Justificação dum Pente 4

E, de um momento para o outro, os sentidos perdem-se porque alguma coisa desapareceu. Dormir: porquê? Ir comer: com que fim? O que fazer nos finais de tarde e depois do jantar, aqueles tempos que já tinham donos e fins bem, bem precisos? A questão em causa não é, como a poria um adolescente, a da utilidade da vida, mas a da finalidade daquilo que ela tem de ocupação do tempo. Entretenimento, conhecimento, vaidade: se quisermos ver até ao tamanho mínimo, tudo é passatempo avulso a precisar de justificação, como um preso num tribunal. Eu posso fazer desaparecer o cabelo só porque o cabelo comprido não serve para nada. Eu posso fazer um manifesto anti-sol só porque trabalho numa cave e não tenho uso para a luz natural. Eu posso fugir e isolar-me só porque não tenho utilidade para a companhia. Tudo isso é possível. Porém, este porquê não é um que se responda: é um porquê que se encontra. E, no caso do meu cabelo, foi muito difícil encontrá-lo num momento em que me vi ao espelho pelos meus próprios olhos, sozinho.

O silêncio

Um dos monólogos que mais me tocou aqui na moleirinha foi o da Michelle Pfeiffer no The Fabulous Baker Boys, o da discussão com o Jeff Bridges: "Every time you walk in those places, you're selling yourself cheap. l know all about that. l find myself at the end of the night with some creep, and l tell myself it doesn't matter. You kid yourself you've got this empty place inside to put it. But do it long enough and all you are is empty". É mais uma daquelas coisas à volta das quais anda toda à gente sem saber muito bem como resolver, porque o trabalho e o filho e as aulas e as contas e os terremotos ocupam o tempo todo e fica por responder a pergunta: como se preenche o espaço vazio? Desde os meus amigos jornalistas, que têm as colunas de papel a preencher com letras e imagens e o ar de rádio, que está morto a não ser que seja varado por palavras, até aos meus amigos contabilistas, que todos os dias se sentam ao computador com folhas de Excel a olhar para eles, ninguém é indiferente à questão. E esse é um problema que os aparelhos não têm, porque já enchi o disco do Sony Reader com e-books e o do disco externo com tudo o mais e difícil será que eles fiquem com o peso aligeirado. Ou seja, os aparelhos não têm problemas com o silêncio; esse é um problema só nosso, humano.

Presente:

s.m. Acto de remediar o passado. O.m.q. "andar constantemente pelo mundo como que a resolver equações com desconhecimento de pelo menos uma das variáveis". Momento cujas existência e percepção nunca se encontram. Geralmente benigno.

The Invention of Lying e Adaptation

Qualquer argumentista, dramaturgo ou alguém que alguma vez tenha lido um manual, sebenta ou rabisco sobre a construção do texto dramático conhece a importância da palavra subtexto. Um literato poderá chamar-lhe uma nuance da metáfora; um psicólogo irá logo decerto sacar para fora o id, ego e superego; e alguém mais preocupado com os reflexos quebradiços entre arte e realidade dirá que não é mais do que uma versão do que acontece no mundo, onde ocultamos a verdade crua do que dizemos e fazemos, até porque, na maior parte das vezes, essa verdade nos escapa. A comédia é a arte do conflito por excelência, por isso, nunca seria de esperar que nela nascesse uma obra como The Invention of Lying, onde Ricky Gervais cria um mundo onde a mentira não existe e, mais longe do que isso, onde toda a gente tende a dizer tudo o que lhe vai pela alma. Ou seja, The Invention of Lying é, à primeira vista,  um filme sem subtexto - ou melhor, um filme onde todo o subtexto é concentrado na personagem principal, a única em toda a Humanidade que consegue mentir (ainda que não saiba que nome dar a isso). O modo como o filme contorna essa quase armadilha que colocou a si próprio é um dos seus aspectos interessantes - vejam o jantar de Anna com Brad Kessler. Outro é o modo como a personagem principal, ao inventar a mentira, inventa também o entretenimento e a religião. Não era mau reler os situacionistas, não. Adaptation, curiosamente, também trata do entretenimento e da vida, traçando o paralelismo entre a construção de ambos. Quando o vi há 8 anos, pareceu-me que o último acto fazia uma concessão àquilo que condenava no primeiro - os clichés superficiais da história holywoodesca - mas compreendo agora que o metadiscurso sobre guionismo nunca poderia estar completo se assim não fosse. O jogo de espelhos é levado a tal ponto, a progressão da escrita está tão enrodilhada na progressão do tempo diegético (e não só) que uma não poderia existir sem a outra. É, com certeza, o antecessor directo na cabeça de Charlie Kaufman de Synechdoche, New York, onde o tempo é o tema e matéria ficcional (nas palavras de Rogert Ebert ao considerá-lo o melhor filme da época, "it isn't about a narrative, although it pretends to be. It's about a method, the method by which we organize our lives and define our realities"), é o filme definitivo sobre a experiência de escrever um argumento e, talvez, o filme definitivo sobre o acto de escrita em si mesmo.

