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Joe Pera Talks With You (2018-2021)

Há uma semana exata, vi uma entrevista engraçadíssima de Joe Pera ao Seth Meyers. Ela levou-me até à série dele, Joe Pera Talks With You (originalmente do Adult Swim; no Brasil, está na HBO Max). Feita de três temporadas com episódios minúsculos, de 11 minutos, esperava que fosse só uma comédia divertida para relaxar um pouco depois de jantar, mas veio-me uma das produções de televisão mais perfeitas que alguma vez me passou pela frente. 
 
Parece um exagero, mas realmente não é. Não imagino como um episódio de televisão possa ser melhor do que, por exemplo, Joe Pera Reads You The Church Announcements, o sexto da primeira temporada, que tem uma classificação de 9,6 no IMDB. 
 
São episódios escritos com a precisão de um relógio, mas filmados e editados com tempo para respirar. O tom é carinhoso, lembra Derek e certamente influenciou Ted Lasso, mas o pé fica no chão, junto da comunidade que a inspirou e onde foi gravada, com aquela quarta parede translúcida ao jeito de P'tit Quinquin. Impressiona (ou talvez não) que uma história simultaneamente tão real e tão carinhosa, que passa o tempo a dizer-nos que os absurdos do mundo são para atravessar juntos, tenha surgido durante a presidência Trump. É um abraço em forma de série como nunca vi e não a posso recomendar mais.

Quatro séries

Depois de vê-la ganhar o Oscar com The Favourite e dos belos papéis em The Father e The Lost Daughter, é fácil esquecer que Olivia Colman foi e é uma grande atriz de comédia e uma grande atriz de televisão. Tenho visto várias séries com ela e não me canso de admirar o domínio que esta mulher tem do pormenor, do gesto ou esgar sutil que constrói e revela completamente uma personagem. 
Então, se ainda não viram Peep Show, façam-no. Se então descobrirem que a comédia inglesa do início dos anos 2000 vos agrada, partam para Look Around You, uma série que parodia os programas educacionais da BBC dos anos 80. A primeira temporada, de 2002, é desconcertante e viciante, a segunda (2005) entra a fundo pelo "nonsense" e tem um elenco surpreendente, com pessoas como Edgar Wright e Simon Pegg a fazerem "cameos".

Quem também apareceu brevemente em Look Around You foi Ed Sinclair, o marido de Colman e autor de Landscapers (2021), uma minissérie brilhante que a todo momento escancara os mecanismos ficcionais que a sustentam, ocupando um território fascinante de experimentação e de liberdade de linguagem. Aqui Colman já foi produtora executiva, e eu sou capaz de apostar que foi ela quem chamou o jovem diretor Will Sharpe, que ano passado ainda arranjou tempo para fazer The Electrical Life of Louis Wain e mostrou o seu domínio da representação da doença mental e da ternura familiar com arrojo visual. 

Em 2015, Sharpe já tinha dirigido Colman em Flowers, série criada por ele e cuja primeira temporada acabei de acabar: uma viagem impressionante que começa cheia de humor ácido, parecendo satirizar as suas personagens, e termina como uma elegia enternecedora do amor entre pais e filhos. 

Se ainda estiverem a ler e conseguirem encaixar uma recomendação que não tem nada a ver com a Olivia Colman, vejam Reservation Dogs (2021), uma série criada pelo Taika Waititi sobre jovens que vivem numa reserva indígena nos EUA. Além de ser uma lição de diversidade e representação — os atores, diretores e autores são quase todos indígenas —, é uma história incrível sobre a adolescência enquanto idade de grandiosos planos e frustrações.

O que vi em Agosto

Filmes no início, séries no fim, para ficar tudo arrumadinho.

But I’m a Cheerleader (1999). Um pouco de John Waters misturado com uma pitada de Tim Burton e outra de Heathers. Uma comédia mais cáustica do que a soda e que certamente influenciou toda a carreira posterior de Natasha Lyonne.

Born in Flames (1983). Nuns EUA que passaram recentemente por uma revolução socialista, as mulheres negras continuam a ter que lutar para terem os seus direitos reconhecidos. Um "mockumentary" raiz e uma sátira seríssima.

