pseudónimos, de passwords e perguntas secretas. Um cadáver, material, duro, pode ser devorado por bichos e destruir-se organicamente a si mesmo. Mas este mesmo texto que estás a ler, leitor, só desaparecerá se alguém souber o meu nick e a minha password e o destruir. Ou, pelo menos, se um grupo organizado de velhas georgianas com machados cortarem estrategicamente linhas de fibra ótica por esse mundo fora. Dos dois fatos, não sei qual será o mais provável. Ou, por outras palavras, I know not what tomorrow will bring.

Cidade aTravessa


Hoje venho aqui só para vos dizer que sábado, dia 30, farei spoken word no Cidade aTravessa. Será na Casa das Rosas, na Avenida Paulista nº37, às 20h.

Os panos dos sexos

Convém dizer que aproveitei a ida duma amiga brasileira para a Europa para ficar um mês no apartamento dela. Estou a dividi-la com uma outra amiga dela, que chegou uns dois dias depois de mim e, durante a mudança, me pergunta
Jorge, você sabe se tem pano de prato?
Como assim, pano de prato? Para enxugar a louça?
Isso.
Havia um em cima da torneira
- e vou andando para lá.
Não, esse é de limpar a pia.
Tens razão. Então, mas... - procurando nos recantos de uma casa ainda meio desconhecida - olha tantos aqui ao lado destas esponjas!
Não, Jorge, esses são panos do chão.
Ok... mas estão lavados e secos. Para uma emergência...
Imagina. Não é complicado, amanhã eu compro um. Custa só uns cinco reais!
Hmmm, mas espera! O fogão estava fechado e tinha uma cafeteira por cima. Ora, sob a cafeteira estava este pano, que poderia perfeitamente...
Jorge, esse pano é decorativo. É de viscose, não absorve.

e esse é o momento em que solto um desanimado
Mulheres!
precisamente ao mesmo tempo que ela solta um sentido
Homens!
e fomos cada um para o nosso respetivo quarto chorar.

Objetos do Brasil: o Programa Sílvio Santos


O Programa Sílvio Santos assenta num pressuposto curioso, que também já justificou coisas em Portugal como o "Agora ou Nunca": toda a gente quer dinheiro e está disposta a tudo para o conseguir. No entanto, ele fá-lo da forma mais despudorada que alguma vez se viu:
SÍLVIO SANTOS - Quem quer dinheirooooo?
AUDIÊNCIA COMPOSTA INTEIRAMENTE POR MULHERES - Eeeeeeeeeeeeeu!
SÍLVIO SANTOS - Quem quer dinheiroooooooooooooooooo?!
AUDIÊNCIA COMPOSTA INTEIRAMENTE POR MULHERES - Eeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeu!
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=FXnGNEnUR5Y&fs=1&hl=pt_PT]
Enquanto grita estas palavras de ordem, Sílvio Santos vai percorrendo à sua vontade um corredor entre duas colunas de espectadoras que parecem mais selvagens do que qualquer audiência que a Oprah consiga angariar. Quando quer perguntar alguma coisa a alguém, ele escolhe a pessoa que mais lhe agrada no momento. Há sempre um microfone a aparecer-lhe miraculosamente na mão, que ele aponta só para a interlocutora - sim, porque ele tem um microfone só para ele, que traz sempre fixo e em riste por baixo do pescoço, preso com uma coisa metálica que, por esta altura, já lhe deve entrar pela pele adentro. Se ELE OPINAR que a resposta da mulher está certa (e basta OPINAR, mas tem que ser ELE), tira um maço de notas do casaco e dá-lho. Sílvio Santos tem os bolsos mais bem recheados de toda a televisão mundal, mas nunca ganhar dinheiro foi tão humilhante em toda a história das atividades económicas. Ele ri-se e troça da ignorância das concorrentes de ocasião e, com requintes de crueldade próprios de um padastro num conto de fadas, ele humilha a Maísa, uma criança que se tornou uma figura televisiva precisamente por ser humilhada por ele e, de vez em quando, replicar (se bem que isso só sirva para que ele a humilhe mais um pouco).
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=wCK7aZmNMjQ&fs=1&hl=pt_PT]
No Programa Sílvio Santos, a audiência aplaude vídeos com homens a assobiar, anúncios de produtos de maquilhagem produzidos pelo próprio Sílvio Santos, travestis a cantar e desfilar, dinheiro, dinheiro e dinheiro. É um momento televisivo em que tudo pode acontecer, porque, desde que cumpra os requisitos de beleza e/ou de riqueza, nada é de tão mau gosto que nele não se possa ver. É pura poesia pop, arte contemporânea trash, um programa "larger than life" que ultrapassará sempre qualquer ficção imaginável. E, além disso, contém um subtexto sexual intrigante: Sílvio Santos, um homem de microfone em riste, a atirar maços de dinheiro ao calhas para uma audiência de mulheres ávidas, que se atropelam e empurram para conseguirem pagar as compras da semana. Ou seja, Sílvio Santos conseguiu o que muita gente sonhou e não alcançou: ele ejacula dinheiro. E, no final, ainda se ri. Com dentes cirurgicamente brancos, evidentemente.

