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Explicação ao Brasil da lista da Vice Portugal

A Popload republicou uma lista da Vice Portugal. Para desvanecer as dúvidas sobre os artistas portugueses que lá aparecem:

B Fachada: bem mais novo do que Marcelo Camelo e bem menos fashion. Mais um Devendra Banhart, se Devendra Banhart tivesse influência de música tradicional portuguesa e pop-rock tuga dos anos 80.
httpv://www.youtube.com/watch?v=Ld2hDc5R9iQ&feature=related

Fausto Bordalo Dias: um dos gigantes da música nacional, veio na onda de cantautores de esquerda ligados à revolução democrática nos anos 70. Autor de "Por este rio acima", um dos álbuns mais importantes de sempre em PT. Pode ser considerado um Caetano, mas, como esteve muito tempo desaparecido, será mais um Tom Zé, menos alegre e menos louco.
httpv://www.youtube.com/watch?v=vPxBNVs0s6E

Norberto Lobo e Filho da Mãe: os dois novos expoentes do violão em Portugal. Com a influência clássica da guitarra portuguesa de Carlos Paredes, mas já com trejeitos de jazz e rock - ao contrário da geração anterior -, fazem música melancólica, muito, muito portuguesa e muito, muito bela.
httpv://www.youtube.com/watch?v=XL6r9E7dR1c&feature=related
httpv://www.youtube.com/watch?v=O3J0OHNHOEw

Paus: a banda rock que está acontecendo em Portugal. Têm um toque eletropunk, um tanto de pós-rock e, mais uma vez, bastante de rock português dos anos 80. Estive em Portugal em Outubro e posso dizer que todo mundo lá adora Paus.
httpv://www.youtube.com/watch?v=SMwbye9H84Q

As chouriças pretas da Rosinha do Lapa


Não lhes vou chamar morcelas, porque toda a vida lhes chamei isto: chouriças pretas. Ou de sangue, pronto. Digo com segurança que as da Rosinha do Lapa, que tem o talho na Praça da República de Monção, são as melhores do mundo. Não sei se é do fumeiro ou da carne, mas alguma coisa elas têm, porque são diferentes de quaisquer outras. Em Monção, notava logo a diferença quando a Rosinha não as tinha e a minha mãe tinha de comprar outras noutro lado qualquer. Em Coimbra, ficava-me pelas alheiras que a minha amiga Cândida trazia de Macedo. Deliciosas também, mas alheira é outra liga. Quando almoçava cozido à portuguesa nos cafés de Lisboa e provava aquele sucedâneo com sabor de plástico de embalado, chorava por elas. Aqui, no Brasil, foram das primeiras coisas que trouxe, porque o André, com quem fiquei na primeira semana, me disse logo que isto não era famoso de enchidos e que, se lhe queria mostrar gratidão, era um bom jeito. Nunca mais deixei de as trazer. Se Marcel Proust tivesse conhecido a Rosinha do Lapa, não se tinha andado a meter nas madalenas para lembrar a infância.

Não é normal cozinhar-se com sangue em São Paulo e os nativos ficam meio surpreendidos quando as vêem. No Natal, levei uma para um churrasco na minha produtora (ver foto) e as reações variaram entre a repugnância e a adesão total. Pelo meio, houve quem tivesse franzido o sobrolho no início e repetido a dose no final.

Durante a minha vida aqui, as chouriças pretas da Rosinha do Lapa acompanharam-me por alegrias e tristezas. Uma alegria foi o cozido à portuguesa que o pessoal do Inov-Art armou quando ainda cá estávamos todos e pude vê-los, todos de diferentes regiões de Portugal, a confirmar o que eu já sabia: que são as melhores da História. As tristezas deram-se normalmente como, quando ontem, assei a última chouriça. Mas talvez esqueça isso quando hoje estiver a almoçar a outra metade dela com um belo arroz de açafrão.

Alô, alô, estupro, Brasil

Os fatos são que uma moça ficou bêbeda no Big Brother, andou aos amassos com um rapaz, foi dormir e ele saltou para baixo dos lençóis. Desde essa noite, o Brasil anda a discutir se ela foi estuprada. Se uma mulher bêbeda pode ser violada, os limites do consentimento, se o rapaz estava bêbedo também, se um bêbedo pode estuprar, etc. A Globo não mostrou nada na versão editada e, se não fosse o pessoal que viu tudo no pay per view e fez barulho nas redes sociais, talvez a polícia nem tivesse sido chamada.

Talvez seja o final da reality TV nos moldes que conhecemos dos últimos 15 anos. Parece-me claro que um programa que chega ao ponto de tornar tópico de discussão se uma mulher foi estrupada ou não em frente às câmeras foi longe demais. O formato BB assenta em fazer coisas acontecer para gerar fofoca, esse é a motivação dele. Um noticiário informa, uma novela conta histórias, o BB gera fofocas. Tudo bem. Ninguém é santo, a fazer TV muito menos. Mas permitir-se colocar pessoas numa condição em que este tipo de dúvida pode surgir é chegar no puro vazio. O atrativo que o BB poderia ter foi-se. A fantasia que ele criava, o mundo além do mundo que, como a Disneylândia, ele arquitetava, desfez-se quando ele se perdeu dentro dele mesmo e bateu de frente contra o real. E essa fantasia nunca mais se recuperará, porque mais ninguém volta a acreditar no Papai Noel depois que sabe que ele é o tio com uma barba.

Marcelino Freire tem razão:
Acho que virei puritano,
melhor eu ficar na minha.

Só não posso concordar
que apenas o negro
tenha de pagar pelo abuso
coletivo.

Por debaixo dos panos,
todas as noites,
sempre foi este
o nosso programa
preferido.