Uma breve história de fracassos

Fui a um museu e vi uma das placas metálicas com que Alves dos Reis falsificou dinheiro. Ou melhor, com que quase falsificou dinheiro, porque o golpe famoso que deu série de televisão era com notas de quinhentos escudos. A placa de mil que vi era para uma fraude posterior, que ele não chegou a levar a cabo porque já tinha sido apanhado.

Também vi as chapas que serviram para as FP-25 criar um cubículo de cerca de 2mx1m no meio de uma floresta, no qual planearam prender a vítima de um sequestro até que chegasse o resgate. Nas fotografias da operação policial que encontrou a coisa por baixo de um monte de galhos e terra, viam-se pacotes de Compal e comida. Seriam a ração. O plano foi descoberto e as placas ficaram sem uso.

No espólio fotográfico havia belos negativos de vidro de fotografias probatórias, as famosas mugshots. Nunca tinha visto um negativo de vidro. Alguns já tinham 90 anos e o detalhe era irrepreensível. A guia disse não resistir a uma provocação e perguntou-me se conseguia adivinhar quem era o homem retratado num positivo que tinha em cima da mesa. Olhei para ele e reconheci o Mário de Sá-Carneiro. Não há notícia de o escritor alguma vez ter estado na prisão, mas A Confissão de Lúcio começa precisamente com a frase "Cumpridos dez anos de prisão por um crime que não pratiquei e do qual, entanto, nunca me defendi, morto para a vida e para os sonhos… nada podendo já esperar e coisa alguma desejando — eu venho fazer enfim a minha confissão: isto é, demonstrar a minha inocência". Portanto, talvez aquele não fosse Sá-Carneiro, mas Lúcio. Seja como for, estava demasiado sorridente.

O que o meu avô disse ontem

Amanhã é Domingo
De pé de cachimbo.
E o touro é bravo.
Arreguicha o rabo
e dá uma pinga ao Nelo do Cabo!

Casa nova

Nos últimos meses, o mundo sofreu muitas incertezas e apenas uma coisa se tem afigurado segura: a minha necessidade de concentrar num único sítio as páginas, conteúdos, blogs futuros e passados e quejandos que tenho vindo a acumular ao longo do tempo. A necessidade de transformar o jvnande.com, que já existia, mas só redireccionava para um espaço ainda muito estático, impôs-se assim, de mansinho, como um milhão de euros a sair de uma conta estatal.

Este novo espaço - e o à-vontade com que digo isto leva-me a pensar que ainda há uma bela carreira de agente imobiliário à minha espera - tem várias novidades, principalmente as secções Imprensa, onde juntarei os artigos (online ou não), reportagens e entrevistas onde vou aparecendo, e Ver/Ler/Comprar, onde porei o maior número possível de filmes, textos e restantes produtos da minha autoria. Enfim, uma espécie de baú para guardar coisas, ao contrário da categoria "textos" que podem ver aqui ao lado, para onde irão as publicações correntes.

Os geeks de entre vós já terão percebido que, depois de muitos anos com o Blogger, rendi-me ao Wordpress como plataforma. A razão principal é simples: páginas estáticas. E mais não digo. Não porque não queira, mas porque não sei. Algumas secções ainda se encontram em construção e é razoável esperar que os próximos tempos ainda sejam de trabalhar no código, de limpar e polir e pôr bonitinho, para a minha mãe não passar vergonhas por causa do rapaz. Mas também é razoável esperar exactamente o oposto. Por isso, vão passando por cá e, olhem, tenham esperança.

Tradução de um poema de Allen Ginsberg

UNDER THE WORLD THERE'S A LOT OF ASS A LOT OF CUNT

Dois textos de Daniil Harms

Algo sobre Pushkin e A Conferência.

Divine Comedy

Divine Comedy, de Julian Gough, um dos melhores ensaios sobre Comédia que já li.

Yau e Drummond

Tradução de In the Kingdom of Poetry, de John Yau, em referência a Carlos Drummond de Andrade.

Duas traduções de Bob Dylan

It's Alright, Ma (I'm Only Bleedin') e Ballad of a Thin Man.

e.e. cummings

Tradução de um texto de um dos meus autores preferidos.

The Other Mexico: Critique of the Pyramid

Tradução de um excerto do livro de Octavio Paz.

Numa sala cheia

Talvez poema, talvez não.

já não consigo digo

Menti. O poema é meu.

O poema

Sim, eu perdi. A partir de Manuel de Freitas, Jorge Melícias e João Luís Barreto Guimarães.

Os poemas antigos

Para recordar tempos de masoquismo.

5 microcontos sobre o desejo

Escritos para o número 11 da revista Minguante.

O Parênteses

Um pequeno conto escrito para os leitores do meu antigo blog. Joaquim Nando ainda teve continuação.