O cheiro nocturno

Ontem foi mais um concerto dos Social Smokers, o último que dei em Portugal com a banda completa antes de voltar a São Paulo - o que não quer dizer que possam perder a performance que eu, o Silva o Sentinela e o Biru vamos dar amanhã no Clube da Palavra Ao Vivo, no Teatro São Luiz. Seja como for, como estas coisas cansam (ao contrário do que poderão pensar as minhas amigas que vêm do Brasil com a pica toda de rainhas da noite e que me mandam mensagens às 4h e meia perguntando porque não estou no Musicbox). Portanto, era tranquilamente que subia a rua para o meu prédio quando ouço uma voz atrás de mim dizendo "olhe, por favor!".

Viro-me. Dois polícias subiam a rua a correr. Ao lado, na estrada, um carro com um colega deles subia também. Na rua vazia, a visão daqueles dois latagões a correrem era, no mínimo, caricata. Cordial, perguntei "sim, senhor guarda?" e o polícia que me tinha chamado disse "deixe-me ver uma coisa, por favor". "Com certeza", e abri os braços, pronto para, pela primeira vez na minha vida ser revistado na rua - o que não teria sido problemático, já que sempre que vou aos Smokers não levo o revólver.

Mas ele não me queria revistar. Só me queria cheirar as mãos. Cheirou uma, cheirou a outra, disse "obrigado e desculpe". O carro deu meia volta e ele e o colega também e começaram a descer. E eu, cheirado por um polícia em plena rua às 3h da manhã, senti-me usado como nunca me tinha sentido na vida. No entanto, se algum dia aquele agente quiser ascender à posição de perdigueiro, estou disposto a escrever uma recomendação. Só faltou ele ter adivinhado o que eu tinha jantado. Se o tivesse feito, até o convidava para actuar connosco no Sábado.

Poema contra a crise

Há quem diga que a poesia não resolve nada,
Há quem diga que a poesia não é prática.
Mas eu vou resolver esta crise
Com poesia matemática!

O primeiro verso vai custar-lhe mil euros!
O segundo verso vai custar-lhe dois mil euros!
O terceiro verso vai custar-lhe uma participação numa empresa sediada no off-shore da Madeira!

O quarto verso vai custar-lhe uma citação na revista Ler!
O quinto verso vai custar-lhe uma citação no Jornal de Letras!
O sexto verso vai custar-lhe uma citação pelo Tribunal de Contas para um processo que não terá quaisquer efeitos práticos!

O sétimo verso vai custar-lhe uma casa de banho no Palácio de Belém!
O oitavo verso vai custar-lhe uma casa de banho no palácio de um barão de droga colombiano!
O nono verso vai custar-lhe uma casa de banho no Ministério da Cultura de Manuel Maria Carrilho!

O décimo verso vai custar-lhe o tecido das cuequinhas de Angela Merkel!
O décimo primeiro verso vai custar-lhe a tenda que Muammar Kadhafi usou quando veio a Lisboa!
O décimo segundo verso vai custar-lhe a barraca que o FMI vai armar neste país!

O décimo terceiro verso vai custar-lhe uma linha (de coca) a grande velocidade e um aeroporto que não ota nem desota!
O décimo quarto verso vai custar-lhe o ouro do Brasil!
E o décimo quinto verso vai custar-lhe todas as derrapagens nas obras públicas nos últimos dez anos!

Há quem diga que poeta é pobre,
Há quem diga que poeta é mau,
Mas eu com este poema
Acabei de salvar Portugal!

Lido pela primeira vez no slam da iniciativa Poesia Monumental, no dia 5 de Abril na Galeria Monumental, no Campo dos Mártires da Pátria nº 101. O evento termina hoje às 22h, com o concerto dos Social Smokers.

As pastilhas elásticas portuguesas

Sempre que se regressa à terra natal, presta-se especial atenção a tudo aquilo que há de diferente ou de novo. Porém, é difícil encontrar coisas que juntem as duas características. Por exemplo, a demissão de Governos é sempre diferente - mas já não é novo. O reequilíbrio de poderes na Assembleia da República será novo - mas não diferente.

