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Tempo, narrativa e Sex and The City



Só agora assisti And Just Like That, a continuação de Sex and The City de final de 2021. Curiosamente, enquanto a via, dei por mim a pensar no tempo. Explico-me.

O tempo, em si mesmo, não existe fora da invenção humana. Falo dos relojoeiros do século XVI, dos assírios sexagesimais mas, principalmente, falo da nossa capacidade enquanto espécie para produzir os conceitos de antes, agora e depois. 

Antes dos relógios e dos calendários, antes de definirmos o segundo como «a duração de 9 192 631 770 períodos da radiação correspondente à transição entre os dois níveis hiperfinos do estado fundamental do átomo de césio 133», o que nós tínhamos, e temos, é a narrativa. "Isto aconteceu a tal pessoa, ela reagiu assim e tudo acabou assado": antes, durante e depois.  Ao articular eventos numa sequência temporal, criamos aquilo a que Ricœur chamava "tempo humano".

Ricœur também dizia que, «em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal». Eu vou fazer uma leitura enviesada desta frase e propor que retiremos dela não só que as histórias criam o seu próprio tempo (o narrativo), mas também algo mais prosaico: que elas enformam o modo como vivemos o tempo que vivemos.

Antes do nosso primeiro beijo, quantos vimos na televisão e no cinema? Antes de perdermos alguém pela primeira vez, quantas vezes já tínhamos ensaiado mentalmente a experiência de perda, de Bambi a ET passando pela Capucinho Vermelho? 

No seu "Story", o Robert McKee cita Kenneth Burke para nos dizer que as histórias são «equipamento para viver». Isso encaixa com a etimologia de "narrativa": do sânscrito “gnâ” até aos latinos “narro” e “gnarus”, a palavra carrega consigo o "conhecer" e o "saber". De livros, filmes e séries até um cochicho ouvido de um colega de trabalho, histórias são pequenas lições que nos dizem "vive isto desta maneira". Aristóteles dizia que as pessoas “gostam de ver as imagens porque, olhando-as, têm oportunidade de aprender e de raciocinar sobre cada um dos elementos”. As histórias servem como uma espécie de vacina emocional e intelectual, que nos permite experimentar situações antes de as vivermos e refletir sobre como nos devemos comportar se e quando elas acontecerem. 

Os manuais de escrita para audiovisual seguiram a tendência da nova "Golden Age of Television" e disseram-nos que a narrativa televisiva não fica atrás da cinematográfica. Talvez por isso esta particularidade não costuma ser abordada neles, mas acho que, em termos daquilo que ela tem a oferecer ao público, a série de televisão possui uma aptidão particular. 

Como se prolonga no tempo, a série enreda-se na nossa vida. A sua contemporaneidade pode sugerir-nos como viver o cotidiano ao mesmo tempo que se enrosca nele. Está mais próxima do cochicho do colega de trabalho do que da epopeia, e este lado prosaico não é menos importante por sê-lo. Sex and The City podia não ter a importância ou a ambição de Romeu e Julieta, mas o que é mais provável nesta vida: que uma pessoa não goste do rabo do namorado novo ou que viva um amor trágico que leva ao suicídio?

Em "Homens Difíceis", um dos melhores livros que se escreveu sobre a televisão do século XXI, Brett Martin não tem grandes elogios para Sex and the City, mas até ele reconhece que as personagens da série «conversavam mais abertamente, sem dúvida sobre coisas do corpo, mas também sobre seus desejos e insatisfações fora do quarto, do que as mulheres jamais tinham falado na TV até então».

Essa, parece-me, é a razão por que Sex and The City foi melhor série do que alguma vez foi filme. O cinema pede que as suas afirmações sejam definitivas. Mesmo que um filme tenha um final em aberto, os significados que ele implica devem ficar claros para o espectador. Porém, é bem possível que o tema principal de Sex and The City seja precisamente a conversa. 

Da Lisístrata de Aristófanes até ao mais recente filme de Sarah Polley, Women Talking, 2500 anos de representações mostram-nos que o simples encontro de mulheres para conversar pode ser um ato profundamente subversivo. Consideremos que, quando Sex and the City estreou em 1998, ainda não passara um século desde a conquista do direito ao voto pelas sufragistas dos EUA. Para ocupar um lugar relevante na cultura popular, Sex and the City não precisou mais do que mostrar um grupo de amigas solteiras e independentes compartilhando a sua experiência afetiva e sexual na cidade contemporânea. Até as futilidades - os vestidos, os restaurantes, os cosmopolitans - eram as futilidades delas

Mas essa conversa precisava do tempo do cotidiano - o tempo da série - para se afirmar. Sem ele, os filmes acabaram focando nas histórias de amor, principalmente na de Carrie com Big. Não há nada de intrinsecamente mau em comédias românticas, mas, no cinema, Sex and the City perdeu força; virou menos Monólogos da Vagina e mais Cinderela. 

And Just Like That parece ter entendido que isso aconteceu e talvez por isso a comunicação seja um dos seus assuntos principais. Podcasts, ligações perdidas, amigas distantes, "como eu devo dizer isto para o meu marido?", "a minha filha não quer conversar comigo". As personagens principais chegaram à meia-idade e descobrem novas formas de conversar umas com as outras. Enquanto isso, a experiência feminina do tempo urbano volta a ganhar destaque em relação às histórias de amor. 

É injusto louvar a passagem dos anos no Boyhood do Linklater e não fazer o mesmo com And Just Like That. Seria ainda mais injusto não reconhecer que esta continuação reaproxima a história de Carrie e suas amigas do que ela nunca deveria ter deixado de ser: equipamento para a vida.