Marjorie Prime (2017) e Tesla (2020). Michael Almereyda faz filmes "arthouse" baratos, com uma ênfase teatral, centrado nos atores e uma liberdade de olhar que sempre me lembra o Caravaggio e o Wittgenstein de Derek Jarman. É um talento como outro qualquer, e não adianta reclamar. Tesla é, sim, um pouco incoerente e promete mais do que entrega, mas Marjorie Prime, cuja premissa parece a dum episódio de Black Mirror, é uma obra silenciosa e sensível sobre a passagem do tempo e a forma como ela define a nossa relação com as imagens.

The Human Voice (2020). Mais uma prova dum dos aspectos mais incríveis da obra de Almodóvar: a forma como, de cineasta "punk" e do escândalo, ele virou um esteta com extremo bom gosto.

Drag Me to Hell (2009). Espíritos malignos , mortes horríveis, vísceras e sangue, muito sangue. "Ai, é mau gosto". É Sam Raimi. Não gosta, não vê.

Vredens dag (1943). Luz e sombra. Silêncio e ruído. Mulheres e homens. Vida e morte. Pecado e expiação. Os elementos como castigo (o vento, igual ao de Béla Tarr).

Psycho (1998). A melhor coisa que li sobre este filme está na página da Wikipedia dele: «One favorable take on the film came from an LA Weekly retrospective article published in 2013, in which writer Vern stated that the film was misunderstood as a commercially motivated film when it was in fact an "experiment" and this was the reason for the poor reception. Vern concluded that "Experiments don't always have to work to be worth doing."»

Fahrenheit 9/11 (2004). Para refrescar a memória depois da retirada americana do Afeganistão. Levou-me a procurar no Facebook a entrevistada que perde o filho e mandar-lhe uma mensagem de solidariedade.

An Evening with Beverly Luff Linn (2018). É como se David Lynch fizesse uma comédia "brat pack". Original, mas, preso numa prisão de estilo, perde a força pelo meio.

The World’s End (2013). O mais divertido da cinefilia de Edgar Wright é a forma como ele faz o Cinema trabalhar para ele, e não o contrário. Aqui, ele cita e retorce os géneros do filme de assalto, do "buddy movie" e da ficção científica, sempre com um sorriso, sempre com diversão. Os filmes dele são, ao mesmo tempo, inteligentes e pândegos, e isso não é nada fácil.

Antiporno (2016). Kyoko é personagem, mulher, japonesa. Como personagem, é um objeto submisso ao olhar e desejo masculinos. Como mulher, vive com a fixação sobre em qual estereótipo sexual se deveria encaixar. Como japonesa, é testemunha e vítima do sexismo contido na suposta liberdade de expressão do país. Sion Sono nunca deixou de me surpreender, mas isto é do mais incrível que vi dele.

Love Story (1970). É um filme estranho, contraditório. Tem um roteiro robusto à anos 70, que entra na história sem medo, mas entrega reviravoltas arbitrárias. As personagens são caracterizadas com detalhe, mas agem futilmente. Ryan O'Neal é limitado, mas, como em Barry Lyndon, correto. Ali MacGraw é péssima, mas também carismática. Oscila entre o cru e o pateta, entre a tragédia e o folhetim, entre o kitsch e o despojamento, e deixa-nos entre o desconcerto e a indiferença.

This Filthy World (2006). Em palco, John Waters conta histórias divertidíssimas da sua vida e trabalho para pessoas que gostam dele. Se não gosta, nem vale a pena ver!

Le Corbeau (1943). Adoro filmes sobre um monte de gente que não vale nada. Mais de 70 anos depois, é bom não termos de cancelar este filme pelo colaboracionismo na sua produção, porque isto é uma obra-prima ranzinza sobre a hipocrisia.

Sexy Beast (2000). Elenco irrepreensível, edição musical, uma história que está sempre a brincar e a frustrar as convenções de género. É um filme de assalto, uma comédia ácida, uma história de gângster, tudo isso e também outra coisa qualquer além disso. Ótimo.

Los Enchiladas! (1999). Não importa muito se é bom ou ruim. É o filme inacabado que Mitch Hedberg fez com os amigos, e chega.

Evil Dead (2013). No Ash, no fun.

Séries:
The White Lotus (2021). Não senti o entusiasmo que tanta gente sentiu ao ver esta série. Não que ela não seja perfeitamente escrita e interpretada, com personagens deliciosas e contraditórias. Ela é. As minhas reservas têm mais a ver com a visão geral que está por trás dela (poderia até usar um palavrão e dizer que são reservas ideológicas). Pareceu-me que a sua sátira é "de nós para nós", feita para rirmos sem problematizarmos (outro palavrão). No fundo, o que quero dizer é isto: gostaria que ela fosse menos O Jardim das Cerejeiras de Tchekhov e mais O Anjo Exterminador de Buñuel.