Quero subsídios estatais para programas de reality!

Cheguei hoje à conclusão que os programas de reality TV promovem a imagem de um país no estrangeiro e é essencial que eles sejam apoiados pelos Ministérios de Turismo. Sinceramente, que país preferiam visitar?

Portugal...
httpv://www.youtube.com/watch?v=10jnI1DtaOY

...o Brasil...
httpv://www.youtube.com/watch?v=CP64KdHAqBs

...ou a Suécia?
httpv://www.youtube.com/watch?v=ZPKacexvc6s

"Brasileiro não é de confiança": negando ideias, 2

Série de posts sobre coisas que se poderão pensar sobre o Brasil e os Brasileiros e que não são assim bem verdade.

Em Portugal, é normal pensar-se que a palavra dos brasileiros não é confiável, que não se pode contar com aquilo que eles prometem, que não se deve esperar muito dos seus acordos. Como em muitos outros mal entendidos entre as nossas duas nações, isto surge de um desencontro que é mais semântico do que psicológico. É o mesmo tipo de engano que leva os brasileiros a pensar que português precisa de ter tudo muito bem explicadinho porque é menos provido de capacidade cerebral. Não é por isso (a menos que seja um português pertencente à classe política), mas sim porque não falamos a mesma língua. A palavra "camisola" em Portugal é como falar "blusa". Tipo, não é uma coisa para as senhoras usarem enquanto dormem, significado de "camisola" no BR, mas à qual a gente chamaria "camisa de dormir". Um português que chega aqui e percebe aquilo que tem para jogar tem duas alternativas: ou é chatinho com explicações ou morre soterrado numa avalanche de confusão.

Quando eu cheguei ao Brasil, o amigo com quem morei uma semana antes de ter arranjado casa (ou seja, antes de ele me ter expulsado), disse-me que, se acontecer alguma coisa, se vir que algo está a demorar muito, que não me estão a dar o que preciso, descontrai. Não te enerves, diz ele, e conversa de boa. Conversar é, realmente, o melhor a fazer. O brasileiro é emocional, comunicativo e dá importância às impressões que vão sendo transmitidas. A partir do momento em que entendemos isso, não há razão para que algo dê errado. É só contar com uma diferente forma de agir. Brasileiro não falta aos compromissos, mas é descontraído com eles, e comprometer-se implica uma diferente forma de agir e de falar daquelas que há em PT. Dizer que "temos de jantar", que "marcamos para sair", que "vamos combinar" não significa que se jante, que se saia ou que se combine. Mas ele está sendo sincero. Se alguém fala isso, é porque quer mesmo que isso aconteça. Porém, a vida no Brasil é um eterno devir e dá muitas voltas. Brasileiro sente que é preciso deixar que a vida aconteça e as vontades se encontrem a certo momento. Por isso, calma.

"O Brasil é um caos para viajar": negando ideias, 1

Série de posts sobre coisas que se poderão pensar sobre o Brasil e os Brasileiros e que não são assim bem verdade.

O Brasil é um país que assenta na necessidade de se movimentar e quem oferece esse tipo de serviços sabe-o muito bem. Os transportes no Brasil são ótimos. Nas grandes cidades, então, nem se fala. O Metro de São Paulo é dos mais eficientes que já vi, com um tempo de espera muito reduzido. Tem muita gente, é verdade, e a hora de ponta é à japonesa, com toda a gente espremida dentro das carruagens, mas funciona relativamente bem mesmo nessas horas. Noutras cidades onde estive, como o Rio, Recife ou Belém, os transportes também são bons, a informação sobre eles é de fácil acesso e fiável e os destinos são inúmeros, para além de lugares de mais difícil acesso terem gerado o um setor que não existe na Europa, o moto-táxi.

Isso é reflexo de um país onde durante muito tempo foi impossível para uma grande parte da população - e não só os mais pobres - comprar um carro. A industrialização dos anos 50 foi feita com um grande companheirismo entre classe política e fabricantes de automóveis e a primeira deixou cair as ferrovias. Com muita gente sem carro a morar nas periferias e a precisar de ir para as cidades vizinhas ou para os centros para poder trabalhar, as empresas de ônibus farejaram a oportunidade.

Sem discutir se o que veio primeiro foi o ovo ou o cu da galinha, há também uma propensão, digamos, psico-social. O brasileiro liga e desliga das relações com facilidade. Pode ter uma conversa super animada e esvaziar a alma com alguém que acabou de conhecer enquanto esperava o ônibus, mas, se o ônibus chega e não dá para conversar mais, se a conversa fraqueja, se algo não bate certo, desliga e, sem problemas, parte para outra. Não há tanto apego às pessoas como há àquilo que o próprio sente. O outro importa na medida do que eu sinto por ele - o "eu" está sempre lá. Movimento, movimento, eterno devir. Também era relativamente normal um homem ter a família oficial num estado e outra noutro. Os soldados portugueses em África nos anos 70 escolhiam se ficavam com a família de guerra ou se voltavam à portuguesa. Aqui não: o homem viajava de estado para estado ou de cidade para cidade para poder estar à vez com toda a gente.

O maior viajante que já conheci na vida é o Claudio Vitor Vaz, que conheci ainda em Coimbra e que já viajou por meio mundo. Ele não precisa de razões: ele vai. E os brasileiros são assim: eles vão correr o mundo, conhecer outros lugares, e voltam. Ou não. Mas a vida é assim mesmo.