CINEMEMÓRIAS #2: El Secreto De Sus Ojos


São Paulo, 2010.

Terá sido o primeiro filme argentino que vi no cinema? É bem possível, mas não é por isso que ele está aqui. Aliás, não o achei assim tão memorável (exceção feita ao plano-sequência do estádio, claro; também não sou maluco). Mas lembro bem de quando o vi. Estava sozinho e era uma sessão bem tardia, quase de meia noite, bem do jeito que gosto. Desci a Augusta, comprei o bilhete, tomei um expresso num cafezinho bem agradável com quadros do Fellini e, quando já estava quase na hora, subi uma escada apertada até uma sala bem escura e pequenina. 

O filme não foi memorável, mas a sessão sim. Aquele lugar, àquela hora, estava cheio do mistério que o cinema às vezes tem. Há muita diversão à noite, muitos convites e possibilidades. Quem vai ao cinema à meia-noite renuncia. O público não se fala, mas sabe-se cúmplice e igual. Toda a gente ali era bicho de filme, uma mariposa hipnotizada por uma luz que brilha no escuro. É nesses momentos que o cinema nos dá a sua transcendência. Uma missa laica que se parece com os nossos sonhos.

El Secreto De Sus Ojos foi o primeiro filme que vi no Anexo do Itaú da Augusta, que acabou de fechar para dar lugar a um empreendimento imobiliário, provavelmente mais um prédio igual a todos os que têm pipocado por esta cidade, com muitas áreas comuns e muitos apartamentos de 35 a 45m². 

Depois dos 40 anos, já não tenho grandes pretensões em virar um magnata, mas, se virasse, sei o que faria: compraria empreendimentos imobiliários e transformá-los-ia em cinemas.

CINEMEMÓRIAS #1: Rain Man


Vila Praia de Âncora, 1989

— Não sei se vamos conseguir.
Eu e a minha mãe estávamos na varandinha da casa que alugamos naquele verão. O cineteatro dos bombeiros era alguns números mais à frente, e a fila para a bilheteria saía pela porta. Nunca vira isso nas poucas vezes que fora ao cinema.
— Vamos tentar. Queria muito ver o Rain Man, mas só tenho 8 anos. Não me vão deixar entrar sozinho.
Eu ainda não sabia do que a minha mãe falava: da pequena tragédia de uma sala vender todos os bilhetes e não conseguirmos entrar. Como assim, não conseguirmos entrar? No máximo, sentamo-nos no chão, não? 
A minha mãe sorriu.
— Vamos lá. 
Descemos a rua e enfrentamos a fila durante o que me pareceu horas (devem ter sido 30 minutos). Era lenta, mas andava.  
— Talvez nos safemos, disse a minha mãe.
O vidro da bilheteira estava cada vez mais próximo. Não havia mais sessões: era aquela ou esperar o filme passar na televisão. Para uma criança de 8 anos em Monção, ir ao clube de vídeo não era muito prático. Nem lembro se a minha pequena terra o tinha na época; se sim, também nada garantia que o filme estivesse lá.
A nossa vez finalmente chegou, e tudo parecia bem. "Ganhamos", pensei. Mas, antes que a minha mãe conseguisse pedir os bilhetes, o funcionário pendurou um letreiro no vidro: LOTAÇÃO ESGOTADA. 
Não era justo. Tanta gente lá dentro que certamente não queria ver o filme tanto quanto eu: por que eles podiam entrar e eu não? Naquela noite, eu criança aprendi algo sobre como o mundo funciona.
Anos depois, o filme passou na televisão e, desde então, vi-o muitas vezes.
Na última, já adulto, veio-me um pensamento: "será que eu vejo tantos filmes porque estou sempre tentando entrar no Rain Man?".
O certo é que nunca mais esqueci aquele maldito letreiro.

A minha lista dos melhores de 2022

Este ano, decidi fazer isto de forma um pouco diferente: o critério que escolhi foi «quais filmes e séries deste ano não me saem da cabeça e por quê?». Aviso que sou liberal em relação às datas: se eu vi este ano e estrearam em algum lugar este ano (mesmo que não em estreia mundial), entram.

15. COMPETENCIA OFICIAL e THE OFFER
O primeiro é uma comédia ácida sobre o processo de construção de um filme por dois atores egocêntricos e uma diretora caprichosa. O segundo é uma série que conta a história da produção de "The Godfather". 
À sua maneira, ambos mostram na perfeição as alegrias, tristezas e loucuras do trabalho no audiovisual.

14. SWAN SONG e BRIAN AND CHARLES
Duas comédias melancólicas sobre solidão. "Swan Song" é a celebração merecida do grandioso Udo Kier no papel de um cabeleireiro e ex "drag queen" idoso. A cena em que, de um banco de jardim, ele contempla um casal de homens passeando com os seus filhos e diz «eu não saberia mais como ser gay» é inesquecível. 
"Brian and Charles" é um "mockumentary" sobre um homem na Inglaterra rural que constrói um robô para o ajudar nas tarefas de casa e acaba por mudar a sua vida além do que esperava. Muito gervaisiano e muito bonito.

13. WHITE LOTUS, TEMPORADA 2
Coloco-a aqui principalmente por causa de Jennifer Coolidge. Ela já tinha relançado a carreira com a primeira temporada, mas os episódios deste ano mostraram o seu brilhantismo, até porque, pareceu-me, a sua personagem Tanya não estava tão bem escrita quanto em 2021. Coolidge poderia ter interpretado Tanya como simplesmente mais uma mulher rica e fútil, mas ela consegue transformar a futilidade e a apatia na ponta visível de um gigantesco iceberg emocional, uma dor que passeia pelo mundo com vestidos caros e maquiagem pesada num rosto que às vezes parece a máscara clássica da Comédia e, no minuto seguinte, a da Tragédia. Não consegui cansar-me de vê-la.