Ragnarok s02 (2021). Gostei bem mais da segunda temporada do que da primeira, talvez porque provavelmente tiveram mais dinheiro, e esta é uma série que pede dinheiro para ser bem feita. Porém, apesar das batalhas e dos efeitos especiais, a grande sacada de Ragnarok é a forma como a vida familiar das personagens parece protegida de tudo o resto. "Lá fora posso ser um deus, mas em casa tenho que me portar bem" é uma metáfora brilhante para a vida de adolescente.

Mark Kermode's Secrets of Cinema (2018-2021). Mark Kermode é dos críticos de cinema que mais sigo hoje, porque acho-o despretensioso sem ser simplista e, acima de tudo, um conhecedor e apaixonado por filmes, dos mais populares aos mais nichados. Para encontrar todos os episódios desta série da BBC em que ele faz uma historiografia do Cinema a partir das convenções de género, tive que executar um corso inimaginável para qualquer "zennial" do pós-Kazaa, mas consegui e devorei-os. Um regalo.

Des (2020). Apenas mais uma série inglesa com David Tennant que vem para provar que David Tennant é um génio.

Barbarians Rising (2016). Às vezes, tudo o que uma pessoa quer é ver uma minissérie de documentário ficcional sobre os bárbaros que, ao longo dos séculos, combateram e resistiram à invasão pelo império romano. E, se uma pessoa quer isso, não há nada melhor do que esta.

The Chair (2021). Um monte de gente com bom pedigree faz uma comédia sobre professores universitários. Talvez não interesse a muitas pessoas além das que têm ou tiveram a universidade como parte importante da vida, mas é simpática.

O que vi em Julho

Bo Burnham: Inside (2021). A dado momento do State and Main de David Mamet, uma personagem diz que «temos que fazer a nossa própria diversão, senão não é diversão: é entretenimento». Enquanto Burnham canta e dança, ele vai além duma comédia sobre a pandemia e o isolamento social: ele faz uma sátira dos formatos que inventamos para participar do capitalismo de comunicação de massas, ou seja, sobre a forma como a Internet nos levou a nos entretermos mais e nos divertirmos menos.

1971: The Year That Music Changed Everything (2021). Uma ótima série documental que lembra muito os filmes do Martin Scorsese sobre música. O talento de Asif Kapadia para trabalhar o arquivo continua admirável.

Summer of Soul (…or, When the Revolution Could Not Be Televised) (2021). Para quem viu 1971: The Year That Music Changed Everything, é o acompanhamento perfeito. Para quem não viu, é um documentário brilhante sobre um festival de música negra no Harlem cuja história (e gravações) foram ignoradas até hoje. O dueto da Mahalia Jackson e da Mavis Staples é tão incrível que dei por mim a limpar as lágrimas no fim.

Burden of Dreams (1982). Toda gravação tem os seus desafios particulares, mas, depois deste filme, acho pacífico afirmar que Werner Herzog não gostava de facilitar a própria vida.

Relic (2020). A demência, monstro. A casa, memória. O tempo, insuportável. A carne, maldição. A sororidade, imprescindível. Os labirintos psicológicos de "The Haunting" encontram os corpos impossíveis de Cronenberg e, na sua estreia em longas, Natalie Erika James já se junta à conterrânea Jennifer Kent no pódio das diretoras mais interessantes da atualidade.

Minamata (2020). Não é um grande filme, mas é um filme correto e importante. Correto, porque acerta em detalhes a que estará atenta qualquer pessoa que lidou com fotografia ainda na época do analógico. Importante, porque histórias sobre pessoas que se juntam para corrigir as injustiças que lhe são impostas por indústrias e políticos são cada vez mais necessárias. Além disso, consegue escapar de moralismos desnecessários.

The Sparks Brothers (2021). Um trabalho de amor de Edgar Wright sobre uma banda cultuada por muita mais gente além dele próprio. A certo momento, parece longo, mas entende-se: Wright tenta compensar o tempo perdido, dando aos irmãos a homenagem definitiva à obra que criaram ao longo de uma vida. É um filme que parece dar alento a qualquer criador, como se dissesse «aguentem aí, que isto vai dar certo». 