Rafinha Bastos faz o que um comediante faz

Rafinha Bastos respondeu à polêmica de que falei no meu texto anterior. E respondeu como só um comediante pode responder. Lamentando-se? Não. Inventando desculpas? Nem por sombras. Zangado? Talvez, mas não importa. Rafinha fez o que é suposto que um comediante faça: comédia. Afinal, é simples assim.
httpv://www.youtube.com/watch?v=zCQHDXe3ENk

Gisele, Rafinha, o humor e o medo

O meu trabalho assenta na liberdade de expressão. Eu ganho a vida a escrever. Se eu não puder escrever o que quero, não posso ganhar a vida. É assim simples. Uma expressão limitada limita-me no meu direito a trabalhar. Por isso, é sempre com alguma aflição e violência que reajo a opiniões que me dizem que não posso escrever ou dizer algo, porque não é "politicamente correto" ou algo parecido. E isso também me acontece sempre que vejo notícias semelhantes sobre pessoas que ganham a vida da mesma forma.

Na semana passada, a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SEPM) pediu a suspensão de uma campanha com Gisele Bündchen, considerando que ela continha conteúdo discriminatório. Vejamos um dos anúncios dessa campanha.
httpv://www.youtube.com/watch?v=nk5H_BdxMz8
Vejamos agora um anúncio anterior da mesma marca, também com Gisele Bündchen.
httpv://www.youtube.com/watch?v=W_i6Kf-8C2c
O copy do anúncio antigo é "ela é brasileira. Sexy. Leve. Natural. Ela é Hope". Parece-me que dizer que a mulher brasileira é necessariamente "sexy, leve, natural" é mais tipificador do que dizer "você é brasileira, use seu charme". Também me parece que o corpo de Bündchen no anúncio mais antigo é mais objeto do que no mais recente, que ao menos lhe dá uma personalidade e voz. Porém, foi esse anúncio o que ofendeu a SEPM. A Secretaria divulgou mesmo um artigo que diz que “as agências publicitárias precisam crescer e aprender com os exemplos de maturidade e de cidadania que as mulheres brasileiras vêm oferecendo ao país. E tudo isso sem precisar tirar a roupa".

Podemos sempre discutir como é que uma marca de lingerie feminina faz um anúncio em que uma mulher não tire a roupa. Pode ser genial, quem sabe. Mas não consigo deixar de pensar no que poderá ter levado a SEPM - e grande parte da opinião pública - a ter reações tão diferentes em relação a dois anúncios com um conteúdo tão parecido. Só consigo chegar a uma conclusão: o tom. O anúncio antigo é sensual, fashion, choque q.b. O recente é cômico. Então, na verdade, não é o que o anúncio afirma sobre a Mulher que causou essa reação, mas o tom com que essa afirmação foi feita. O humor é um meio familiar ao público, que comunica instantaneamente. Pode ser corrosivo, provocador e tudo o mais, mas, acima de tudo, é eficaz, porque vai atrás do espetador. No anúncio antigo, olhamos para Gisele, mas, no mais recente, é ela que nos olha e nos aborda, de uma forma anormal e desconcertante em comerciais de lingerie. Assim, na base, a reação não foi contra a mensagem do anúncio; foi contra o seu tom humorístico, única diferença relativamente ao anúncio anterior com a mesmo conteúdo. E isso leva-nos a Rafinha Bastos.
A primeira parte do caso Rafinha Bastos começou há uns meses com a abertura de um inquérito que lhe foi movido por suspeita de apologia ao crime por ter dito num dos seus shows de stand-up que "toda mulher que eu vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia pra caralho. Tá reclamando do quê? Deveria dar graças a Deus" e “o homem que cometeu o ato merecia um abraço, e não cadeia". Isto foi considerado uma possível incitação ao estupro.

Não assisti a esse número de stand-up, mas o Rafinha é um cultor do humor negro. A sua comédia é toda agressiva, confrontacional e controversa. Ora, ninguém é obrigado a gostar de Rafinha Bastos e qualquer um o pode criticar. Pela natureza do seu espetáculo, ele sujeita-se a isso. Mas a pergunta é: goste-se ou não dele, faz sentido o Estado intrometer-se desta forma naquilo que claramente faz parte de um número de comédia, especialmente um que inclui frases tão inconcebíveis como "desde que sou pai, concordo com o aborto"? Por outras palavras, Rafinha Bastos é um comediante que lida CLARAMENTE no terreno do absurdo da violência e da ironia. Quem o vê sabe CLARAMENTE que está a ver um show de comédia, não uma missa ou um discurso político (apesar de haver muitos discursos e missas que parecem piada). Um mecanismo de suspensão dramática funciona nesse caso, da mesma forma que um espetador do filme A Queda sabe que as palavras que Hitler fala nele não são do ator ou do roteirista, mas da personagem Hitler. Um humorista apresenta-se sozinho com o seu nome e, portanto, arrisca-se mais. Mas É um discurso artístico, É uma expressão que deve ser protegida pelo direito ao abrigo da qual é dita. E se um Estado utiliza um instrumento legal, a abertura de um inquérito judicial, como meio de intimidação a um espetáculo que CLARAMENTE não é uma incitação ao estupro, mas um exagero do que se pode falar sobre ele, o que garante que não a usará para intimidar peças de teatro que considera controversas, filmes que considera desconfortáveis, livros que considera imorais? Quem define o limite e garante que não teremos uma censura encapotada que, sem instrumentos diretos para maneirar alguém, age pela amolação, pelo desconforto, pela pressão?

A revista Veja chamou a Rafinha Bastos "o novo rei da baixaria", mas isso é errado. Baixaria não ofende. Baixaria reduz-se ao que é, todo mundo a reconhece como tal e, por isso, não liga. No Brasil, funk é baixaria. Em Portugal, os Malucos do Riso eram baixaria. Mas Rafinha Bastos é mais do que baixaria: é incômodo. Faz humor perturbante e, goste-se ou não do que ele faz, a comédia deve ser uma forma de expressão livre num estado democrático.