12. RESURRECTION e BLONDE
Dois filmes que falam de violência contra mulheres de formas pouco óbvias. "Resurrection" retrata uma relação de dominação e submissão de uma forma que nunca vi em cinema, principalmente porque livre do folclore do "bondage" e outras ideias feitas sobre BDSM. 
"Blonde", mais do que um "biopic", é uma leitura da figura de Marilyn Monroe a partir do seu corpo: um corpo do qual a verdadeira Marilyn nunca poderia dispor porque, no imaginário popular e no mundo real, ele existia para ser violado.

11. ORANGES SANGUINES
Uma mistura de "Relatos Selvagens" com "Happiness". Uma comédia tão ácida que só lhe falta espremer as suas personagens para o nosso bel-prazer. 

10. BARDO, FALSA CRÓNICA DE UNAS CUANTAS VERDADES
«Pretensioso» é uma crítica que se ouve muito por aí, por exemplo, quando um filme leva as suas aspirações artísticas muito longe. Eu não gosto dela, porque diz muito pouco. Exatamente a partir de que momento é que algo é pretensioso? De quem é a sensibilidade definitiva que diz se se foi longe demais ou não? "Bardo" poderia facilmente ser chamado de pretensioso. Porém, são muito raros os filmes que, sempre que um plano começa, deixam o espectador em pulgas para ver como vai acabar. Iñarritu rouba inspirações de Fellini aos Radiohead, e ainda bem que o fez: se este filme fosse uma praça, caberiam nele muito mais do que três culturas.

9. SEVERANCE
Uma temporada construída ao pormenor e com a precisão de um relógio até chegar a um episódio final que me fez sentir o coração bater dentro do peito. Ao ensinar sobre suspense na universidade, fale-se de Hitchcock, mas fale-se também de "Severance".

8. THE BANSHEES OF INISHERIN
Sou daqueles que acham que qualquer obra do Martin McDonagh deve ser celebrada. Esta, com pessoas a discutirem por insignificâncias e a recusarem conversar umas com as outras — tudo isso enquanto uma guerra está a acontecer — pareceu-me uma metáfora perfeita para uma época em que as formas de socializar e comunicar foram irremediavelmente afetadas pelos vícios das redes sociais.

7. THE SOUVENIR: PART II
Acho que é preciso ver esta segunda parte para entender bem o jogo de espelhos no díptico da diretora Joanna Hogg. Hogg faz um filme autobiográfico sobre uma diretora que faz um filme autobiográfico: um curta-metragem de fim de curso. Ora, este filme é uma adaptação do curta-metragem de fim de curso de Hogg, "Caprice", que foi protagonizado por Tilda Swinton, sua amiga há décadas. Na vida real, Swinton é mãe da atriz principal de "The Souvenir" e, por acaso, também interpreta a sua mãe ficcional (só que, no caso, esta seria a mãe de Hogg). Ou seja, mais do que um filme que expõe uma cronologia, Hogg trouxe a sua vida para dentro do seu cinema, ligando os dois inextricavelmente. 

6. YOU WON’T BE ALONE
É o melhor filme de terror que vi esse ano e, ao mesmo tempo, é uma pena dizer isso, porque vai afastar muita gente que rejeita o gênero. Esta história de uma moça que se torna bruxa contra a sua vontade fala sobre identidade de gênero, sororidade e crescimento de maneira muito sensível e bela. 

5. TRIANGLE OF SADNESS
Os filmes de Ruben Östlund não são apenas extremamente bem feitos: são também um desafio muito estimulante para o espectador. É divertido que um dos cineastas mais celebrados do cinema europeu atual seja também um dos seus maiores provocadores.

4. RIGET: EXODUS
Lars von Trier termina a sua série 25 anos depois do final suspenso da segunda temporada. Gosto muito dos projetos mais dinamarqueses do von Trier, porque parece-me que, sem a pressão dum público internacional, ele fica solto e mais disposto a arriscar. Se "Riget" sempre teve uma grande dose de autoironia, esta terceira temporada leva-a ao delírio. É absurda, inconstante, brincalhona, assustadora e o claro produto de um gênio que, na maturidade, parece tão inquieto e iconoclasta quanto sempre.

3. EVERYTHING EVERYWHERE ALL AT ONCE
Os Daniels são criadores audiovisuais inesperados e poderosos, capazes de nos fazerem rir enquanto olhamos para duas pedras e chorar com pessoas que têm dedos de salsicha. Com este filme, eles concorrem ao lugar de Fellini do nosso tempo, criando imagens que não só parecem sonhos como parecem querer ensinar-nos a sonhar.

2. SUNDOWN
Quem é este homem silencioso, este estrangeiro camusiano que parece perder-se da vida nas praias de Acapulco? Tim Roth é um portento neste filme que surpreende a cada volta. Levou-me a ver toda a obra de Michel Franco e tenho uma certeza: Haneke mexicano ou não, é dos melhores escritores de filmes da atualidade.

1. THE REHEARSAL
É normal que alguém se pergunte «quero contar esta história: qual o melhor formato e gênero para contá-la?». Normalmente, isso implica pensar em termos de comédia ou drama, filme ou série de televisão. Porém, para Nathan Fielder, "The Rehearsal" pareceu ter implicado algo assim: «para contar uma história sobre o meu encontro com a ideia de paternidade e a relevância das projeções de mim mesmo na amálgama de coisas que me fazem, o melhor é usar a própria materialidade do gênero do reality como instrumento narrativo».

