Uma história pessoal

Uma vez, quando eu era pequeno mas já tinha idade para ter juízo, o meu avô, que tinha andado pelos órgãos autárquicos da vida, fez-me prometer-lhe que não me meteria na política. De uma maneira ou de outra, sempre lhe fiz a vontade. Assumo opiniões, mas não aspiro a jobs. Mando-me a discutir, mas não assino cédulas nem pagarei quotas. Concordo ou discordo e renego a disciplina. E a verdade é que ele tinha razão, pois há-de haver sempre um cargo político a mais à face da terra. Num mundo perfeito, poderiam entender a derradeira afirmação? Poderiam. Mas não seria a mesma coisa.

Tu, baterista com quem falei ontem, tens razão, porque o rock



(A famosa pose "quem és tu, romeiro?"; ver aqui por volta dos 4m12)

é mesmo a celebração cega do indivíduo, a coisa mais egoísta, manipuladora e incrível. Sim, porque que mais se pode chamar a um som pensado para conduzir o público através de pulsões à celebração de um gajo com esta entrega, seja ele um génio chamado Iggy Pop ou um idiota saltitante chamado David Lee Roth? Isso é o que muitas vezes se esquece quando se faz uma banda, quando três a cinco putos decidem entregar-se ao som e à arte e se esquecem de que é preciso quem dê som e é preciso quem dê show. O rock tem de levar à idolatria, à entrega cega a alguém que consiga pôr toda a gente a olhar para ele e, durante umas horas, deixar todos mais à beira de um êxtase desconhecido. Se Iggy Pop aqui tivesse querido seguir em frente para a pilhagem, tinha-o conseguido. O concerto rock é - deve ser sempre - uma espécie de sucedâneo para a experiência do motim. E por isso é que é preciso ter cuidado com as flores e as luzes e as maquilhagens pipis, porque isto não é para ser bonito, não é para ser respeitável, não é para ser animado - é para ser do caralho. Acho que concordamos. Que tudo te corra bem nos teus projectos, compres lá a Ludwig em Braga ou compres uma de raiz ao contacto que te deram. Sê do caralho e vai tudo correr bem. Agora vou só ali comer uma sandes de manteiga de amendoim e já volto.

OS NANDAMENTOS

(escrito para o espectáculo dos Social Smokers de 22 de Abril)

1. Não afagarás os joelhos do próximo.
2. Não falarás com mulheres de barba.
3. Não criarás documentos do Microsoft Word que precisam de conversão para serem lidos por versões mais antigas do Office.
4. Reconhecerás sempre o dever de te rires da classe política.
5. Não saxofonearás o Zé Lencastre do próximo.
6. Amarás as pessoas acima de todas as coisas.
7. Babar-te-ás durante o sono.
8. Orgulhar-te-ás da distribuição dos teus pêlos corporais.
9. Honrarás a memória dos teus animais de estimação falecidos.
10. Não Sentinelarás o Silva do próximo.
11. Viajarás principalmente de transportes públicos.
12. Nunca aprenderás a estacionar um carro devidamente.
13. Andarás sempre com o livro de recibos atrás.
14. Pendurarás nos ombros tudo o que conseguires.
15. Não Cortezarás a próxima do Alex.
16. Farás xixi e irás para a caminha.
17. Nunca saberás explicar muito bem o que fazes na vida.
18. Nunca saberás muito bem o que fazes na vida.
19. Aprenderás muita coisa que te vai sempre ser útil.
20. Não Biruarás as Queijas do próximo.
21. Serás um bom rapaz que todos os dias fala com os pais.
22. Serás um mau rapaz que todos os dias tem pensamentos impuros.
23. Serás um homem assim-assim.
24. Não calarás o que tens para dizer, mas nunca dirás o suficiente.
25. Não Joãopedroarás os vídeos do próximo.
26. Respeitarás todos os homens, até o Filipe Fonseca.

JVN na Rua Larga n.º28

Já saiu o novo número da revista Rua Larga, em que colaboro com o texto Lisboa, 13 de Março de 2010.

As repetições

O dia começou no Ministério da Administração Interna, onde umas senhoras muito simpáticas me fotografaram, recolheram impressões, registaram assinatura, receberam pagamento, passaram recibo. Encontrei lá duas pessoas que iam para o Brasil. Fomos tomar café. Falei da língua geral, a tal que se falou no Brasil na época dos Bandeirantes e que misturava o português com o tupi, a tal que o Marquês de Pombal proibiu, a tal que tem o mesmo nome da editora do José Eduardo Agualusa. Pensei nisso nesse momento e apercebi-me pela primeira vez como o José Eduardo Agualusa tem tudo a ver com o seu nome. À tarde, fui escrever para o Kaffeehaus. Depois de uma hora, olhei para o lado e lá estava o José Eduardo Agualusa, numa mesa ao fundo, conversando. E eu pensei "olha que engraçado". Fiz o que tinha a fazer, fechei o computador, segui para a Fnac para gastar algum tempo. Enquanto tentava perceber os títulos de livros mais ridículos das últimas fornadas, apareceu-me o José Eduardo Agualusa, também a cirandar pelo meio dos livros. E eu pensei "olha que engraçado". Logo encontrei um amigo que trabalha no Governo Civil e que, portanto, tinha acabado de passar à frente do Kaffeeehaus. Procurava uma prenda para uma amiga de uma colega de trabalho. Ajudei a procurar a prenda e, quando estávamos a sair da Fnac, o último livro que vi tinha uma citação do José Eduardo Agualusa. E eu pensei "olha que engraçado". À noite, voltei a falar do Brasil com mais algumas pessoas, mas não repeti a história da língua geral. Não voltei a ver José Eduardo Agualusa.