Na minha busca-expresso pelo novo e diferente da Tugalândia, acabei por encontrar um elemento que reúne as duas características a um ponto no mínimo surpreendente: as novas pastilhas elásticas. A primeira que experimentei foi a Chiclets Ice Citrus Crush.Com esta pastilha, a Cadbury Portugal (dona das marcas Chiclets e Trident) tenta o que provavelmente muitos no reino do pastilhiquismo já tentaram e nunca conseguiram: simular o sabor daqueles limões velhos e bafientos que caem para trás da arca congeladora (talvez daí o "Ice") e só se vão apanhar depois de ganharem uma camada entre o verde e o esbranquiçado e um vívido cheiro a coisa pouco saudável. Chiclets Ice Citrus Crush é diferente, sim, mas será novo? O sabor cítrico tem sido, apesar de tudo, uma constante nas pastilhas elásticas, estando só um patamar abaixo dos clássicos Spearmint e Peppermint. Porém, o elemento "Ice" aqui chama a atenção para uma tendência recente de que a nossa próxima pastilha é um exemplo perfeito.
Adoraria ter estado na reunião de marketing que decidiu o nome desta pastilha. Na generalidade, é "cocktail"; na especificidade, é "daiquiri"; e na pentelhice é "frozen". Das duas uma: ou no laboratório de sabores da Chiclets eles têm um sabor "gelo", o que me parece francamente assustador; ou eles não têm nada disso e o "frozen" é trapaça. Seja como for, não deixa de ser um sabor interessante e que chama a atenção. A ideia, afinal de contas, é meritória: substituindo os verdadeiros daiquiris, a Trident permite que os seus consumidores deixem de gastar tempo a comprar rum, açúcar e limão e o gastem no que realmente importa, como mastigar sem engolir.

Confrontados com as inovações de marketing dos comparsas da Chiclets, os senhores da Trident foram obrigados a deitar a toalha ao chão e reconhecer que chegáramos ao abismo, ao verdadeiro "fim da história" fukuyamaico do pastilhiquismo. A situação era grave: não havia mais sabores. Já tudo fora vendido, já tudo fora anunciado. Nenhum fruto tropical desconhecido teria poder suficiente para vender, nenhuma nova mistura de sabores seduziria um público saturado. Como resolver isto? E então uma mente revoltada e cansada por estar a ter ideias até às 4h da manhã sem poder ir para casa genialmente disse: "passamos a vida a dizer ao consumidor o que vai provar. E se por uma vez, e se só por uma vez não disséssemos nada?!" E toda a gente aplaudiu. Assim se criou a Trident Senses Mega Mystery.

Há quem diga que os sabores são laranja e piña colada. Outros dizem que começa por saber a lima, no meio é morango e no fim é ananás. A mim parece-me haver algo de tangerina por ali. Mas a verdade, a grande verdade, é que isso não importa mesmo muito. As Trident Senses Mega Mystery provam algo que toda a gente sabe, mas tem vergonha de dizer: pastilhas elásticas, refrigerantes, rebuçados, o objectivo de tudo isso é meter o máximo de açúcar possível dentro do consumidor. E, ainda que a Trident o substitua por aspartamo, com este golpe eles enviaram uma mensagem muito directa: "o sabor? Que se lixe o sabor!". Obrigado, Trident. Graças a ti, o mundo é um bocadinho menos hipócrita.

Social Smokers a gostarem deles próprios

http://vimeo.com/22044935
http://vimeo.com/22045093
Ontem, disse dois poemas do universo Social Smokers para o canal A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria. Final de tarde no Parque Eduardo VII: O "Liberdade" não podia ter sido em melhor lugar...

A melhor tentativa de engate falhada de sempre...