O jogo com o simulacro já não existe, como em "Nathan For You", no sentido da subversão que revela o novo significado da verdade no mundo do ciclo noticioso de 24 horas e das mídias sociais. Aqui as simulações servem como ensaios de vida que acabam construindo uma viagem pessoal marcada pela autoperformatividade. E a subversão de Fielder é feita de outra forma. Primeiro, ele adota uma linguagem audiovisual popular — a do "reality" de confinamento — e resgata-a da ideia de concurso para se revelar a si mesmo enquanto personagem. Depois, ele prova que essa confusão entre realidade e ficção é o melhor caminho para contar a história da germinação da sua verdade pessoal. O "ensaio" é montado para externar uma ficção imaginada por Fielder para si mesmo e que, por isso mesmo, é tão ficção quanto realidade.

Enquanto contador de histórias, Fielder trabalha num nível narrativo diferente do normal e completamente inesperado neste contexto televisivo. É o nível em que reconhecemos o real na ficção (como naqueles momentos de um filme em que um ator não se contém e ri de uma piada) e a ficção no real (como a estrutura ficcional construída sobre o mundo por uma teoria da conspiração). Por isso, discutir se o que vemos em "The Rehearsal" é verdade ou mentira não é tão interessante quanto perceber que Fielder reconfigura os gêneros até nos fazer questionar, não só os seus limites, mas o que realmente ideias como "ficção", "realidade", "verdade" e "mentira" significam no audiovisual. É por isso que o coloco no topo da minha lista de 2022.

Os filmes de Kevin Smith

Depois de alguns meses, terminei hoje os longas do Kevin Smith pré Clerks III. Já conhecia metade, mas agora acabei por assistir tudo na ordem de estreia. Havendo uma palavra que caracteriza cada cineasta, se não na temática que aborda, pelo menos na forma como a sua obra é recepcionada pelo público, a de Kevin Smith é "simpatia". Os seus filmes são filmes de encontro e reencontro: de personagens, de lugares e, principalmente, de amigos. 

Ocasionalmente ele teve azar. Jersey Girl é um filme muito bonito sobre paternidade que só não foi um êxito por causa do fim da primeira encarnação da Bennifer. Zack and Miri Make a Porno, que ele fez para aproveitar a onda dos filmes de Judd Apatow, acabou como uma comédia demasiado "blue-collar" e independente para ter o sucesso que ele queria. 

Muito frequentemente ele também é mal-entendido. Chasing Amy é um "stoner movie" irónico, que discute e desconstrói o machismo da classe média branca dos "stoner movies" da viragem do século e, ao fazê-lo, cria uma das personagens femininas mais incríveis que se viu numa comédia. Dogma, que foi tão atacado por cristãos fundamentalistas, é apenas uma exegese da iconografia religiosa feita por uma mente que cresceu com a cultura popular do século XX. 

De qualquer forma, o mais bonito na obra de Kevin Smith é perceber como, ao longo do tempo, ele tanto constrói a sua vida no cinema quanto o cinema com a sua vida. Em Clerks, ele era um jovem que estourou o limite de vários cartões de crédito para fazer um filme independente com os amigos. Em Jay and Silent Bob Reboot, 25 anos depois, os amigos continuam, mas agora já trazem as esposas e os filhos. Ver estes filmes é como ir a um bar para encontrar gente engraçada com quem podemos falar bobagem, mas que também vai amadurecendo ao longo do tempo. São filmes que nos fazem sentir bem, e isso é tão raro. Bravo, Sr. Smith, e obrigado.

JLG, 1930-2022

Ver Godard exige uma disponibilidade específica da mente e do espírito, sem a qual pode acontecer como a mim aconteceu, quando, após uma noite pouco dormida em Coimbra, arrisquei o Prénom Carmen no TAGV e descobri que as sessões das 19h são aquelas em que estou mais susceptível a cair num belo e clandestino soninho. 

Isso não quer dizer que assistir os seus filmes exija necessariamente um grande esforço intelectual. Ver um filme, qualquer um, no fundo não é um ato muito intelectual: sentamo-nos, imagens passam, vemo-las e pronto. Podemos apreciar Le Mépris como quem contempla postais da Riviera e a Brigitte Bardot. 

O problema é que Godard implica-nos na posição de espectador, exercício pouco e cada vez menos praticado. Vemos os seus filmes e percebemos que cada um deles é um pensamento construído sobre política e estética, sobre linguagem e cultura e o próprio cinema (porque, quando Godard começou, já havia cinema suficiente para garantir que a sua obra fosse principalmente sobre ele). O propósito não será tanto entender os filmes imediatamente quanto deixar a mente atenta, mas solta, e depois pensar "o que vi?". 

Por que mostrar-nos esta imagem, e não aquela? Por que esta frase, e não outra? Por que este final em vez daquele? Quando ele escolhe falar sobre isto, ele fala sobre o quê? Godard não nos dá duas horas de diversão, mas dá-nos tudo o que vem depois: uma reflexão que nos constrói e forma enquanto espectadores. 

Por outro lado o cinema é uma história.

Quatro séries

Depois de vê-la ganhar o Oscar com The Favourite e dos belos papéis em The Father e The Lost Daughter, é fácil esquecer que Olivia Colman foi e é uma grande atriz de comédia e uma grande atriz de televisão. Tenho visto várias séries com ela e não me canso de admirar o domínio que esta mulher tem do pormenor, do gesto ou esgar sutil que constrói e revela completamente uma personagem. 
Então, se ainda não viram Peep Show, façam-no. Se então descobrirem que a comédia inglesa do início dos anos 2000 vos agrada, partam para Look Around You, uma série que parodia os programas educacionais da BBC dos anos 80. A primeira temporada, de 2002, é desconcertante e viciante, a segunda (2005) entra a fundo pelo "nonsense" e tem um elenco surpreendente, com pessoas como Edgar Wright e Simon Pegg a fazerem "cameos". 