Marianne & Leonard: Words of Love (2019). Um documentário tão amoroso quanto a relação de Cohen com a sua musa norueguesa. Conta essa história sem firulas, e faz bem, porque ela já é interessante que chegue.

Rubber (2010). Enganou-me. Pensei que ia ver um trash exagerado e esquecível sobre um pneu assassino e, afinal, levei com um filme de arte que homenageia a série Z dos anos 60 e 70 e constrói todo um discurso sobre a relação do espectador com a imagem. Arriscaria dizer que é brilhante.

People, Places, Things (2015). Uma comédia sensível sem ser "dramedy". Faz sorrir mais do que rir, e tudo bem, porque as personagens são simpáticas e extremamente humanas. Dura uns 80 minutos, mais ou menos a duração de Shiva Baby ou a de dois episódios de uma série dramática, e deixou-me a pensar se hoje não será este o novo formato ideal para longas-metragens.

The Incredible Jessica James (2017). Foi curioso ver este filme seguido de People, Places, Things, do mesmo diretor Jim Strouse. Apesar de divertido e ternurento, não parece tão bem conseguido quanto este último, e eu acho que isso tem a ver com um equilíbrio melhor do elenco, uma certa magia especial que é produzida tanto pelo esforço quanto pelo acaso. 

Woodstock 99: Peace, Love, and Rage (2021). Comecei a adolescência a ver as bandas do Woodstock 94 e acabei-a com as do de 99, então, lembro-me muito bem de todo o contexto e das controvérsias em volta deste festival fatídico. Habituei-me a pensar nele como o enterro do rock, o momento a partir do qual a MTV se concentraria no pop e eventualmente deixaria de ser um canal de música, o evento a partir do qual os preços de bilhetes subiriam e em que os promotores perceberam que, se o público aguentava isto, conseguia aguentar pistas VIP numa boa. O documentário deixa isso muito claro, mas pareceu-me que, a certo momento, ele tenta fazer exatamente aquilo que também diz ser impossível: apontar culpados do descalabro, quando, na verdade, o que fica a pairar como uma sentença terrível para os anos que se seguiriam — o pós-11 de Setembro, a vigilância em massa, o trumpismo — é a frase final de Michael Lang: «Quisemos fazer um Woodstock contemporâneo. E o contemporâneo era isto». Só faltou falar mais sobre a ascensão da Internet enquanto fenómeno da segunda metade dos 90, fator primordial para a epidemia de hipersexualização e frustração de que esta gente branca estadunidense (e não só) sofre até hoje.

The Adventures of Tintin (2011). Vendo-o pela primeira vez dez anos depois da estreia, diria que é um filme-charneira na obra de Spielberg. A aventura e o humor criam uma ponte com Indiana Jones, referenciando-o de uma forma ambígua, como se, ao fazê-lo, também se homenageasse Tintin enquanto herói-irmão do arqueólogo (não influência — Spielberg só o conheceu depois de ter lido uma crítica que comparava Raiders of the Lost Ark aos livros de Hergé). Por outro lado, essa referência e o uso da animação "motion capture" prenunciam esse grande compêndio da cultura popular que se chama Ready Player One.

The Kid Stays in the Picture (2002). A vida de Robert Evans, lendário produtor, entre outros, de Love StoryThe GodfatherRosemary's Baby e Chinatown, contada pelo próprio com o contentamento de quem cria o seu próprio mito. Quem gostar de histórias sobre os bastidores da velha Hollywood vai ver como se se babasse com um doce — e eu adoro.

Hacks (2021). O mundo da comédia profissional está lá, o subtexto sobre mulheres tentando colaborar para se desviarem das agressões do mundo também, mas, para mim, esta série foi resumida num artigo de forma brilhante com a expressão «boomers vs. zoomers». É o conflito geracional que a move, é ele que nos faz rir, além da magnífica Jean Smart. É uma série divertida, mas acho que lhe falta uma pontinha de audácia. Quem sabe nas próximas temporadas.