O dinheiro

Sempre que gasto dinheiro, percebo: nada é mais fácil. De uma maneira ou de outra, se não há notas há cartão, se não há cartão dá-se algo de penhor, vai-se levantar, faz-se o resgate. Um advogado da Figueira da Foz contou-me que uma empregada dele dizia "o dinheiro não é de quem o ganha, é de quem o poupa". "Uma senhora com a terceira classe", sublinhava ele. Não sei mais do que isso sobre a mulher, mas dele sei que era filho de pescador, que um dia o pai não voltou da faina quando era esperado e que se lembrava de ir para a praia de madrugada com a mãe e a tia mais as mulheres dos outros a pensar que podiam estar viúvas, e que de madrugada gritaram contra o mar e Deus e a vida e o futuro que não sabiam, choraram aquela forma de desespero que não compreendemos, aquela em que não há culpa, só o reconhecimento da nossa derrota no jogo contra o acaso. E gastar dinheiro é isso, é uma certeza recorrente e acessível, como uma bebedeira, uma oração ou a Construção do Chico Buarque. O vício ocidental de gastá-lo não tem a ver com o que se compra, mas com a certeza que comprar implica. Certezas num mundo caótico são coisas raras. E caras também.

Cais

British Bar. O retrato do Cardoso Pires lá em cima, e eu perguntando-me se ele terá estado sentado na mesma cadeira, bebido uma Budweiser checa de pressão porque não têm de garrafa e não há por que sentir pena. De certeza que não estava a dar luta livre feminina  num televisor de canto de parede, que os empregados não eram os mesmos - ou será que estava, ou será que eram? Antes, passear ao lado do Cais do Sodré, ouvir o ar atravessar os respiradouros no chão, ser respingado pelos pingos daquela respiração de animal velho que luta contra a morte, lutou todo o tempo contra a morte. Lá ao fundo, a água muda de cor no momento em que deixa de ser da terra, em que se liberta e transforma em algo de selvagem e elementar que homem algum tocou. Imaginar nadar através dela, o momento em que o corpo muda de água para água. Os barcos ao longe, levando pessoas de uma margem para a outra e eu pensando: "nunca fui à outra margem de barco". Mas, pensando melhor, "nunca" também é longe demais.

SÓ HOJE: PORTES DE GRAÇA NA BUBOK



Hoje, sexta-feira dia 16 de Abril, os portes de envio na Bubok são de graça. Aproveitem para encomendar o meu livro Viagens na Minha Peste por quase metade do preço!



Mas, já agora, se não o fizerem... comprem este, que é provavelmente do melhor que lá anda.

Amador

Hoje estive na Loja do Cidadão a pensar no tempo fenomenológico e como os minutos passam tão devagar quando se está à espera e tão depressa quando se age. Por isso, decidi sair e agir e, portanto, fui a um sítio aonde nunca tinha ido: à livraria do Teatro Nacional D. Maria II. Não é o sentido mais vantajoso para a expressão "tempo é dinheiro", mas encontrei a revista n.º3 dos Artistas Unidos, de que andava diletantemente à procura desde que em 2007 fiquei de boca aberta a ver a peça Amador - e, não, isso não quer dizer que bocejei, mas que fiquei pasmado com aquele quase-monólogo e muito curioso sobre o modo como a peça estaria escrita. Depois de uns 15 minutos à procura nas coisas do Jon Fosse, lá descobri que a peça é na verdade de Gerardjan Rijnders, que eu nunca conheci, mas que de certeza possui um grande par de testículos, pois qualquer pessoa que escreva uma peça quase em verso que começa com a indicação "o texto representado pode divergir do texto publicado" e contém a didascália "(peter faz amor com a mãe, orgasmo)" só pode ter um grande par de testículos. E isso não impediu que ainda tivesse de voltar à Loja do Cidadão e esperar que umas 100 pessoas fossem atendidas até chegar a minha vez, orgasmos não incluídos.

"Introduction" ("Cruel Shoes", de Steve Martin)

Vais por uma estrada campestre. Está uma tarde tranquila. Olhas lá mesmo para o fundo da estrada e vês alguém a andar na tua direcção. Estás surpreendido por teres percebido uma pessoa a tão grande distância. Mas continuas a andar, não esperando mais do que um aceno amigável quando se cruzarem. Reparas que ele tem cabelo laranja e brilhante. Está mais perto - um fato de cetim branco com pontos coloridos. Mais perto - uma cara pintada de branco e lábios rubros. Tu e ele estão a cinquenta metros de distância. Tu e um autêntico palhaço com uma buzina, separados por vinte metros. Aproximam-se na solitária estrada campestre. Tu acenas. Ele buzina e passa.