Quem também apareceu brevemente em Look Around You foi Ed Sinclair, o marido de Colman e autor de Landscapers (2021), uma minissérie brilhante que a todo momento escancara os mecanismos ficcionais que a sustentam, ocupando um território fascinante de experimentação e de liberdade de linguagem. Aqui Colman já foi produtora executiva, e eu sou capaz de apostar que foi ela quem chamou o jovem diretor Will Sharpe, que ano passado ainda arranjou tempo para fazer The Electrical Life of Louis Wain e mostrou o seu domínio da representação da doença mental e da ternura familiar com arrojo visual. 


Em 2015, Sharpe já tinha dirigido Colman em Flowers, série criada por ele e cuja primeira temporada acabei de acabar: uma viagem impressionante que começa cheia de humor ácido, parecendo satirizar as suas personagens, e termina como uma elegia enternecedora do amor entre pais e filhos. 


Se ainda estiverem a ler e conseguirem encaixar uma recomendação que não tem nada a ver com a Olivia Colman, vejam Reservation Dogs (2021), uma série criada pelo Taika Waititi sobre jovens que vivem numa reserva indígena nos EUA. Além de ser uma lição de diversidade e representação — os atores, diretores e autores são quase todos indígenas —, é uma história incrível sobre a adolescência enquanto idade de grandiosos planos e frustrações.


A minha lista dos melhores de 2021

Entre todas as produções de 2021 que vi, estas são aquelas de que mais gostei. Não distingo entre o que é televisão e o que é filme, porque às vezes nem eu mesmo sei mais o que elas são. A ordem é mais indicativa do que rigorosa.

12. Them (Amazon)
O "americana" como território de demónios e violência, o racismo estrutural como condenação e claustrofobia que limita os corpos e fere os espíritos. Perguntar se fetichiza a violência é muito menos importante do que perguntar porque o faz.

11. It’s a Sin (Channel 4/HBO Max)
Russell T Davies, um dos grandes autores para televisão dos dias de hoje, conta-nos como foram os primeiros dias da AIDS em Londres.

Uma visita à mitologia americana do faroeste (e ao seu duplo, o western) que a desmonta através do poder do silêncio e da solidão.

9. Time (BBC)
Triste, mas esperançosa, trágica, mas sem lamúrias. Dois gigantescos atores britânicos numa das melhores histórias de prisão dos últimos tempos.

Esta série sempre foi a melhor a representar o embaraço e a introspeção adolescente, mas este episódio especial (animado, por causa da pandemia) superou tudo. Erskine e Konkle são rainhas.

Nunca me acontecera romper em lágrimas enquanto via um concerto — até ver o dueto de Mahalia Jackson com Mavis Staples neste belíssimo documentário. 

Um belo ano para o diretor Edgar Wright. 

O registo de um espetáculo fascinante, que mistura "storytelling", magia e mentalismo com um tom confessional e o objetivo de revelar alguma verdade profunda sobre o autor e também sobre todos os espectadores. 

Uma comédia ferozmente ácida sobre esta modernidade meio estúpida que a gente inventou. É romeno, mas poderia estar a falar sobre o Brasil, ou Portugal, ou (preencher com o lugar à sua escolha).

A melhor série do ano passado que ninguém viu é um ensaio visual devastador sobre civilização, colonização e aniquilação. 

Ducournau entra por territórios em que nem Cronenberg se atreveu a aventurar-se. Não ver se tiver o estômago fraco.

É o acontecimento audiovisual de 2021, e ponto final. 

Também: Katla (Netflix), Pretend It's a City (Netflix). Mare of Easttown (HBO Max). Bo Burnham: Inside (Netflix). The French Dispatch. Annette.

O que vi em Agosto

Filmes no início, séries no fim, para ficar tudo arrumadinho.

But I’m a Cheerleader (1999). Um pouco de John Waters misturado com uma pitada de Tim Burton e outra de Heathers. Uma comédia mais cáustica do que a soda e que certamente influenciou toda a carreira posterior de Natasha Lyonne.

Born in Flames (1983). Nuns EUA que passaram recentemente por uma revolução socialista, as mulheres negras continuam a ter que lutar para terem os seus direitos reconhecidos. Um "mockumentary" raiz e uma sátira seríssima.

Marjorie Prime (2017) e Tesla (2020). Michael Almereyda faz filmes "arthouse" baratos, com uma ênfase teatral, centrado nos atores e uma liberdade de olhar que sempre me lembra o Caravaggio e o Wittgenstein de Derek Jarman. É um talento como outro qualquer, e não adianta reclamar. Tesla é, sim, um pouco incoerente e promete mais do que entrega, mas Marjorie Prime, cuja premissa parece a dum episódio de Black Mirror, é uma obra silenciosa e sensível sobre a passagem do tempo e a forma como ela define a nossa relação com as imagens.

The Human Voice (2020). Mais uma prova dum dos aspectos mais incríveis da obra de Almodóvar: a forma como, de cineasta "punk" e do escândalo, ele virou um esteta com extremo bom gosto.

Drag Me to Hell (2009). Espíritos malignos , mortes horríveis, vísceras e sangue, muito sangue. "Ai, é mau gosto". É Sam Raimi. Não gosta, não vê.

Vredens dag (1943). Luz e sombra. Silêncio e ruído. Mulheres e homens. Vida e morte. Pecado e expiação. Os elementos como castigo (o vento, igual ao de Béla Tarr).