Compreendam-me: não se trata de negar o direito do Estado de atuar contra uma apologia ao crime ou de toda e qualquer expressão ser ilimitada. Eu aceito que o Estado atue contra ações ou palavras que perturbam a ordem democrática - mas não contra ações ou palavras que são meramente malcriadas. O exagero é parte necessária da comédia, a suspensão dramática também. Um comediante tem direito a ser malcriado e ofensivo e a submeter-se ao arbítrio do público, que pode ou não gostar dele. Mas agir legalmente contra más educações é coisa de ditadura religiosa.

É preciso dizer-se que há uma tendência para a educação no Brasil. Há uma espécie de consenso silencioso que diz até onde se pode ir nos comportamentos, na exposição do corpo, no sexo, e um temor, silencioso também, de ultrapassar esse limite. Na praia, não há qualquer problema em usar um bikini de fio dental que expõe completamente a bunda, mas é muito incorreto uma mulher fazer topless. O jogo de casino é ilegal, mas o jogo do bicho (uma espécie de loteria clandestina com figuras de animais) é geral e feito às abertas, apesar de continuar ilegal, ao que se diz porque essa ilegalidade beneficia muita gente, incluindo membros da classe política. Cada país tem as suas hipocrisias, nenhum é melhor do que o outro. No entanto, estejamos onde estivermos, não podemos deixar de chamar as hipocrisias pelo nome.

A segunda parte do caso Rafinha Bastos aconteceu há uns dias, quando ele foi afastado do programa que co-apresentava, o CQC, por ter respondido "comeria ela - e o bebê!" à notícia de que a cantora Wanessa Camargo está grávida..
httpv://www.youtube.com/watch?v=_iRScEQU9p0
Agora vejamos o refrão do último êxito da cantora, que trilha uma carreira internacional:
"You gotta zoom zoom zoom, get in my room room room, you gotta boom boom boom, rock me like vrum vrum vrum".
Sejamos sinceros: a carreira de Wanessa assenta largamente na sua representação sexual. Quando Rafinha Bastos exclama que "comeria ela - e o bebê!", ele está a evidenciar esse fato claro. Por muito que se queira, ainda não se pode ser sexual sem sexo. Uma atriz não pode fazer capas de revista evidenciando o decote e esperar que não se fale sobre isso. Um ator de filmes pornos não pode esperar que o considerem pelo seu conhecimento de Shakespeare. Se Rafinha Bastos se coloca a jeito para que não gostem dele e do seu humor, Wanessa Camargo coloca-se a jeito para ouvir piadas sobre a persona sexual que representa na sua imagem pública. Rafinha Bastos foi malcriado, mas não foi gratuito. Foi duro e agressivo como sempre é, como já se espera que seja, e a piada funcionou - a plateia riu, tal como riu Marco Luque, o colega de apresentação, cuja retratação mostra fraqueza de espírito e um desejo de consenso que é contrário ao que deve ser o instinto disruptivo de um humorista.

Uma amiga fez-me um reparo: Rafinha Bastos não estava a falar num teatro cheio do seu público, que pagou R$100 para o ver, mas na televisão aberta. Ela tem razão. Podemos acusá-lo de falta de bom senso. Mas isto leva-nos a outra pergunta: porque o discurso de uma TV aberta tem que ser normalizador e não expor esses choques sociais? Porque a comunicação que toda a gente pode ver tem que fingir que o mundo é um lugar sem conflitos, sem opiniões, onde nada tem implicações em coisa nenhuma? De certa forma, a televisão esvazia o sentido do que diz para poder sobreviver enquanto entidade comunicativa no mundo. Parece que o ideal televisivo implica que as pessoas se respeitem umas às outras fazendo com que o que dizem seja inconsequente, como naqueles concursos de 3 horas na late night tv em que o espetador telefona para ganhar dinheiro: um discurso que não afirma, se oferece ao consenso, evita todo e qualquer tipo de conflito e em que perder e ganhar não importa, porque tudo é nivelado pela planura da transmissão.

Repito: o Brasil não é diferente de qualquer outro país. Portugal não está isento disto (o caso Rui Sinel de Cordes ainda é recente), nenhuma sociedade moderna o está. Mas as democracias constroem-se com os conflitos acontecendo no aberto e discutidos no espaço público. Estas reações, ao contrário, são reflexo de uma sociedade regida pelo medo. Eu não gosto de medo. Metade do meu esforço de sobrevivência consiste em enfrentá-lo, e não consigo aceitar quem se rende a ele. Deita-me abaixo. Só gostaria que mais pessoas pensassem assim.

Coisas do Brasil: a lei do psiu

No cardápio do Papo, Pinga e Petisco, na Praça Roosevelt, vem uma "curiosidade" entre as cervejas e as caipirinhas:
Aqui, neste local, foi realizado o primeiro show de Elis Regina em São Paulo, no ano de 1964.

Era meia noite e o White Album dos Beatles tocava a altos berros. Na verdade, parecia uma versão condensada do White Album, porque as canções soavam mais rápidas do que o costume. E, talvez, não seja o White Album, porque, no preciso momento em que escrevo isto, está a tocar a Let It Be, que é do álbum homónimo. Enfim. O fato ainda mais curioso do que a "curiosidade" é que, logo por baixo da info sobre a mãe da Maria Rita, vem o aviso a bold:
Nosso Bar respeita a "Lei do Psiu", pedimos que não excedam no barulho.