Para o que me deu

Estou a fazer algo que não fazia há muito tempo: ler blogs. Foi uma constante diária desde 2003, quanto entrei no "meio" com A Peste - literalmente no meio; a moda tinha começado uns 2, 3 anos antes, e na silly season desse ano fora notícia, mas eu esperei até novembro para ter a certeza que não ia fazer merda - e depois ainda mais com o PF News, que obrigava a manter-me constantemente atualizado sobre novidades boas e más dos meios culturais, literários, audiovisuais e outros que tais. Em 2010, quando vim para o Brasil e deixei de escrever o PF News, deixei de ler blogs. E, não fosse ele, tê-lo-ia feito antes.

Em 2003-2004, havia uma discussão interessante sobre aquilo que se poderia escrever no blog. Este era o meio natural para se escrever sobre o quê, com que estilo, etc. Mas, uns 5 anos depois, com milhares de pessoas a produzirem diariamente milhares de carateres de forma espontânea numa espécie de esfera paralela a todas as restantes publicações que se faziam no mundo, parecia que os blogs já tinham tocado em tudo de todas as formas. Adolescentes a escreverem sobre política e pastilha elástica, políticos a escreverem sobre adolescentes e pastilha elástica, jovens guionistas a escrever sobre pastilhas elásticas e políticos e adolescentes. As possibilidades foram incontáveis; em 2008 pareceram já esgotadas.

A forma como a partidarização avançou também teve algo a ver com isto perder a graça. Por exemplo, quando o Aspirina B responde a João Galamba com a notícia "Portugal é o país da UE com mais progressos na educação", toda uma série de dúvidas surge: como é que isto surge neste contexto de esgrima política?, como é que a notícia foi criada, quem foi a fonte?, com base em que estatísticas?, que confiança podemos depositar nessas estatísticas, nós, que sabemos que as contas oficiais são alteradas desde clubes de futebol de 3a divisão até aos governos que têm que se haver com os parceiros europeus?

O mundo onde os blogs eram o meio de comunicação sincero e fora do sistema por excelência voltou a ser aquele onde não temos nada em que acreditar. No 11 de Setembro, foram a solução. Hoje, são só mais uma parte do problema. E, ainda assim, estou a fazer algo que já não fazia há muito tempo: ler blogs. Louco, não?

Chegar

Recém chegado a São Paulo, uma coisa me saltou logo à vista, ou melhor, às glândulas sudoríparas: está calor. Bastante calor. Não tanto como esperavam aqueles que me diziam "mas no Brasil está sempre quente" e não sabiam que eu cheguei a andar com um cachecol amarrado na cabeça em Julho. Ainda assim, está bem quentinho. O que significa que, como eu saí ontem de casa com uma mochila, cheguei ao trabalho com uma mancha de suor muito bonita desenhada nas costas. Felizmente, como estou com jet lag e o meu cérebro está quatro horas adiantado em relação ao horário local, cheguei cedo demais, ainda não estava ninguém no escritório e pude ir para a varanda deixar que as costas me secassem ao sol. Sim, havia sol, até chegar o final da tarde com o seu smog anestésico, mas antes ainda conheci o novo estagiário da produtora, que me disse que em Portugal já não havia dinheiro. Eu ri-me e disse "é verdade", mas tinha percebido mal: ele tinha dito que em Portugal não havia "gelo", e alguém soltou um "porquê?" e ele respondeu "porque a senhora que fazia perdeu a receita". Por isso, como eu sou uma pessoa cruel e sem coração, mandei-o logo fotocopiar-me um livro. Mentira, ele até é bom rapaz. Respondi só com a piada de brasileiros que me contaram ainda em PT, da senhora que quer registar a filha com o nome "Arquibancada do Corinthians" e, perante a recusa do homem do registro, exclama "ué, mas meu vizinho registrou o filho como Geraldo Santos!". Ele não se riu muito, por isso, mandei-o mesmo fotocopiar-me um livro.

Estudo para personagem

Eu não gosto de falar disto. Não é adequado ao momento. Sou fisioterapeuta, mas tenho a minha clínica própria. Sou uma mulher de negócios, uma empresária também. Tenho um sucesso moderado.