Táxi Mistério

Fiz a viagem até Lisboa a dormir. Dois dias a trabalhar até tarde deram cabo de mim a um ponto de me encontrar perdido no meu cansaço, como se acordar de repente quando as luzes da auto-estrada me batiam na cara fosse emergir de surpresa em água gelada, vir à tona ganhar respiração quando já não se pensava sair. Foi nessa hipnose que entrei no táxi, indiquei o destino e me deixei ficar a ouvir a música que passava lá dentro, que não era nada que se assemelhasse a M80 ou Rádio Amália. Desculpe lá, ò amigo, isso soa muito bem. O que é?, e o homem olhou para mim pelo retrovisor e disse Isto é jazz-rock, tem 30 anos, o disco chama-se "Ripping Stones" e o músico é o Stanley Jordan. Para o caso, é irrelevante que Jordan só tenha começado a editar em 1982 e que não encontre nenhum título remotamente semelhante a esse na sua discografia - relevante é que o taxista, que andava depressa e tinha olhar de quem não é parvo nenhum, perguntou Gosta?, eu respondi que sim, ele continuou Então também vai gostar mais alto, e encheu a noite do Conde Redondo com finger-tapping.

A compostura

Ali atrás a televisão está a dizer que "temos de ser uns para os outros". Ao meu lado está o poster de um filme de que eu nem gostei acima de tudo, mas que pendurei porque sim, porque não há por aí posteres de filmes aos pontapés e este até é bonito, imita o estilo dos posteres de concertos psicadélicos dos anos 60 e está tudo onde deve estar. A janela tem a persiana aberta, mas vivo num quarto andar e ninguém me pode ver. Há um mapa semi-caído, dependurado da parede, mas só o vou ajeitar no domingo, porque esse é o dia que eu reservei para me preocupar com coisas assim. Segunda-feira preocupo-me com outras coisas, no domingo com essas e, de cabelo branco em cabelo branco, tudo se há-de compor, não?

A luta

Quem é que quer alguma coisa com a luta? Temos televisão, internet, jornais, livros, álcool, tabaco, tabaco-que-faz-rir, frigorífico que refresca tão bem a cervejinha, máquina de lavar roupa e loiça, carro, casa, sofá a condizer com os móveis da sala, aparelhagem, aquecimento-central. Luta? Lutar? Para quê?

Justificação dum Pente 4

E, de um momento para o outro, os sentidos perdem-se porque alguma coisa desapareceu. Dormir: porquê? Ir comer: com que fim? O que fazer nos finais de tarde e depois do jantar, aqueles tempos que já tinham donos e fins bem, bem precisos? A questão em causa não é, como a poria um adolescente, a da utilidade da vida, mas a da finalidade daquilo que ela tem de ocupação do tempo. Entretenimento, conhecimento, vaidade: se quisermos ver até ao tamanho mínimo, tudo é passatempo avulso a precisar de justificação, como um preso num tribunal. Eu posso fazer desaparecer o cabelo só porque o cabelo comprido não serve para nada. Eu posso fazer um manifesto anti-sol só porque trabalho numa cave e não tenho uso para a luz natural. Eu posso fugir e isolar-me só porque não tenho utilidade para a companhia. Tudo isso é possível. Porém, este porquê não é um que se responda: é um porquê que se encontra. E, no caso do meu cabelo, foi muito difícil encontrá-lo num momento em que me vi ao espelho pelos meus próprios olhos, sozinho.

O silêncio

Um dos monólogos que mais me tocou aqui na moleirinha foi o da Michelle Pfeiffer no The Fabulous Baker Boys, o da discussão com o Jeff Bridges: "Every time you walk in those places, you're selling yourself cheap. l know all about that. l find myself at the end of the night with some creep, and l tell myself it doesn't matter. You kid yourself you've got this empty place inside to put it. But do it long enough and all you are is empty". É mais uma daquelas coisas à volta das quais anda toda à gente sem saber muito bem como resolver, porque o trabalho e o filho e as aulas e as contas e os terremotos ocupam o tempo todo e fica por responder a pergunta: como se preenche o espaço vazio? Desde os meus amigos jornalistas, que têm as colunas de papel a preencher com letras e imagens e o ar de rádio, que está morto a não ser que seja varado por palavras, até aos meus amigos contabilistas, que todos os dias se sentam ao computador com folhas de Excel a olhar para eles, ninguém é indiferente à questão. E esse é um problema que os aparelhos não têm, porque já enchi o disco do Sony Reader com e-books e o do disco externo com tudo o mais e difícil será que eles fiquem com o peso aligeirado. Ou seja, os aparelhos não têm problemas com o silêncio; esse é um problema só nosso, humano.

Presente:

s.m. Acto de remediar o passado. O.m.q. "andar constantemente pelo mundo como que a resolver equações com desconhecimento de pelo menos uma das variáveis". Momento cujas existência e percepção nunca se encontram. Geralmente benigno.