O que me leva a duas perguntas. A primeira: será que a Elis poderia ter tocado aqui em 1964 se já houvesse lei do "psiu"? A segunda: quem batizou ela de lei do "psiu"? É que "psiu" pode ser "silêncio", mas também pode ser "psiu, ó para mim aqui te chamando...". Porque não lei do "chut"? Ou lei do "calou!"? Ou lei do "eu quero dormir, poha!"? Ou lei da "coña marinera"? Definitivamente, houve falta de imaginação.

Mr. Guache vende!


Anderson Almeida, aka Mr. Guache, foi das primeiras pessoas que conheci no Brasil. Acho-o muito má pessoa e fraco no que faz [super modo de ironia ligado]. Ele pôs à venda no site Artflakes este FABULOSO portfolio inspirado em cartas de tarot, do qual a imagem em cima é só um exemplo. Vamos todos comprar como se não houvesse amanhã, minha gente?

O poeta é um chocolate


É sabido que o Brasil tem um caso de amor com um funcionário administrativo bigodudo, cegueta e alcoólico chamado Fernando Pessoa. Independentemente da qualidade do tiozinho, tanto amor parecia suspeito: alguma coisa mais profunda tinha que explicar identificação tão próxima. Relendo a Tabacaria, percebi tudo.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Se ele tivesse escrito sobre catupiry, então, tinha a vida feita.

Quero uma canção brasileira de 1983 elevada a novo hino de Portugal!

httpv://www.youtube.com/watch?v=9aHoWTs6xE0
A gente não sabemos escolher presidente.
A gente não sabemos tomar conta da gente.
A gente não sabemos nem escovar os dente.
Tem gringo pensando que nóis é indigente...
A gente faz carro e não sabe guiar.
A gente faz trilho e não tem trem prá botar.
A gente faz filho e não consegue criar.
A gente pede grana e não consegue pagar...
A gente faz música e não consegue cantar.
A gente escreve livro e não consegue publicar.
A gente escreve peça e não consegue encenar.
A gente joga bola e não consegue ganhar...

Uma das coisas de que me orgulho mais de ter feito no Brasil

Uma das perguntas que me fazem mais aqui começa por "lá fala...?" ou "sabe o que é...?". Normalmente, não me importo e até gosto. Conheci muitas expressões tupiniquins assim e, se às vezes me perguntam uma coisa que obviamente existe em Portugal, é, presumo, porque não será tão óbvio para estrangeiros. Foi uma das formas por que fui conhecendo esta língua que, como diz o meu amigo Raphael, é a mesma que se fala em PT, mas não é a mesma que se fala em PT. E serviu-me também para concluir da total inutilidade de discutir o acordo ortográfico. Se alguém acha que é isso que vai fazer com que todos se entendam, chama um príncipe que te acorde, Branca de Neve.

Mas às vezes irrito-me porque, já se sabe, gente burra há em todo o lado. E o mundo sofre. Perdoa-me, mundo. Não consigo deixar de ser um Átila social de vez em quando. Mas nunca contra inocentes, que isso fique claro.

Então, deu-se o caso de uma noite ir ao aniversário do amigo de um amigo na Vila Madalena e estarem lá três moças, não mais de 20 anos, muito contentes por estarem lá. Talvez porque a maconha que fumavam estava enrolada em sedas transparentes, o que só por si já é bastante irritante. E a cara de felicidade nas miúdas quando perceberam que havia um mexicano, um francês e um português com quem podiam conversar! Gente, que da hora, né?

Bom, deu-se o caso de a conversa revelar que, se elas ainda tinham um neurônio na cabeça no início, fora competentemente assassinado pelo THC. O meu diabinho começou a espetar a espada quando elas sacaram um celular e se puseram a gravar a conversa como se estivéssemos a ser entrevistados para a rádio. "É que a gente faz sempre isso quando sai, sabe". Sei, filha, e também sei que devias ter levado mais açoites quando eras nova. Mas quando elas pediram "digam uma gíria do país de vocês que não tenha no Brasil" e, virando para mim, perguntaram "sabe o que é gíria?", o sangue ferveu-me a temperaturas nível Fukushima. O francês lá disse alguma gracinha, o mexicano também. E então o celular feito microfone de rádio virou-se para mim.

"Cunh..a...ni". Os olhos delas arregalaram-se de espanto.
"Chunhani? O que é cunhani?"
"Cunhani... é... é quando estás a cozinhar, derramas algo e dizes 'já fiz cunhani!'".
E elas viraram-se umas para as outras dizendo "nossa, lembra aquela vez que fiz cunhani no jantar do meu irmão? Cunhani! Que legal, gente!".

Só então me apercebi de todo o potencial do momento. E não consegui resistir. Posso ter comprado um lugar permanente e com vista panorâmica para o Inferno, mas tudo isso vale a beleza pungente do que se seguiu.

"Tem ainda uma palavra parecida com cunhani que também se fala em Portugal..."
"Qual?!"
"Cona. Sabe o que é?"
"Cona?! Não! O que é?"
"Então, cona é muito usado entre mulheres. Se você acha que tua amiga ou tua mãe está muito bonita, você fala 'você está muito cona'".
E eu juro que lágrimas correram pelo meu rosto quando nesse momento elas se viraram umas para as outras e disseram "nossa, amiga, como você está cona hoje!". "Ah, não, querida, você está muito mais cona do que eu". "Não, não, amor, você não está cona, você é cona!"

Pude então desligar-me da conversa. A minha função estava completa. Eu sabia que o acaso cósmico me tinha levado até aquele trio por alguma razão. A razão era aquela. E eu desejo ardentemente que uma pessoa que saiba mesmo o que é "cona" um dia ouça aquela gravação e se mije a rir tanto como eu me mijei. Se isso acontecer e eu souber, vou dar mil e uma graças a Deus. Ou ao Diabo.