...foi a que ouvi hoje, emanada da boca de um rapaz encorpado e moreno, suado apesar da t-shirt e das bermudas, que gritou para as profundezas do grupo de mulheres que andava à frente dele "Ò loira!" e que, vendo como ela olhou de relance, mas as mais trigueiras companheiras também, decidiu acrescentar "Era só para a loira! Era só para a loira! Não era para as morenas!", o que fez com que o grupo de mulheres acelerasse a marcha como quem não quer molhar os pés numa onda de parvoíces. Ele, vendo que já ninguém lhe ligava, não quis deixar que elas se fossem embora sem estarem bem cientes da posição dele sobre o mundo e a vida e todas as coisas e gritou com veemência "A gente só gosta de loiras! Só loiras! Viva as loiras! Viva as loiras!". E, curiosamente, foi poucas horas depois de eu ter ouvido isto junto ao Banco de Portugal que José Sócrates anunciou que o FMI vai voltar a fazer turismo em Portugal, perpetuando uma sina de loiros nos virem dizer o que fazer à vida, como já aconteceu nos anos 80, no tratado de Methuen, no Napoleão, nos romanos e até com os Afonsinhos. Por acaso, as vezes em que tivemos outras pessoas que não loiros a mandar em nós foram os espanhóis e os árabes e, do que se ouve dizer por aí, até não correu assim tão mal. Porquê então, de novo, o FMI e não Bin-Laden, por exemplo? Por enquanto, os loiros venceram de novo. Vivam eles, então.

Estudo para personagem

Eu não moro aqui, eu moro na vila ao lado. Eu sou designer de vidro. Não podia fazer outra coisa. O vidro é transparente, moldável, maleável. É material, sensorial. E frágil.

Eu sou como o vidro.

O que eu gosto no vidro é que ele não mente. Se ele está de bem comigo, as coisas correm bem. Se ele está de mal, eu corto-me. Eu posso andar por cima de vidro descalça e não me cortar. Mas também posso fazê-lo e cortar-me toda. Tudo depende de ele estar zangado ou não. Mas às vezes eu ando por cima dele e, a olho, faço peças que ficam magníficas. Tudo depende dele.

Eu penso muita coisa. Mas a pergunta é sempre a mesma: onde é que eu posso divulgar as minhas coisas? Eu moro aqui, trabalho na vila ao lado. Onde é que eu mostro o meu vidro, diz-me?

A semana dos Social Smokers

Se os grevistas da CP tiverem pena de mim, conseguirei chegar a Lisboa para amanhã, 3a feira, estar na Galeria Monumental, no Campo dos Mártires da Pátria 101, às 19h, actuando com os Social Smokers na abertura da exposição de fotografia Magnetic Poetry. João Silveira Ramos, que nos fotografou para o nosso primeiro álbum, expõe aqui as imagens criadas à volta do seu conceito, que inaugura assim o ciclo Poesia Monumental.

Já agora, como moro lá perto, não terei que me preocupar por haver greves nos transportes públicos que me impeçam de chegar ao concerto que os Social Smokers vão dar no mesmo espaço às 21h30 de Sábado, dia 9.

E para os mais impacientes não ficarem tristes (ou os mais tristes não ficarem impacientes), o Clube da Palavra do Canal Q fez-nos o favor de incluir mais uma participação nossa num programa. Começa aos 11m22s do vídeo aqui em baixo. Espero que gostem.
http://rd3.videos.sapo.pt/play?file=http://rd3.videos.sapo.pt/dzfUAnlliNtI8SSiLe64/mov/1

Dos clássicos

Quando Vatsyayana explica no Kama Sutra que há pessoas que já têm um conhecimento prático do Kama Shastra (ou seja, da tradição escrita sobre o prazer sensual), ele escreve as seguintes linhas
Todos sabemos, por experiência própria, que certas mulheres, tais como as filhas dos príncipes e dos seus ministros, assim como as mulheres públicas, são efectivamente versadas na Kama Shastra.
Um país em crise só pode encontrar conforto nelas.

O anúncio do bolinho de bacalhau do Habib's

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=iMp4lVBOHco&w=480&h=390]
Amigos brasileiros, vamos lá a ver se nos entendemos: eu acho que este anúncio está engraçado e, sendo estereotipado, não é preconceituoso. Tudo bem, ri-me e tudo, sim senhor. Mas...

1. Em Portugal, ninguém com menos de 60 anos usa camisas e coletes como este "Manuel", a menos que seja um estudante de Design de Moda com espírito saudosista.