The Invention of Lying e Adaptation

Qualquer argumentista, dramaturgo ou alguém que alguma vez tenha lido um manual, sebenta ou rabisco sobre a construção do texto dramático conhece a importância da palavra subtexto. Um literato poderá chamar-lhe uma nuance da metáfora; um psicólogo irá logo decerto sacar para fora o id, ego e superego; e alguém mais preocupado com os reflexos quebradiços entre arte e realidade dirá que não é mais do que uma versão do que acontece no mundo, onde ocultamos a verdade crua do que dizemos e fazemos, até porque, na maior parte das vezes, essa verdade nos escapa. A comédia é a arte do conflito por excelência, por isso, nunca seria de esperar que nela nascesse uma obra como The Invention of Lying, onde Ricky Gervais cria um mundo onde a mentira não existe e, mais longe do que isso, onde toda a gente tende a dizer tudo o que lhe vai pela alma. Ou seja, The Invention of Lying é, à primeira vista,  um filme sem subtexto - ou melhor, um filme onde todo o subtexto é concentrado na personagem principal, a única em toda a Humanidade que consegue mentir (ainda que não saiba que nome dar a isso). O modo como o filme contorna essa quase armadilha que colocou a si próprio é um dos seus aspectos interessantes - vejam o jantar de Anna com Brad Kessler. Outro é o modo como a personagem principal, ao inventar a mentira, inventa também o entretenimento e a religião. Não era mau reler os situacionistas, não. Adaptation, curiosamente, também trata do entretenimento e da vida, traçando o paralelismo entre a construção de ambos. Quando o vi há 8 anos, pareceu-me que o último acto fazia uma concessão àquilo que condenava no primeiro - os clichés superficiais da história holywoodesca - mas compreendo agora que o metadiscurso sobre guionismo nunca poderia estar completo se assim não fosse. O jogo de espelhos é levado a tal ponto, a progressão da escrita está tão enrodilhada na progressão do tempo diegético (e não só) que uma não poderia existir sem a outra. É, com certeza, o antecessor directo na cabeça de Charlie Kaufman de Synechdoche, New York, onde o tempo é o tema e matéria ficcional (nas palavras de Rogert Ebert ao considerá-lo o melhor filme da época, "it isn't about a narrative, although it pretends to be. It's about a method, the method by which we organize our lives and define our realities"), é o filme definitivo sobre a experiência de escrever um argumento e, talvez, o filme definitivo sobre o acto de escrita em si mesmo.

Uma breve história de fracassos

Fui a um museu e vi uma das placas metálicas com que Alves dos Reis falsificou dinheiro. Ou melhor, com que quase falsificou dinheiro, porque o golpe famoso que deu série de televisão era com notas de quinhentos escudos. A placa de mil que vi era para uma fraude posterior, que ele não chegou a levar a cabo porque já tinha sido apanhado.

Também vi as chapas que serviram para as FP-25 criar um cubículo de cerca de 2mx1m no meio de uma floresta, no qual planearam prender a vítima de um sequestro até que chegasse o resgate. Nas fotografias da operação policial que encontrou a coisa por baixo de um monte de galhos e terra, viam-se pacotes de Compal e comida. Seriam a ração. O plano foi descoberto e as placas ficaram sem uso.

No espólio fotográfico havia belos negativos de vidro de fotografias probatórias, as famosas mugshots. Nunca tinha visto um negativo de vidro. Alguns já tinham 90 anos e o detalhe era irrepreensível. A guia disse não resistir a uma provocação e perguntou-me se conseguia adivinhar quem era o homem retratado num positivo que tinha em cima da mesa. Olhei para ele e reconheci o Mário de Sá-Carneiro. Não há notícia de o escritor alguma vez ter estado na prisão, mas A Confissão de Lúcio começa precisamente com a frase "Cumpridos dez anos de prisão por um crime que não pratiquei e do qual, entanto, nunca me defendi, morto para a vida e para os sonhos… nada podendo já esperar e coisa alguma desejando — eu venho fazer enfim a minha confissão: isto é, demonstrar a minha inocência". Portanto, talvez aquele não fosse Sá-Carneiro, mas Lúcio. Seja como for, estava demasiado sorridente.

O que o meu avô disse ontem

Amanhã é Domingo
De pé de cachimbo.
E o touro é bravo.
Arreguicha o rabo
e dá uma pinga ao Nelo do Cabo!

Casa nova

Nos últimos meses, o mundo sofreu muitas incertezas e apenas uma coisa se tem afigurado segura: a minha necessidade de concentrar num único sítio as páginas, conteúdos, blogs futuros e passados e quejandos que tenho vindo a acumular ao longo do tempo. A necessidade de transformar o jvnande.com, que já existia, mas só redireccionava para um espaço ainda muito estático, impôs-se assim, de mansinho, como um milhão de euros a sair de uma conta estatal.

Este novo espaço - e o à-vontade com que digo isto leva-me a pensar que ainda há uma bela carreira de agente imobiliário à minha espera - tem várias novidades, principalmente as secções Imprensa, onde juntarei os artigos (online ou não), reportagens e entrevistas onde vou aparecendo, e Ver/Ler/Comprar, onde porei o maior número possível de filmes, textos e restantes produtos da minha autoria. Enfim, uma espécie de baú para guardar coisas, ao contrário da categoria "textos" que podem ver aqui ao lado, para onde irão as publicações correntes.