A vida imita Scolari

Digamos que você, minha senhora, tem um carro e o vende. O carro vale, você sabe, 1000.

Ora, o seu irmão tinha deixado quadros na mala dele. Esses quadros, só eles, valem 2000. Você sabe tudo isso.

Mas você tem um problema de dinheiro. Assim, vende o carro ao seu vizinho. Vende-o por 500. Não sabe explicar porquê, uma vez que o carro valia 1000, mas vende. E não diz nada ao seu marido sobre os quadros.

Porém, o seu marido tinha-a ajudado a comprar o carro e tem a receber 50. Ainda assim, ele só pede 40. E ele também não sabe explicar porquê.

No final, o casal perde 2510 e nenhum sabe explicar porquê.

E quando o vizinho se atrasa a pagar os 500, eles dizem às pessoas a quem devem dinheiro que não conseguem prever muito bem quando vão receber, como quem não se importa muito.

Mais ou menos isto aconteceu entre o Governo Português, o BPN o BIC e Juan Miró. O BPN é o carro, o BIC é o vizinho, Miró é o irmão, o Estado é o casal.

E, como dizia Scolari, os burros somos nós.

Algumas opiniões sobre música house, reunidas em conversa com meu amigo Pablito

House faz-me querer levar um murro nos queixos só para sentir dor e saber que a dor é real.

House faz-me querer partir um copo e enfiar um caco no olho. E depois enfiá-lo no olho do Pablito. O sangue quente caindo pela cara far-nos-á sentir em comunhão com o caos organizado e pulsante da vida.

House faz-me querer dar um pontapé na cara de uma criança e, enquanto a vejo cair, chorar.

House faz-me querer estrangular o amor e enterrar as sobras num pântano de trufa, para que possa ser encontrado milhares de anos mais tarde em perfeito estado de conservação.

House faz-me querer comprar um kilt, para poder rasgá-lo e cavalgar um cavalo à chuva.

House dá-me vontade de comprar todas as revistas da Turma da Mônica numa banca e dá-las a crianças pobres com a condição de lhes poder tatuar "666" na testa.

House dá-me vontade de ver House na televisão. E depois dar um tiro de revólver nela e ficar triste por a série se chamar House e eu estar sem televisão.

House faz-me querer ir numa festa de formatura de uma escola espírita e espetar uma faca na coxa enquanto todo mundo dança à minha volta.

House faz-me querer pegar cachorros abandonados na rua e matar-lhes a sede com elixir bocal.

House faz-me querer organizar uma missa do sétimo dia em que no final toda a gente tenta partir uma piñata.

House faz-me querer mudar meu nome de Jorge para Pablito e dar o cu, só para poder dizer que o Pablito dá o cu.

House faz-me querer que o botão f12 sirva para detonar uma bomba atômica no atol de Mururoa.

House faz-me querer pensar na crueldade do mundo enquanto nado num mar de Pantene, caviar e cocó.

Coisas do Brasil: miojo


Há na arte culinária todo um capítulo à parte intitulado "cozinha para universitários". Fica no mesmo volume da "cozinha para homens solteiros", da "cozinha para pessoas que não se aprecia muito" e da "cozinha para pessoas que se aprecia, mas que por qualquer razão queremos pôr à prova para saber se gostam mesmo de nós".

Mas foquemos os estudantes por um instante. Quando eu estava na universidade, o prato por excelência era a massa com atum. Água a ferver, massa lá para dentro, atum desfeito depois. Ainda que não houvesse sal em casa, não importava, porque o atum tem um sabor Microsoft - que monopoliza tudo o resto. A massa enchia, o atum dava sabor. Matava a fome, era rápido e depois podia-se estudar, ou algo que universitários façam mesmo. Ora, eu tenho morado com muitos universitários aqui no Brasil e posso sinceramente dizer que, nas casas onde morei, não deve ter havido um único dia em que não se tenha cozido um miojo.

O miojo não existe só no Brasil. Eu já o tinha comido em Portugal, onde lhe chamamos massa instantânea. Cup Noodles é uma variante semelhante. Ou seja, miojo é uma massa rápida vendida em porções individuais e acompanhada de um pacotinho de caldo em pó que se deita na massa depois que ela está pronta. O caldo, confesso, é aquilo que me custa mais engolir (literalmente). A massa, inventada pelo senhor Momofuku - que só consigo imaginar que seja o equivalente japonês para "motherfucker" - começou a ser vendida no Brasil com essa marca. É barato. Os supermercados Ronda vendem-no a 60 centavos o pacote, por exemplo. Por isso, e por não exigir grandes cuidados de preparação, o miojo conquistou o país. A marca acabou, o nome ficou e ninguém se parece importar que seja quase igual à palavra "mijo". Que, aliás, é exatamente ao que a massa pode saber se se puser lá o pacote inteiro de caldo em pó.

Apesar de ser uma das iguarias mais simples do mundo, o miojo permite-se toda uma série de variações. Há quem tire a água e deite o pó na massa já no prato. Há quem ponha água a mais do que a receita impõe, para ficar com mais molho. Há quem ponha logo o pacote de caldo todo e quem não aguente nem um pouquinho dele. Há quem junte acompanhamentos na panela e quem os prefira fazer só no prato. Há quem coma miojo cru. E, claro, há quem junte atum.

O miojo, ao fim e ao cabo, é como a tela de um pintor. Importante, mas não é ela que define o que o quadro vai ser. O miojo é democrático: aceita tudo e a tudo se presta. Miojo é amor.