Psycho (1998). A melhor coisa que li sobre este filme está na página da Wikipedia dele: «One favorable take on the film came from an LA Weekly retrospective article published in 2013, in which writer Vern stated that the film was misunderstood as a commercially motivated film when it was in fact an "experiment" and this was the reason for the poor reception. Vern concluded that "Experiments don't always have to work to be worth doing."»

Fahrenheit 9/11 (2004). Para refrescar a memória depois da retirada americana do Afeganistão. Levou-me a procurar no Facebook a entrevistada que perde o filho e mandar-lhe uma mensagem de solidariedade.

An Evening with Beverly Luff Linn (2018). É como se David Lynch fizesse uma comédia "brat pack". Original, mas, preso numa prisão de estilo, perde a força pelo meio.

The World’s End (2013). O mais divertido da cinefilia de Edgar Wright é a forma como ele faz o Cinema trabalhar para ele, e não o contrário. Aqui, ele cita e retorce os géneros do filme de assalto, do "buddy movie" e da ficção científica, sempre com um sorriso, sempre com diversão. Os filmes dele são, ao mesmo tempo, inteligentes e pândegos, e isso não é nada fácil.

Antiporno (2016). Kyoko é personagem, mulher, japonesa. Como personagem, é um objeto submisso ao olhar e desejo masculinos. Como mulher, vive com a fixação sobre em qual estereótipo sexual se deveria encaixar. Como japonesa, é testemunha e vítima do sexismo contido na suposta liberdade de expressão do país. Sion Sono nunca deixou de me surpreender, mas isto é do mais incrível que vi dele.

Love Story (1970). É um filme estranho, contraditório. Tem um roteiro robusto à anos 70, que entra na história sem medo, mas entrega reviravoltas arbitrárias. As personagens são caracterizadas com detalhe, mas agem futilmente. Ryan O'Neal é limitado, mas, como em Barry Lyndon, correto. Ali MacGraw é péssima, mas também carismática. Oscila entre o cru e o pateta, entre a tragédia e o folhetim, entre o kitsch e o despojamento, e deixa-nos entre o desconcerto e a indiferença.

This Filthy World (2006). Em palco, John Waters conta histórias divertidíssimas da sua vida e trabalho para pessoas que gostam dele. Se não gosta, nem vale a pena ver!

Le Corbeau (1943). Adoro filmes sobre um monte de gente que não vale nada. Mais de 70 anos depois, é bom não termos de cancelar este filme pelo colaboracionismo na sua produção, porque isto é uma obra-prima ranzinza sobre a hipocrisia.

Sexy Beast (2000). Elenco irrepreensível, edição musical, uma história que está sempre a brincar e a frustrar as convenções de género. É um filme de assalto, uma comédia ácida, uma história de gângster, tudo isso e também outra coisa qualquer além disso. Ótimo.

Los Enchiladas! (1999). Não importa muito se é bom ou ruim. É o filme inacabado que Mitch Hedberg fez com os amigos, e chega.

Evil Dead (2013). No Ash, no fun.

Séries:
The White Lotus (2021). Não senti o entusiasmo que tanta gente sentiu ao ver esta série. Não que ela não seja perfeitamente escrita e interpretada, com personagens deliciosas e contraditórias. Ela é. As minhas reservas têm mais a ver com a visão geral que está por trás dela (poderia até usar um palavrão e dizer que são reservas ideológicas). Pareceu-me que a sua sátira é "de nós para nós", feita para rirmos sem problematizarmos (outro palavrão). No fundo, o que quero dizer é isto: gostaria que ela fosse menos O Jardim das Cerejeiras de Tchekhov e mais O Anjo Exterminador de Buñuel.

Ragnarok s02 (2021). Gostei bem mais da segunda temporada do que da primeira, talvez porque provavelmente tiveram mais dinheiro, e esta é uma série que pede dinheiro para ser bem feita. Porém, apesar das batalhas e dos efeitos especiais, a grande sacada de Ragnarok é a forma como a vida familiar das personagens parece protegida de tudo o resto. "Lá fora posso ser um deus, mas em casa tenho que me portar bem" é uma metáfora brilhante para a vida de adolescente.

Mark Kermode's Secrets of Cinema (2018-2021). Mark Kermode é dos críticos de cinema que mais sigo hoje, porque acho-o despretensioso sem ser simplista e, acima de tudo, um conhecedor e apaixonado por filmes, dos mais populares aos mais nichados. Para encontrar todos os episódios desta série da BBC em que ele faz uma historiografia do Cinema a partir das convenções de género, tive que executar um corso inimaginável para qualquer "zennial" do pós-Kazaa, mas consegui e devorei-os. Um regalo.

Des (2020). Apenas mais uma série inglesa com David Tennant que vem para provar que David Tennant é um génio.

Barbarians Rising (2016). Às vezes, tudo o que uma pessoa quer é ver uma minissérie de documentário ficcional sobre os bárbaros que, ao longo dos séculos, combateram e resistiram à invasão pelo império romano. E, se uma pessoa quer isso, não há nada melhor do que esta.

The Chair (2021). Um monte de gente com bom pedigree faz uma comédia sobre professores universitários. Talvez não interesse a muitas pessoas além das que têm ou tiveram a universidade como parte importante da vida, mas é simpática.

O que vi em Julho

Bo Burnham: Inside
(2021). A dado momento do State and Main de David Mamet, uma personagem diz que «temos que fazer a nossa própria diversão, senão não é diversão: é entretenimento». Enquanto Burnham canta e dança, ele vai além duma comédia sobre a pandemia e o isolamento social: ele faz uma sátira dos formatos que inventamos para participar do capitalismo de comunicação de massas, ou seja, sobre a forma como a Internet nos levou a nos entretermos mais e nos divertirmos menos.