The Flight Attendant (2020). Fui vê-la por causa da nomeação ao Emmy, que acaba por ser meio enganadora, porque é mais uma série de espionagem bem-humorada do que uma comédia. É estranho dizer, achei-a, ao mesmo tempo, interessante, bem feita e irritante. Kaley Cuoco está muito bem, mas a sua personagem é como aquele amigo insuportavelmente carente que nos obriga a concentrar as atenções nele quando tudo o que nos apetece é deixá-lo estraçalhar-se por aí. Ao mesmo tempo, é uma espécie de resposta (quase literalmente uma ressaca) a uma “persona” cómica de moça festeira que foi bem popular no início dos 2010s, muito por causa de Amy Schumer. Isso, e a forma como a série constrói cuidadosamente os símbolos e os vai revelando devagar ao longo da narrativa, merece que a experimentem.

PEN15 (2019-). Ainda nem terminei a primeira temporada e já consigo dizer que é das comédias mais originais e divertidas que vi nos últimos tempos. Nela acompanhamos duas meninas de 13 anos enquanto enfrentam os desafios da escola, dos primeiros amores, da família, da puberdade — e que são interpretadas pelas próprias criadoras da série, Maya Erskine e Anna Konkle, já bem entradas nos seus trinta anos, enquanto todos os outros atores têm a idade das suas personagens. É uma premissa dramatúrgica extraordinária e extremamente arriscada, mas elas conseguem fazê-la funcionar. Parece que, ao interpretarem estas versões semificcionais delas mesmas, Erskine e Konkle sabem por instinto como fazer delas personagens simultaneamente com graça e dignidade. A empatia é imediata, porque, às vezes, todos fazemos o mesmo: rimos das nossas encarnações adolescentes ao mesmo tempo que lembramos esse tempo num misto de ternura, saudosismo e azedume. Parece beber um pouco de Superbad, um outro tanto de Big Mouth e é uma grandiosa representação da adolescência feminina. 

Shrill s03 (2021). No especial Talking Funny, Chris Rock revelou um dos seus lemas de trabalho, e ele pareceu-me desde então um excecional medidor de bom gosto cómico: «ri-te do que as pessoas fazem, não do que elas são». Na sua temporada final, Shrill confirmou o que sempre pareceu ser: uma série “woke” por excelência, mas que percebe que isso não é nenhum impeditivo para satirizar a cultura “millennial”, porque o que importa, lá está, é rir do que as pessoas fazem, não do que elas são. É uma série muito representativa dos nossos tempos pós-Seinfeldianos, em que se prefere o cómico de situação ao de personagem ou, melhor, em que se recusa a caricatura se esta não for conquistada com o aprofundamento das contradições da personagem. Perceber que os vilões não são assim tão vilões e os bonzinhos não são assim tão bonzinhos atrapalha a comédia? Absolutamente nada, porque nós, pessoas, somos um poço infindável de falhas, exageros e passos em falso, e a comédia está aí. O final da série — sem spoilers — é um exemplo claro disso, mostrando-a como uma história “coming of age” que celebrou a juventude e, de repente, se descobre adulta sem saber o que isso significa.

Dracula (2020). Depois de Sherlock, Gatiss e Moffat releem um outro clássico literário novecentista. O “modus operandi” deles parece o mesmo – explorar a fundo as características da personagem, usar as histórias canônicas como premissa para extrapolações – e isso acaba por traí-los no episódio final, mas, no geral, é uma bela releitura, principalmente pela forma como a personagem do Drácula é pensada para a atualidade: como um predador, uma espécie de Harvey Weinstein/stalker/psicopata/minion que suga a vida dos outros para ganhar a sua. Considerando isso, não me parece acaso que Claes Bang interprete o conde como se roubasse um pouco de cada um dos seus grandes atores (Schreck, Lugosi, Lee, Oldman), construindo um vilão fascinante e contraditório tal como Andrew Scott fez com o Moriarty dos mesmos autores. O seu Drácula é insaciável, nada romântico, sarcástico e até engraçado. Bem divertido.

Katla (2021). Já vimos as paisagens geladas da Islândia nos “nordic noir” Trapped e The Valhalla Murders e no terror psicodélico de Fortitude, mas Katla é outra coisa. Constrói um paralelismo brilhante entre espaços físicos e psicológicos talvez como nenhuma outra série nórdica antes dela, deixando-nos numa tensão constante que nunca parece dissipar-se. Isso parece ser a sua grande vitória e, ao mesmo tempo, aquilo que a torna vulnerável a críticas, porque não há nela variações de tom para aliviar um pouco o peso do espectador. Vê-la é um exercício de inquietude e de reflexão sobre o tempo, a memória e a individualidade. 