Mas massa instantânea não deixa de ser massa - e, bem vistas as coisas, um macarrão normal não demora assim tanto mais a cozer. A caraterística principal do miojo, bem como de toda a cozinha universitária, é ser prático. Então, aliemos isso aos nossos paladares gourmets. A minha versão pessoal do miojo nasceu do entendimento que não custa fazer um molho à parte com azeite, alho e tomate, escorrer a água em excesso da massa, deitar o molho por cima, ralar parmesão e salpicar com orégãos. Fica ótimo e só demora uns 15 minutos a preparar. Quem sabe, com cuidado até se pode usar o caldo em pó.

Coisas do Brasil: catupiry e chocolate


Aprende-se na catequese e na igreja e nos vídeos do padre Marcelo Rossi que Deus é diferente, porque é omnipotente, omnisciente e omnipresente. Das primeiras caraterísticas, não tenho muito a dizer. Mas na terceira, no Brasil, ele não tem o primeiro lugar indisputado. Duas coisas estão, se não mais, pelo menos tão presentes na vida neste país: o catupiry e o chocolate.

Há dois momentos na vida de um homem: antes de ele saber o que é catupiry e depois. A coisa parece respeitável de início. Uma espécie de creme de queijo, um pouco à la Philadelfia, mas sem sabor sintetizado, inventado por um italiano em Minas Gerais há 100 anos. Um amigo mais velho disse-me que o catupiry não é assim tão antigo na sua ubiquidade. Foi só nos últimos 20 anos que a hotelaria descobriu todo o seu potencial e o começou a utilizar em tudo o que é possível. Hambúrgueres, sanduíches, tortas, pizzas, coxinhas e todo o tipo de salgados, acompanhamento em dezenas de pratos, doces e sobremesas várias. A sofisticação das casas vê-se no fato de utilizarem "o verdadeiro Catupiry" ou só um sucedâneo e "com ou sem" catupiry é uma pergunta da praxe em qualquer lugar que venda comida. Ou seja, no Brasil há toda a comida, por um lado, e, pelo outro, há catupiry. Ele é um continente à parte. Se fosse um país, era a Austrália.

Foi numa novela brasileira que ouvi pela primeira vez a expressão "chocólatra". Era uma dona de casa loira que, se me lembro bem, enganava o marido. E, se é verdade que nunca deixará de haver maridos cornos, também o chocolate não vai abandonar o Brasil tão cedo. O brigadeiro é o doce nacional por excelência; comer brigadeiro de colher (que todo mundo come da mesma panela, juntando o prazer do chocolate e do açúcar ao da saliva dos amigos e colegas de trabalho) é um ato comunitário só comparável à matança do porco. Bombons aparecem do nada, como os ratinhos que dantes se pensava nascerem em caixas fechadas com palha dentro. Brownies são devorados diariamente pelas ruas. Há quem não tome café, mas não abdique do cupcake depois da refeição. E os cardápios de sorvetes afixados em padarias têm uma monotonia cromática tão forte de cacau que os designers gráficos devem odiar fazê-los. Não é o etanol que faz o Brasil mexer-se. Não é o samba ou o futebol. É o chocolate.

A minha pergunta é: porque é que o catupiry e o chocolate nunca se encontraram. Talvez numa pizza, algum dia, alguém o tenha feito. Talvez um dia um molho de chocolate tenha caído sobre uma torta com catupiry, alguém provou e disse "hmmm, que bom, descobri algo novo". Se isso aconteceu, eu quero saber. Contem-me. Pode ser que façamos negócio.

Sério, você estuda na Usp?

Um poema novo que li ontem no ZAP!.

Sério, você estuda na Usp?
Eu estive na Usp já
olhando as árvores tapar a estrada
cheia de carros parados por onde
os líderes médicos doutores futuros desse país e além fronteiras
derramavam seus excessos
porque os banheiros estavam fechados
e eu pensando
"estou vendo os futuros líderes desse país e além fronteiras
mijando e cagando e vomitando
indefesos como eu fui
nus como eu já estive
quando há muito tempo eu pensava ainda
que o futuro é previsível e eu
sou mais que um joguete
bola de gude invisível
atirada das mãos do acaso".

Que legal, você estuda na Usp.
Como você sabe, né
Como você olha com olhos que sabem
toca com mãos que sabem
fala com boca que sabe enquanto
teu corpo se esparrama pela terra
e faz malabares com fitas noturnas
alguém te pôe na boca o remédio da alice
és a melhor pessoa do mundo
teus olhos brilham
tu sorris
podemos ser diferentes
essa noite
do que somos no resto do tempo
podemos nos ver um no outro como quem se olha num lago e sabe
que as ondas vão e vêm distorcendo-nos como pensamentos
e talvez amanhã acordemos
e te sintas vulnerável no silêncio
que nos cobre
no lençol
que nos cobre
sempre o mesmo lençol que me cobre
sempre e cobre e sobe sempre
mais alto até me tapar completamente
e estares
vulnerável no silêncio e nua e eu
indefeso sem segredos
sufocado
e teu

Mas eu sou só este momento
dente de leão transformado a cada golfada de vento
e você estuda na Usp
és mais o que vais ser do que aquilo que és
teu futuro é grande
e eu não caibo na mesma sala que ele
tens muito para fazer na vida
tens uma orientação política de esquerda a alimentar
com o dinheiro que toda semana teu pai dá
e anos até descobrires que nada no mundo é bonito
ou bondoso e tua vida é só a estrada possível
por entre árvores cruéis de carne e sangue
e gigantes cínicos falando merda
por isso fala coração fala
amanhã combinamos algo
não te preocupes
sucesso
combinado
e até mais