1971: The Year That Music Changed Everything (2021). Uma ótima série documental que lembra muito os filmes do Martin Scorsese sobre música. O talento de Asif Kapadia para trabalhar o arquivo continua admirável.

Summer of Soul (…or, When the Revolution Could Not Be Televised) (2021). Para quem viu 1971: The Year That Music Changed Everything, é o acompanhamento perfeito. Para quem não viu, é um documentário brilhante sobre um festival de música negra no Harlem cuja história (e gravações) foram ignoradas até hoje. O dueto da Mahalia Jackson e da Mavis Staples é tão incrível que dei por mim a limpar as lágrimas no fim.

Burden of Dreams (1982). Toda gravação tem os seus desafios particulares, mas, depois deste filme, acho pacífico afirmar que Werner Herzog não gostava de facilitar a própria vida.

Relic 
(2020). A demência, monstro. A casa, memória. O tempo, insuportável. A carne, maldição. A sororidade, imprescindível. Os labirintos psicológicos de "The Haunting" encontram os corpos impossíveis de Cronenberg e, na sua estreia em longas, Natalie Erika James já se junta à conterrânea Jennifer Kent no pódio das diretoras mais interessantes da atualidade.

Minamata (2020). Não é um grande filme, mas é um filme correto e importante. Correto, porque acerta em detalhes a que estará atenta qualquer pessoa que lidou com fotografia ainda na época do analógico. Importante, porque histórias sobre pessoas que se juntam para corrigir as injustiças que lhe são impostas por indústrias e políticos são cada vez mais necessárias. Além disso, consegue escapar de moralismos desnecessários.

The Sparks Brothers (2021). Um trabalho de amor de Edgar Wright sobre uma banda cultuada por muita mais gente além dele próprio. A certo momento, parece longo, mas entende-se: Wright tenta compensar o tempo perdido, dando aos irmãos a homenagem definitiva à obra que criaram ao longo de uma vida. É um filme que parece dar alento a qualquer criador, como se dissesse «aguentem aí, que isto vai dar certo». 

Marianne & Leonard: Words of Love (2019). Um documentário tão amoroso quanto a relação de Cohen com a sua musa norueguesa. Conta essa história sem firulas, e faz bem, porque ela já é interessante que chegue.

Rubber
(2010). Enganou-me. Pensei que ia ver um trash exagerado e esquecível sobre um pneu assassino e, afinal, levei com um filme de arte que homenageia a série Z dos anos 60 e 70 e constrói todo um discurso sobre a relação do espectador com a imagem. Arriscaria dizer que é brilhante.

People, Places, Things (2015). Uma comédia sensível sem ser "dramedy". Faz sorrir mais do que rir, e tudo bem, porque as personagens são simpáticas e extremamente humanas. Dura uns 80 minutos, mais ou menos a duração de Shiva Baby ou a de dois episódios de uma série dramática, e deixou-me a pensar se hoje não será este o novo formato ideal para longas-metragens.

The Incredible Jessica James (2017). Foi curioso ver este filme seguido de People, Places, Things, do mesmo diretor Jim Strouse. Apesar de divertido e ternurento, não parece tão bem conseguido quanto este último, e eu acho que isso tem a ver com um equilíbrio melhor do elenco, uma certa magia especial que é produzida tanto pelo esforço quanto pelo acaso. 

Woodstock 99: Peace, Love, and Rage
(2021). Comecei a adolescência a ver as bandas do Woodstock 94 e acabei-a com as do de 99, então, lembro-me muito bem de todo o contexto e das controvérsias em volta deste festival fatídico. Habituei-me a pensar nele como o enterro do rock, o momento a partir do qual a MTV se concentraria no pop e eventualmente deixaria de ser um canal de música, o evento a partir do qual os preços de bilhetes subiriam e em que os promotores perceberam que, se o público aguentava isto, conseguia aguentar pistas VIP numa boa. O documentário deixa isso muito claro, mas pareceu-me que, a certo momento, ele tenta fazer exatamente aquilo que também diz ser impossível: apontar culpados do descalabro, quando, na verdade, o que fica a pairar como uma sentença terrível para os anos que se seguiriam — o pós-11 de Setembro, a vigilância em massa, o trumpismo — é a frase final de Michael Lang: «Quisemos fazer um Woodstock contemporâneo. E o contemporâneo era isto». Só faltou falar mais sobre a ascensão da Internet enquanto fenómeno da segunda metade dos 90, fator primordial para a epidemia de hipersexualização e frustração de que esta gente branca estadunidense (e não só) sofre até hoje.

The Adventures of Tintin (2011). Vendo-o pela primeira vez dez anos depois da estreia, diria que é um filme-charneira na obra de Spielberg. A aventura e o humor criam uma ponte com Indiana Jones, referenciando-o de uma forma ambígua, como se, ao fazê-lo, também se homenageasse Tintin enquanto herói-irmão do arqueólogo (não influência — Spielberg só o conheceu depois de ter lido uma crítica que comparava Raiders of the Lost Ark aos livros de Hergé). Por outro lado, essa referência e o uso da animação "motion capture" prenunciam esse grande compêndio da cultura popular que se chama Ready Player One.

The Kid Stays in the Picture (2002). A vida de Robert Evans, lendário produtor, entre outros, de Love StoryThe GodfatherRosemary's Baby e Chinatown, contada pelo próprio com o contentamento de quem cria o seu próprio mito. Quem gostar de histórias sobre os bastidores da velha Hollywood vai ver como se se babasse com um doce — e eu adoro.