It’s a Sin (2021). Russell T Davies chegou àquele Olimpo autoral em que o seu nome chega para chamar o público, mas isso não significa que ele caia na preguiça. Esta é uma belíssima história sobre os primeiros dias da AIDS em Londres e Davies, como já tinha mostrado em Years and Years, é um mestre do tom – muitas lágrimas contrabalançadas com muitos sorrisos – e das personagens, todas cheias de contradições morais, todas com pelo menos um momento para brilhar. Os atores devem amá-lo.

Sobre Nasce Uma Estrela


O Youtube pôs a tocar o ShaShaShaShalloooow e lembrei-me de algo que pensei quando vi o Nasce Uma Estrela. A gente que gosta de filmes vê muita coisa diferente, do trash a realismo poético, e isso acontece porque, quanto mais filmes vê, mais sabe que muitos serão iguais. Até certo ponto, tudo bem, né? Há momentos que só queremos aquele novo filme de super-herói que repete a curva do filme de super-herói anterior e não pensar em mais nada enquanto comemos pipoca. Mas cansa, daí procurarmos coisas diferentes, que não conhecemos e às vezes nem sabemos se vamos gostar, mas vemos — porque talvez o filme desconhecido nos ensine algo novo, ou nos mostre um dilema em que nunca nos tínhamos colocado, ou nos leve a percebermos que algo que damos por certo não o é. É por isso que a cinefilia é uma aventura e uma dedicação, porque, no fim, seja por qual razão for, o que importa é o encontro conosco mesmos a que o filme nos leva. 

Ora, o curioso é que, quando vi o Nasce Uma Estrela, fiquei impressionado. Mais do que isso: fiquei impressionado por ficar impressionado. É uma versão refrescada de uma história que já foi contada várias vezes, mas que não infantiliza o espectador. As personagens não são particularmente originais, mas têm as contradições e feridas todas à mostra e são muito bem interpretadas. É um filme de amor que não é uma comédia romântica e teve um orçamento médio para os padrões de Hollywood (36 milhões de dólares). Enquanto o via, dei por mim a pensar que, um dia, este cinema "do meio", que não procura a ruptura estética nem a produção gigantesca, já foi o padrão, o igual, oferecido em massa todas as semanas a públicos de todo o mundo: apenas uma história bem contada sobre gente adulta. O que diz sobre nós que não o seja mais?.

O que vi de Maio até agora

Nestas últimas semanas, vi séries tão boas que os filmes pareceram ficar para segundo plano.
 
Exterminate All the Brutes (2021). Não é um simples documentário, é um ensaio visual devastador que revela o mundo de hoje como o resultado de um longo processo histórico com três pilares: civilização, colonização e aniquilação. Ler as obras em que se inspira e que, no fundo, são a sua bibliografia: Exterminate All the Brutes, de Sven Lindqvist, An Indigenous Peoples' History of the United States, de Roxanne Dunbar-Ortiz, e Silencing the Past de Michel-Rolph Trouillot.

Elvis Presley: The Searcher (2018). Ótimo documentário na Netflix. Põe em relevo, não as fofocas ou a fama, mas a música de Elvis enquanto somatório e encontro da música americana e, por extensão, do próprio país. 

Devs (2020). Recomendaram-ma depois de ter dito que não era o maior fã de Alex Garland. Fizeram bem. Misteriosa, viciante e com um roteiro impecável. Alison Pill mostra mais uma vez que é uma coadjuvante que adiciona ainda mais valor a qualquer coisa onde entra. 

Mare of Easttown (2021). Já se disse tudo sobre ela. Semanas depois de a ter visto, retenho a força imensa do primeiro episódio, que nos faz pairar sobre as personagens como se realmente fôssemos recém-chegados a uma cidade — entendendo mais ou menos quem é quem, mas só o suficiente para nos deixar curiosos para saber mais — e o tom de "nordic noir" aplicado a um retrato realista da classe média americana. 

Garth Marenghi's Darkplace (2004). Acho que a tentava verhá uns 15 anos e finalmente consegui. Mirabolante e divertidíssima. Impressiona ver como Richard Ayoade e Matt Berry,  aqui ainda nos seus vinte anos, sempre foram brilhantes.

The Comedy Store (2020). A história deste clube de comédia lendário de Los Angeles, repleto com os testemunhos das estrelas que o fizeram e que se fizeram nele.

Servant (2019). Ao contrário de muita gente, não tenho nada contra M. Night Shyamalan, mas Servant tem um problema: é tão competente a construir tensão que se nota o seu enredo muito fino. Terror psicológico não é só atmosfera.