Coisas do brasil: como usar o papel higiénico

httpv://www.youtube.com/watch?v=OrWcEGDXOUg
Nesta cena desse clássico da Sétima Arte intitulado "Demolition Man", Stallone, que interpreta um polícia do século XX conservado criogenicamente e reavivado décadas depois, descobre que no futuro já não se usa papel higiénico, mas três conchas - que, obviamente, ele não sabe usar. Com as devidas diferenças, ela veio-me à memória há meses, quando o dono do lugar onde moro me perguntou "vocês lá na Europa jogam o papel na privada, né? Aqui não pode". A sensação de, de súbito, um hábito íntimo praticado desde a infância ser posto em causa é avassaladora. Como não se pode jogar o papel na sanita?! Não estamos falando de folhas de papel duro, de embalagens, mas de fino, frágil e dissolvível papel higiénico. Como tudo no mundo, até o novo partido suiço que quer abolir o uso de Powerpoint, há boas razões. As descargas brasileiras - ou seja, os autoclismos - não são muito potentes e uma acumulação de papel mínima pode significar entupimento. Por isso, a técnica consiste em efetuar a limpeza, dobrar o papel para não ficar a cheirar mal e pôr no cestinho do lado, que será mais tarde esvaziado por duendes do pântano que vão deixar uma moeda de ouro por cada depósito. Ou não. Seja como for, como a Internet é para facilitar a vida, aqui fica o conselho para quem se quiser aventurar por terras tupiniquins. Não deixem cair o papel na água e, acima de tudo, não se esqueçam de lavar as mãos depois. Ser arrumado é bom, mas ser lavadinho é fundamental.

Retrato do artista enquanto Zapeão


Foto de Tide Gugliano
Fazer crescer uma cena nunca é tarefa fácil, ainda para mais se estivermos a falar de algo que, pura e simplesmente, não existe. Apesar do tamanho e do cosmopolitismo de São Paulo, o slam só começou a ser organizado enquanto tal (poesia + performance + competição) há cerca de três anos, quando a Roberta Estrela D'Alva organizou os seus comparsas do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, ali pertinho da Pompéia. Como o mundo é um penico, a Roberta é amiga desde a infância do Newton Cannito, um dos maiores responsáveis pela minha vinda para o Brasil, e, interessada pela proposta dos Social Smokers, aproveitou os conhecimentos comuns para meio que se auto-convocar para nos acompanhar quando a banda esteve no Brasil em Novembro do ano passado. Foi então que conheci o Núcleo e o ZAP!, a noite de slam mensal que eles organizam. Já lá tinha ido uma vez, mas só como jurado - fiquei na mesma mesa de um gaúcho e, curiosamente, éramos sempre os dois a dar as notas mais baixas, o que nos fez temer pela nossa integridade física face ao pessoal da Zona Leste. Ainda bem que poesia é amizade. Mas aconteceu que, na última quinta feira, deu-me uma vontade de fim de tarde de ir à competição e, contra todas as minhas expetativas, a noite acabou comigo a ser o Zapeão, ao mesmo tempo que a Roberta Estrela D'Alva sacava o terceiro lugar na Copa do Mundo do Slam em Paris. Ganhar é sempre bom, mas os minutos em que ouvi a poeta e atriz Ana Roxo fazer este poema foram o momento de slam ou recitais ou saraus ou leituras públicas ou seja lá o que for que mais me emocionaram na vida. Por isso, deixo-o aqui, desejando uma vida longa ao ZAP!
Comecei a escrever aquele texto triste

talvez não seja triste ou não tão triste
quanto deveria ser um texto sobre eu e você
talvez só seja assim, melancólico
com medo do sofrimento
que viria, e veio devagar
começa assim de repente
meio no meio de uma tarde chuvosa e com enchente
depois tem um espaço onde cabe o silêncio
e por onde podem escorrer umas lágrimas
não tem fluxo o texto
começa de supetão
e para um tempão num vácuo
depois fica bonito a beça
eu falo de cores que eu conheço e queria te contar
conto de coisas que vi e vivi
e te faço convites incríveis
descrições inimagináveis de lugares em que estive sozinha
falo de montanhas que são ondas, deuses hindus, mitologias inventadas
animais fantasiosos, deuses pagãos, sagas heróicas,
dançarinas de vários braços, de um homem com três bocas cantantes
do dia em que o capeta me paquerou
e de como os deuses as vezes descem a terra e brincam com a gente
conto quase tudo de impensável
e nessa parte eu te impressiono.
Depois vai ficando mais cafona,
porque meu repertório não é tão bom assim.
Mais pra frente fica triste e bonito de novo.
Eu vou dizendo que te amo de vários jeitos
primeiro clichês e mais pra frente novos,
que nem aquele dia
que eu disse eu te amo só com o olho,
no meio de uma frase e você não esperava
(porque eu passei grande parte da nossa história
inventando jeitos diferente de dizer eu te amo
então nada mais justo do que colocar isso naquele texto)
Coloco um mar no meio, pra deixar mais água
e nessa hora fica feio, um pouco infantil
eu me fragilizo muito e digo
que foi tudo culpa minha
como se a culpa existisse mesmo e eu acreditasse nisso
mas é só pra você se impressionar de novo
e ficar mais um pouco do meu lado.
Mas nem assim adianta
você parte mesmo assim
e talvez até por causa disso
(no final dos meus textos você sempre vai embora)
mas aí no texto eu minto
dizendo te dei um mais beijo
e disse tchau com muita dignidade
(e não chorei nem fiquei aflita
nem me joguei no chão
e quis tomar formicida)
ou talvez eu coloque uma piada
não sei, eu ainda não terminei o texto.
Mas acho que no fim
eu saio com uma desculpa esfarrapada
dizendo por exemplo
que eu ainda não terminei.