Os geeks de entre vós já terão percebido que, depois de muitos anos com o Blogger, rendi-me ao Wordpress como plataforma. A razão principal é simples: páginas estáticas. E mais não digo. Não porque não queira, mas porque não sei. Algumas secções ainda se encontram em construção e é razoável esperar que os próximos tempos ainda sejam de trabalhar no código, de limpar e polir e pôr bonitinho, para a minha mãe não passar vergonhas por causa do rapaz. Mas também é razoável esperar exactamente o oposto. Por isso, vão passando por cá e, olhem, tenham esperança.

Tradução de um poema de Allen Ginsberg

UNDER THE WORLD THERE'S A LOT OF ASS A LOT OF CUNT

Dois textos de Daniil Harms

Algo sobre Pushkin e A Conferência.

Divine Comedy

Divine Comedy, de Julian Gough, um dos melhores ensaios sobre Comédia que já li.

Yau e Drummond

Tradução de In the Kingdom of Poetry, de John Yau, em referência a Carlos Drummond de Andrade.

Duas traduções de Bob Dylan

It's Alright, Ma (I'm Only Bleedin') e Ballad of a Thin Man.

e.e. cummings

Tradução de um texto de um dos meus autores preferidos.

The Other Mexico: Critique of the Pyramid

Tradução de um excerto do livro de Octavio Paz.

Numa sala cheia

Talvez poema, talvez não.

já não consigo digo

Menti. O poema é meu.

O poema

Sim, eu perdi. A partir de Manuel de Freitas, Jorge Melícias e João Luís Barreto Guimarães.

Os poemas antigos

Para recordar tempos de masoquismo.

5 microcontos sobre o desejo

Escritos para o número 11 da revista Minguante.

O Parênteses

Um pequeno conto escrito para os leitores do meu antigo blog. Joaquim Nando ainda teve continuação.

Um microconto de Natal

A minha primeira incursão pelos terrenos da micronarrativa.

People try to put us down

Não consigo concordar com Samuel Úria, com quem partilho geração. Não seremos progressistas no futuro porque não o somos agora e metade dos adultos que conheço, à frentex para o seu tempo e parceiros de revoluções ou movidas e coisas parecidas, queixam-se dos filhos que se querem casar, perguntando quem é que se casa. Sim, quem é que se casa, a não ser um exército que cresceu a ouvir contos de fadas? Olho à volta e não vejo progresso. Nos olhos há medo, nos ânimos confusão. We know not what tomorrow will bring e, sim, pode sempre arguir-se que a necessidade aguça o engenho e, entregues a nós próprios, menos dependentes do conforto da vida persistiremos. Mas a minha geração não vai ter velhos jarretas, nem censores do restelo, nem reaccionários quadrados? Achas mesmo, Samuel? Fechamos os olhos ao presente ou devemos contar com um futuro que nos regenere?

It's just a restless feeling by my side

Fala-se de melancolia, mas perfeição é esta, a da ainda-manhã de domingo, com o lastro desarrumado da semana à minha volta e as pernas frias a sofrerem da preguiça do dono. Há dias escrevi algures a nota "começamos a entrar na idade em que as coisas se vão perdendo", mas não sei exactamente o que isso queria dizer. Isto, porém, nunca se perde: o silêncio, o prazer de um tipo se sentir solidamente consigo no meio de uma desarrumação reversível. A solidão, insuportável à noite, é apetitosa agora.

A meio, o fim

Quanto tempo demora até que tudo fique igual, ouço perguntar dentro da minha mente (o que não quer dizer, atenção, que a pergunta seja minha). De outro modo, poder-se-ia dizer que é precisamente por estes meados de Janeiro que se descobre que resoluções de ano novo valem ou caem por completo. Eu, por mim, fiz uma. Tem-se aguentado, com algum sacrifício. Se assim não fosse, o falhanço seria total. É o problema de se ser pelo fatalismo no mundo e achar que não há nada de muito sólido, ou que se desmanche no ar, ou que se chame poder transformador da mente. Quanto tempo demora até que tudo fique igual? Resposta rápida: nenhum.

O regresso

Entre viagens planeadas e viagens feitas, um tipo começa a perguntar qual é o sentido disto tudo, o que ajuda a compreender porque é que a assistência das igrejas é de faixa etária mais avançada. Aí ainda não cheguei, mas tenho de me sentar nalgum lado a esquecer-me da vida, por isso fui ao cinema comer pipocas. O Avatar do Cameron não é tão fascinante como o Avatar do Carnivale. O eyeware, ainda assim, é mais à maneira. Ainda me lembro de uma transmissão muito anunciada d'O Monstro da Lagoa Negra na televisão, aí para 1986. Até a TV Guia andara na distribuição de óculos de armações de cartolina com lentes de acetato vermelho e azul e depois não deu em nada, já não sei porquê. Ora, os do Avatar não só funcionam como são de armação de plástico de massa com lentes escurecidas. Durante aquelas horinhas, podemos fantasiar a gosto que somos o Woody Allen ou o Pinochet e optar por soprar no clarinete ou mandar entrar a caravana da morte. O problema é que o filme acaba, a Michelle Rodriguez não se dá bem e um tipo pergunta-se qual é o sentido daquilo tudo, o que implica outra viagem e, claro, um sítio diferente para se sentar.