Hacks (2021). O mundo da comédia profissional está lá, o subtexto sobre mulheres tentando colaborar para se desviarem das agressões do mundo também, mas, para mim, esta série foi resumida num artigo de forma brilhante com a expressão «boomers vs. zoomers». É o conflito geracional que a move, é ele que nos faz rir, além da magnífica Jean Smart. É uma série divertida, mas acho que lhe falta uma pontinha de audácia. Quem sabe nas próximas temporadas.

The Flight Attendant
(2020). Fui vê-la por causa da nomeação ao Emmy, que acaba por ser meio enganadora, porque é mais uma série de espionagem bem-humorada do que uma comédia. É estranho dizer, achei-a, ao mesmo tempo, interessante, bem feita e irritante. Kaley Cuoco está muito bem, mas a sua personagem é como aquele amigo insuportavelmente carente que nos obriga a concentrar as atenções nele quando tudo o que nos apetece é deixá-lo estraçalhar-se por aí. Ao mesmo tempo, é uma espécie de resposta (quase literalmente uma ressaca) a uma “persona” cómica de moça festeira que foi bem popular no início dos 2010s, muito por causa de Amy Schumer. Isso, e a forma como a série constrói cuidadosamente os símbolos e os vai revelando devagar ao longo da narrativa, merece que a experimentem.

PEN15
(2019-). Ainda nem terminei a primeira temporada e já consigo dizer que é das comédias mais originais e divertidas que vi nos últimos tempos. Nela acompanhamos duas meninas de 13 anos enquanto enfrentam os desafios da escola, dos primeiros amores, da família, da puberdade — e que são interpretadas pelas próprias criadoras da série, Maya Erskine e Anna Konkle, já bem entradas nos seus trinta anos, enquanto todos os outros atores têm a idade das suas personagens. É uma premissa dramatúrgica extraordinária e extremamente arriscada, mas elas conseguem fazê-la funcionar. Parece que, ao interpretarem estas versões semificcionais delas mesmas, Erskine e Konkle sabem por instinto como fazer delas personagens simultaneamente com graça e dignidade. A empatia é imediata, porque, às vezes, todos fazemos o mesmo: rimos das nossas encarnações adolescentes ao mesmo tempo que lembramos esse tempo num misto de ternura, saudosismo e azedume. Parece beber um pouco de Superbad, um outro tanto de Big Mouth e é uma grandiosa representação da adolescência feminina. 

Shrill
s03 (2021). No especial Talking Funny, Chris Rock revelou um dos seus lemas de trabalho, e ele pareceu-me desde então um excecional medidor de bom gosto cómico: «ri-te do que as pessoas fazem, não do que elas são». Na sua temporada final, Shrill confirmou o que sempre pareceu ser: uma série “woke” por excelência, mas que percebe que isso não é nenhum impeditivo para satirizar a cultura “millennial”, porque o que importa, lá está, é rir do que as pessoas fazem, não do que elas são. É uma série muito representativa dos nossos tempos pós-Seinfeldianos, em que se prefere o cómico de situação ao de personagem ou, melhor, em que se recusa a caricatura se esta não for conquistada com o aprofundamento das contradições da personagem. Perceber que os vilões não são assim tão vilões e os bonzinhos não são assim tão bonzinhos atrapalha a comédia? Absolutamente nada, porque nós, pessoas, somos um poço infindável de falhas, exageros e passos em falso, e a comédia está aí. O final da série — sem spoilers — é um exemplo claro disso, mostrando-a como uma história “coming of age” que celebrou a juventude e, de repente, se descobre adulta sem saber o que isso significa.

Dracula (2020). Depois de Sherlock, Gatiss e Moffat releem um outro clássico literário novecentista. O “modus operandi” deles parece o mesmo – explorar a fundo as características da personagem, usar as histórias canônicas como premissa para extrapolações – e isso acaba por traí-los no episódio final, mas, no geral, é uma bela releitura, principalmente pela forma como a personagem do Drácula é pensada para a atualidade: como um predador, uma espécie de Harvey Weinstein/stalker/psicopata/minion que suga a vida dos outros para ganhar a sua. Considerando isso, não me parece acaso que Claes Bang interprete o conde como se roubasse um pouco de cada um dos seus grandes atores (Schreck, Lugosi, Lee, Oldman), construindo um vilão fascinante e contraditório tal como Andrew Scott fez com o Moriarty dos mesmos autores. O seu Drácula é insaciável, nada romântico, sarcástico e até engraçado. Bem divertido.

Katla
(2021). Já vimos as paisagens geladas da Islândia nos “nordic noir” Trapped e The Valhalla Murders e no terror psicodélico de Fortitude, mas Katla é outra coisa. Constrói um paralelismo brilhante entre espaços físicos e psicológicos talvez como nenhuma outra série nórdica antes dela, deixando-nos numa tensão constante que nunca parece dissipar-se. Isso parece ser a sua grande vitória e, ao mesmo tempo, aquilo que a torna vulnerável a críticas, porque não há nela variações de tom para aliviar um pouco o peso do espectador. Vê-la é um exercício de inquietude e de reflexão sobre o tempo, a memória e a individualidade. 

It’s a Sin
(2021). Russell T Davies chegou àquele Olimpo autoral em que o seu nome chega para chamar o público, mas isso não significa que ele caia na preguiça. Esta é uma belíssima história sobre os primeiros dias da AIDS em Londres e Davies, como já tinha mostrado em Years and Years, é um mestre do tom – muitas lágrimas contrabalançadas com muitos sorrisos – e das personagens, todas cheias de contradições morais, todas com pelo menos um momento para brilhar. Os atores devem amá-lo.