Eu não faço publicidade. Os pacientes que falem. Se gostarem, gostam. Têm gostado.

Eu não sou santa. Eu bebo, eu fumo. Porque é que as pessoas julgam que sou santa? Elas depositam esperanças em mim que não deveriam. Eu faço o que é preciso fazer. Às vezes vai resultar mais do que penso, outras menos. Mas eu não sou santa. Porque esperam que seja santa?

Uma vez, tive um paciente que sofrera um erro médico. Quando me chegou, só conseguia estar deitado. E eu pu-lo a andar.

Tenho uma mão XS. É mesmo muito pequena. Pedem-me muitas vezes que ensine coisas sobre massagens. Que conheça pontos milagrosos no corpo. Não sei ensinar nada. Se queres aprender, tira um curso.

Há mulheres que têm dores na nona vértebra. É a que fica no meio das costelas. Quem tem dores na nona vértebra ou não chora ou não tem orgasmos.

Eu choro muito.

O cheiro nocturno

Ontem foi mais um concerto dos Social Smokers, o último que dei em Portugal com a banda completa antes de voltar a São Paulo - o que não quer dizer que possam perder a performance que eu, o Silva o Sentinela e o Biru vamos dar amanhã no Clube da Palavra Ao Vivo, no Teatro São Luiz. Seja como for, como estas coisas cansam (ao contrário do que poderão pensar as minhas amigas que vêm do Brasil com a pica toda de rainhas da noite e que me mandam mensagens às 4h e meia perguntando porque não estou no Musicbox). Portanto, era tranquilamente que subia a rua para o meu prédio quando ouço uma voz atrás de mim dizendo "olhe, por favor!".

Viro-me. Dois polícias subiam a rua a correr. Ao lado, na estrada, um carro com um colega deles subia também. Na rua vazia, a visão daqueles dois latagões a correrem era, no mínimo, caricata. Cordial, perguntei "sim, senhor guarda?" e o polícia que me tinha chamado disse "deixe-me ver uma coisa, por favor". "Com certeza", e abri os braços, pronto para, pela primeira vez na minha vida ser revistado na rua - o que não teria sido problemático, já que sempre que vou aos Smokers não levo o revólver.

Mas ele não me queria revistar. Só me queria cheirar as mãos. Cheirou uma, cheirou a outra, disse "obrigado e desculpe". O carro deu meia volta e ele e o colega também e começaram a descer. E eu, cheirado por um polícia em plena rua às 3h da manhã, senti-me usado como nunca me tinha sentido na vida. No entanto, se algum dia aquele agente quiser ascender à posição de perdigueiro, estou disposto a escrever uma recomendação. Só faltou ele ter adivinhado o que eu tinha jantado. Se o tivesse feito, até o convidava para actuar connosco no Sábado.

Poema contra a crise

Há quem diga que a poesia não resolve nada,
Há quem diga que a poesia não é prática.
Mas eu vou resolver esta crise
Com poesia matemática!

O primeiro verso vai custar-lhe mil euros!
O segundo verso vai custar-lhe dois mil euros!
O terceiro verso vai custar-lhe uma participação numa empresa sediada no off-shore da Madeira!

O quarto verso vai custar-lhe uma citação na revista Ler!
O quinto verso vai custar-lhe uma citação no Jornal de Letras!
O sexto verso vai custar-lhe uma citação pelo Tribunal de Contas para um processo que não terá quaisquer efeitos práticos!

O sétimo verso vai custar-lhe uma casa de banho no Palácio de Belém!
O oitavo verso vai custar-lhe uma casa de banho no palácio de um barão de droga colombiano!
O nono verso vai custar-lhe uma casa de banho no Ministério da Cultura de Manuel Maria Carrilho!

O décimo verso vai custar-lhe o tecido das cuequinhas de Angela Merkel!
O décimo primeiro verso vai custar-lhe a tenda que Muammar Kadhafi usou quando veio a Lisboa!
O décimo segundo verso vai custar-lhe a barraca que o FMI vai armar neste país!

O décimo terceiro verso vai custar-lhe uma linha (de coca) a grande velocidade e um aeroporto que não ota nem desota!
O décimo quarto verso vai custar-lhe o ouro do Brasil!
E o décimo quinto verso vai custar-lhe todas as derrapagens nas obras públicas nos últimos dez anos!

Há quem diga que poeta é pobre,
Há quem diga que poeta é mau,
Mas eu com este poema
Acabei de salvar Portugal!

Lido pela primeira vez no slam da iniciativa Poesia Monumental, no dia 5 de Abril na Galeria Monumental, no Campo dos Mártires da Pátria nº 101. O evento termina hoje às 22h, com o concerto dos Social Smokers.