Um clássico

Na casa natal, vi passar na televisão um Concerto de Ano Novo da Filarmónica de Viena. Chamou-me a atenção a valsa "Vinho, Mulheres e Canções", que não consigo de pensar como eufemismo de Strauss para se referir a huren und grüne wein na Viena novecentista. O meu avô é sempre o grande responsável por se deixar ficar no canal com música clássica e também descobri porquê: foi amigo do maestro Miguel de Oliveira, líder da banda musical durante vinte anos. Compôs De Cádiz a Tanger e teve um primo do meu avô na trompa. Este primo, curiosamente, chamava-se Fausto.

2010

Fui às compras para o fim-de-ano e não consegui deixar de pensar, ao ver os congelados com ar triste dentro da arca, nos lombos rubros do camarão-tigre que comi por uma ninharia no Clube Naval de Maputo há uns anos. Sou sincero, nesse momento pensei "nunca comi coisa igual". Também nunca tinha sentido na pele a coisa estranha que senti quando disse que não achava o Acordo Ortográfico maningue nice e um escritor moçambicano me respondeu que os portugueses gostam de se sentir donos da língua. Acordo Ortográfico que, por acaso, é tema de capa no Público de hoje e lá se diz que Moçambique não está a achar a cena maningue nice também, tanto que ainda não o ratificou. Quem o curte tótil é o Brasil, e o meu ano que vem vai passar muito por esse país. Por isso, bom 2010.

Jorge Vaz Nande

Nasci no Minho, moro pelo Minhocão.
Ganho a vida escrevendo.
Gosto de histórias, de palavras e de imagens.
@ nas redes (quase) todas: jvnande.

mensagem

Sempre que o fazes pões-te em causa. Não há como não acontecer. Se corre bem, vais conseguir fazê-lo para sempre. Serás adorado por isso, vão pedir-te que repitas uma e outra vez. Se correr mal, não vais saber repentinamente onde estás ou quem és. Vais pensar que vais sempre falhar e que não estás no caminho certo. Vais achar que precisas de reformular a vida toda, que algures pelo caminho baralhaste as prioridades e agora, quê?, agora não tens mais a fazer do que seguir em frente, aproveitar o balanço da onda e esperar que não pare de repente, que te continue a levar por terras que não conheces sem que tenhas de dar aos pés. E, de repente, um dia, pam!, caíste e vais ter de descobrir o melhor lugar para dar o primeiro passo, para te voltares a erguer, para olhares o céu, contar as estrelas e aprender tudo outra vez. É mesmo assim, alguém te vai dizer. E é mesmo.

Simiolitude

Precisamente no dia em que A Origem das Espécies fez 150 anos, no eléctrico vi ser lido um paper de título Genes e Ambiente: Um Modelo Evolutivo da Linguagem. E o mais extraordinário é que quem lia era um macaco.

Diz-me onde entroncas

Mais do que pelos legumes gigantes e avistamentos de ovnis, o Entroncamento fascina pelo nome. Não tem qualidade orográfica como Monsanto, religiosa como São Bento da Porta Aberta, política como Vila Real. Não tem nada a ver coma História dos Comportamentos, como Odivelas (onde o rei ia às putas - "ir de vê-las") ou Freixo de Espada à Cinta (terra do famoso esgrimista José Freixo). O Entroncamento tem nome por cruzar ferrovias. Podia chamar-se Ramal, Carril ou Pouso de Pica-Bilhetes. Só me lembro de um caso semelhante, um lugar pouco antes da estação de Ermesinde que se chama Travagem - e juro que não estou a inventar. Era giro que houvesse mais destas coisas por aí. Sítios com grande circulação automóvel podiam chamar-se Engarrafamento. Por esse país fora, espalhar-se-iam as vilas chamadas Rotunda. Poderíamos ter uma Lomba mesmo antes de um Semáforo. E porque não passarmos dos transportes para os afectos? Se em Alfama há um Largo das Pichas Murchas, o que impede que haja uma Praça do Desgosto? Uma Avenida do Matrimónio? Um Beco da Má Queca? Talvez isso ajudasse as gentes do Entroncamento a sacudir a sensação de que a terra deles é só o que nasceu à volta da linha de comboio. Afinal, à volta de qualquer coisa se fez tudo. Este texto também é só o que apareceu à volta duma conhecida crónica de um conhecido escritor. Daí o seu nome.