2. Ao longo da minha vida, eu (e só porque cresci no norte de PT, e não em Lisboa, como diz o anúncio) devo ter conhecido meia dúzia de pessoas que diziam "óito" em vez de "ôito" e provavelmente já estarão todas mortas de velhice.

3. O que, eu já percebi, é impossível que vocês entendam é: se querem mesmo imitar o sotaque português, aprendam a modular as vogais. Nós não as fechamos ao ponto de dizer "belinhos", "becalhau", "fela". Definitivamente não as abrimos como vocês, por isso também não dizemos "mais", "restauranti", "piádista". Esta é sempre a grande armadilha em que caem os brasileiros que querem imitar o sotaque português. Aprendam, que eu não duro sempre.

4. Ambos os lugares são muito bonitos. Mas Lisboa não é Olinda, ou Salvador, ou seja lá qual for o centro histórico em que aquelas mulheres estão. Vê-se logo. E, aliás, se elas morassem numa casa daquelas em Lisboa, elas não estariam secando a roupa na varanda, porque teriam um batalhão de domésticos que as secariam com os próprios hálitos.

5. Ninguém ouve vira em Portugal. Para ouvir vira, é preciso ir a um baile de uma aldeia do Norte no Verão e, mesmo assim, ainda vai ser mais fácil ouvirem uma versão de um forró qualquer do que vira. Por isso, parem com o vira. Tipo, acabou. Ok? Ok. Beijos.

O butelo


Um amigo meu, português, mas que passou os últimos meses comigo no Brasil, regressou ao solo luso na semana passada e fez aquilo que, pelos vistos, está inscrito no nosso ADN: comer todas as comidas que, por dificuldade de execução ou por falta de ingredientes, lhes estiveram vedadas na estadia no exterior. Foi o mesmo instinto que me levou a devorar uma chamuça meia hora depois de ter chegado; a comer uma francesinha em cada uma das vezes que parei no Porto; e o levou ontem a perseguir um butelo.

Um butelo é o enchido que se exibe aqui em cima, típico de Bragança e confeccionado com pedaços de carne de porco com osso. Confesso que nunca tinha ouvido falar de tal coisa até que ele me enviou um e-mail dizendo "vou malhar um butelinho com cascas, simplesmente o melhor prato da gastronomia mundial". Disse-lhe que não sabia o que era um butelo. Ele respondeu dizendo que o meu conhecimento da alta culinária tradicional portuguesa era medíocre - eu, que até comia a crista do galo cozida quando a minha avó fazia cozido! audácia! - e anexava a receita. Relatei-a com muito interesse à senhora minha mãe, que reagiu da seguinte forma: "Grande coisa! O butelo dele é o nosso pedro!". Ao que parece, o mesmo enchido era executado aqui no noroeste, também usando o bucho e, como variante, a bexiga do porco, mas o nome diferia. Portanto, um pedro do Minho é um butelo de Trás-os-Montes. Dada a incidência de emigração da região trasmontana para o Brasil, percebe-se porque há tantos nomes estranhos naquela terra.



Do que tenho visto, já não se faz o pedro pelo Minho, mas os trasmontanos não desistem do butelo nem do seu acompanhamento predilecto, as "cascas" ou "casulas", ou seja, vagens de feijão. Parece interessante e revela bem o poder de decisão do povo nordestino. Um minhoto levanta-se à noite com insónia e pensa "o que me apetece é um leitinho e uma fatia de broa com presunto". Um trasmontano levanta-se à noite e pensa "o que me apetece é encher uma barriga de porco com carne e osso, deixá-la a defumar vinte dias, cozê-la duas vezes durante três horas e comê-la com vagens que ficaram um dia de molho antes de serem cozidas e alouradas". Poder-se-ia chamar-lhe teimosia. Eu chamo-lhe resiliência.

Seja como for, um abraço e muita força para o meu amigo. Fico ansioso por provar essa iguaria um dia e espero sinceramente que ninguém lhe chame preguiçoso por decidir comer as cascas com os feijões ainda dentro.