Uma mulher que vende o exclusivo do seu implante mamário a uma revista NÃO ESTÁ "a envelhecer bem"

Há pouco, no Chiado, vinha do jantar de aniversário da Susana e cruzei-me com um actor nocturno enquanto ia para o metro. O monólogo dele consistia em "A minha mãe dizia para eu mijar no penico. Eu perguntava 'qual penico?' e ela dizia 'o que tens debaixo da cama'." Quero acreditar que esta história tem algum significado profundo, como "debaixo de cada cama há o penico que a mãe deixou", mas, antes de aí chegar, quero lembrar aquele homem que, há dez anos, ainda eu andava de expresso no sobe-e-desce de Coimbra-Monção, vi na estação do Porto a mijar para um canto (com a casa de banho a 3 metros), a andar desorientado, a entrar no primeiro autocarro que viu e a cair no primeiro lugar que encontrou. Adormeceu profundamente, a respiração a fazer-lhe subir e descer a generosa farripa de cabelo que lhe caía sobre a testa. Então o autocarro arrancou e eu pensei, algo aflito, "aquele homem não vai ter bilhete! Vão acordá-lo, ele ainda vai estar bêbedo, não vai ter bilhete, vão expulsá-lo e ele vai morrer enregelado e bêbedo!". Não soube de mais nada, mas o que lhe aconteceu nunca vai ser tão interessante como o que lhe podia ter acontecido. E isto é tudo o que se pode dizer sobre a Maya.

A rima

Foi há umas semanas. Eu, a Ana, a Francisca e o António voltávamos para os carros depois do pequeno-almoço de Domingo em Campo de Ourique. Eles iam voltar para Coimbra, nós íamos voltar para a Estefânea. A Marilyne e a Diana ficaram-se pela Estrela, mas não é disso que quero falar. Eu quero falar de: ao voltarmos para os carros, vimos um homem estático à frente do Pingo Doce, olhando para um cão que estava amarrado a um poste pela trela. Este, gozado e sem lhe conseguir chegar com o focinho para arrancar uma boa dentada, rosnava-lhe naquele tom irritantemente almodovariano (i.e., desesperadamente à beira de um ataque de nervos) que só alguns cães conseguem fazer. O homem estava todo vestido de preto e depois disseram-nos que era "sacerdote". Pois bem, há dias, quando subia dos Anjos para a Estefânea, vi um homem ladrar. Não estou a mentir: um ser humano, na rua, ladrava a plenos pulmões como se fosse a sua primeira língua. Não tinha o rigor de vestuário do outro e não sei se havia um cão estático à frente dele. É possível que o homem estivesse amarrado a um poste por uma trela, até que essa fosse a sua forma particular de rezar. É possível. Neste mundo não se sabe nada e a noite, as vezes, é escura demais.

Ontem, hoje e amanhã

As horas estão a acabar a ouvir Gotta Serve Somebody do Dylan e a descobrir que o Lennon escreveu Serve Yourself em resposta. Sobre a mesa, tenho três livros de teatro, um copo e uma tigela, cada uma com a sua colher, muito papel e o dvd do filme do Paulo Vicente, que ele fez o favor de mo enviar. Ao meu lado, pendurado por dois pionaises no fundo do quadro de cortiça, está o poster do Taking Woodstock. Não sei muito bem porque o tenho, para além de ter sido grátis. Na outra parede, já fora do escritório, está a fotografia autografada do Bogosian. Disseram-me há semanas que eu lembrava ele, é mentira, eu gostei. Depois do McKee, achei que a minha vida precisava de um hambúrguer. Fui ao McDonald's de Roma, que por acaso fica ao lado do Londres, apanhei molha, mas comi o hambúrguer. O mobiliário está mudado, ninguém ao meu lado pediu o McRoyal Deluxe e ainda tenho de cortar as unhas contra o tempo. Amanhã vai chegar e quero unhas cortadas para não o magoar sem querer. Gotta serve somebody: serve yourself.

Conversa de Anas

Estou tão cansado que pondero cometer o acto vergonhoso de me deitar à meia-noite, mas antes quero partilhar o diálogo que clandestinamente cresceu na minha folha de papel durante a oficina de escrita de canções do mestre Gimba:
Aná-Fora e Ana Diplose encontram-se.

ANÁ-FORA
Ana quem?
Ana sou eu!

ANA DIPLOSE
Eu é que sou a Ana,
Ana, e mais ninguém.
Eu disse que estava cansado. Saudações.

O hipopótamo e a avestruz

Foi há dias, na hora do almoço, que a Popota apareceu a cantar Buraka. Na conversa que se seguiu, defendendo o grupo contra algo que já não interessa, disse que o kuduro, o funk carioca e o dancehall jamaicano não são assim tão diferentes, o que faz pensar que, muito provavelmente, quando se está "em vias de desenvolvimento" o desenvolvimento se faz pelo cu do povo, que, portanto, o tem de abanar sob risco de atrofia. Seja como for, a verdade é que, se este ano a Popota descobriu as ancas, a Leopoldina descobriu as mamas, o que não deixa de ser deprimente: a hipopótama pôs-se a dançar, mas a avestruz pôs silicone. Triste, muito triste.

No reino

Hoje subi e desci a Avenida (mentira, só subi). Tive de tratar de um assunto de trabalho e revelou-se a melhor opção para apanhar depois o autocarro. Por acaso, trabalho na área de entretenimento e, também por um natural e perspicaz acaso, o assunto tratou-se perto da Faculdade de Ciências Médicas, onde, a certas horas do dia, não se disfarça o cheiro acre que me entrou pela primeira vez nas narinas quando vi a autópsia de um homem que morrera atropelado e que fora desmontado e voltado a montar tantas vezes que, para o abrir, bastou puxar o fio que lhe unia o peito cortado ao meio. A vida, já se sabe, é uma merda: há por aí animais perdidos a chamar pelos filhotes mortos, há mães e pais sem censura a quem o acaso rouba as crianças para sempre. Por mais que subisse e descesse a avenida, o cheiro ficou-me entranhado outra vez. Se o quiserem reconhecer, pensem em algo proibido, cujo simples pressentimento vos faça mais próximos da perversão. No Reino de von Trier um anatomista compara o medo à intimidade com o medo aos mortos, talvez por isso mesmo: aquele cheiro diz para não estar perto dele a menos que queiramos que a morte nos invada. É um dos casos em que as narinas, e não os olhos, são a entrada para a alma.

O espectador duplo

Hoje, o actor disse na rádio que compreendera a raiz do seu novo espectáculo quando, encostado a uma parede observando, se compreendeu espectador de algo que não precisava dele para existir. A parede em causa era a de uma cozinha, onde "chefs" se ocupavam a ser "chefs". E eu pensei: quantos momentos parecidos temos na vida, daqueles em que os outros se nos colocam à frente como páginas de um livro? Bocejos numa paragem de metro. Um diário a ser escrito numa mesa de café. Gemidos numa sala de espera das urgências. Lágrimas num funeral. Pensei naquela vez em que subi uma montanha num dia claro. Tudo tão longe, tão inacessível, as dolorosas consequências do mundo não me alcançavam. Assim os Gregos pensavam a Comédia, como dizia Julian Gough: a perspectiva dos deuses, não a de quem também pode adoecer e morrer. Grande dilema: ver de longe, como um deus, ou de perto, como um homem. E, pensando bem, sempre encostado à parede.

Das Creative Commons ao Acesso Aberto

Se reparou na data deste post, não se preocupe: não sou um viajante no tempo, apenas editei a data para coincidir com o primeiro texto que escrevi sobre as licenças Creative Commons, criadas em 2002 por Lawrence Lessig, professor de Direito em Harvard.



Na época, escrevi a seguinte afirmação, que mantenho:
O sistema Creative Commons [é] interessante, porque ele dá um passo à frente naquilo que é a concepção do direito de autor: aqui, o direito serve menos para o autor se proteger do que para permitir que novo conhecimento possa ser livremente criado a partir das suas obras.
A enorme expansão de blogs que se vivia na época, e a consequente partilha de conteúdo por autores de todo o mundo, criou o “timing” perfeito para a popularização das licenças de Lessig. Com elas, os criadores podiam deixar explícitas as suas intenções para o material que partilhavam online e dar a entender ao público quais os usos que poderia dar a esse material.

Assim, Lessig não pretendia acabar com o direito de autor, mas apontar uma incongruência cruel: o direito de autor fora criado para proteger e beneficiar a comunidade criativa mas, a partir do momento em que as obras podem ser comodificadas, as empresas que adquirem os direitos da sua utilização atuam no sentido de protegerem o seu património, limitando a sua utilização e transformação e, portanto, a criação em geral.

O debate sobre o acesso aberto ao conhecimento passa por premissas bem semelhantes. A favor, temos vários argumentos:

  • Existe hoje uma apropriação corporativa e abusiva do conhecimento;
  • A população tem o direito de aceder à produção científica que é financiada, em grande parte, com dinheiro dos seus impostos;
  • O acesso aberto, rápido e generalizado ao conhecimento maximiza o seu impacto: quanto mais pessoas tiverem acesso a um trabalho académico, maior o seu potencial de repercussão, citação e influência;
  • Membros da academia – alunos, professores, pesquisadores em geral – poderão fazer trabalhos mais informados e relevantes;
  • Pessoas fora dos meios académicos com acesso ao mesmo conhecimento terão a possibilidade de aproveitar-se dele para ajudar as suas comunidades;
  • Novos tratamentos médicos podem expandir-se rapidamente, o número de descobertas simultâneas poderá aumentar e novas máquinas e tecnologias poderão ser implementadas.

Opor-se ao acesso aberto pode ter motivos bem razoáveis: o temor (financeiro e científico) de ser plagiado ou de submeter o seu trabalho a um escrutínio muito grande e eventualmente despreparado para dar críticas construtivas, além de uma certa (e não tão razoável) vaidade académica. Também é verdade que, quanto mais informação é disponibilizada, maior é a confusão: como nos guiarmos por essa Babel serpenteante e reconhecermos a informação mais relevante?

Porém, é precisamente neste espaço que a comunidade académica deve encontrar o seu lugar, servindo como filtro de validação através de mecanismos como o "peer review" ou recensões críticas, além de, claro, como a principal produtora de conhecimento. Como exemplo, diga-se apenas que foi graças à prevalência da ideia de acesso aberto que existe o software do telemóvel Android com que foram gravados os vídeos deste trabalho, o OpenOffice em que foi redigido este texto e a World Wide Web em que se publicou esse conteúdo. Afinal, como o próprio Tim Berners-Lee escreveu no primeiro website, o objetivo da World Wide Web é «to give universal access to a large universe of documents».

Se quiser ouvir um pouco mais sobre isso, é só clicar na imagem.