What We Do In The Shadows (2019- ). Nunca pensei que pudesse ser ainda mais divertida do que o filme de Taika Waititi e Jemaine Clement, mas é isso mesmo que ela é. Atores e personagens apuradíssimos e episódios muito bem construídos mostram que o "mockumentary" ainda continua vivo e muito bem.

Master of None (s04). Das ruas de Nova Iorque aos interiores de Ingmar Bergman: a mudança de rumo estético e narrativo nesta temporada é inusitado, mas funciona e mostra de novo que Aziz Ansari não tem medo de correr riscos. Porém, será que ele está consciente do tanto que parece imitar a trajetória artística de Woody Allen?

Vi três minisséries inglesas que recomendo a qualquer pessoa. The Cry (2018) manipula constantemente a atenção do espectador, como um prestidigitador fazendo um truque de magia. Nunca esquecerei o prólogo do primeiro episódio, que, em poucos minutos e quase sem diálogo, consegue fazer-nos entender perfeitamente a história que vamos ver e, ao mesmo tempo, não revela quase nada sobre ela. Já The Virtues (2019) é triste e melodramática — talvez até um pouco exagerada. As suas ótimas personagens de classe trabalhadora dão-nos a sensação de estarmos a ver algo feito pelo Ken Loach, mas ela parece perder-se um pouco nos seus próprios labirintos. E Time (2021) é triste, mas esperançosa, trágica, mas sem lamúrias. Tem umas meras 3 horinhas e é uma das melhores histórias de prisão que vi nos últimos tempos, com personagens que vão além do clichê. Sean Bean está incrível e Stephen Graham é um monstro, um dos melhores atores ingleses em atividade hoje.

Friends: The Reunion (2021). Este especial é como a série era: bem-humorado, emotivo, lamechas qb. É um "divertissement", um pacote de Doritos que se come para enganar a fome. No caso, a fome é o saudosismo, aquele sentimento enganador que nos confunde entre o mundo que existiu e aquela outra pessoa que fomos nele.

The Fresh Prince of Bel-Air Reunion Special (2020). Comparado com o do Friends, parece mais arejado e mais disposto a enfrentar os elefantes na sala, como o encontro de Will Smith com Janet Hubert, a primeira "tia Vivian" que saiu em desgraça da série. Esse, que é o momento principal, parece dar-nos uma lição importante: as pessoas cometem erros, arrependem-se e mudam em função deles, mas não somos grande coisa se não tentarmos escutar o outro. Moralista, mas importante.

Mistress America (2015). Personagens que são simultaneamente ridículas e simpáticas: uma comédia "mumblecore" que mostra como todos os filmes "mumblecore" deveriam ser.

Irresistible (2020). Dirigido pelo Jon Stewart, é, no fundo, uma versão em filme daquilo que ele representa desde os tempos do Daily Show: um pensador satírico dos EUA, um explorador incansável das absurdas contradições do seu sistema político enquanto combustível cómico e um manipulador hábil das expectativas do público.

The Amusement Park (2019). Não é o filme mais assustador de George Romero, como já vi escrito por aí, mas certamente é um dos filmes corporativos mais divertidos de sempre.

Santiago, Italia (2018). Uma obra de denúncia de Nanni Moretti e mais um documento importante sobre as atrocidades do absurdo regime de Pinochet. 

…And Justice for All (1979). Um filme bem anos 70: masculino, denso, com personagens fortes e surradas que tentam cavar um caminho através da confusão. Talvez tenha um pouco de confusão a mais, no entanto: às vezes parece disperso.

O What We Do In The Shadows levou-me a revisitar os filmes de Taika Waititi. Em Boy (2010),  ele mostra as pessoas e a cultura da sua comunidade maori de forma muito bonita e sempre muito engraçada, além de deixar saliente uma característica central da sua obra: a forma como as crianças parecem muito mais sensatas do que os adultos. São estes que, perdidos em interesses e pulsões pouco nobres, perturbam as vidas até então equilibradas daquelas. A maestria de Waititi para trabalhar com crianças também se vê no lindíssimo Hunt for the Wilderpeople (2016). Acho que o seu olhar combina com o sentido de aventura, magia e ternura infantil, além de se notar o amor pelos estranhos e deslocados que já mostrara em Eagle vs Shark (2007).

Heavenly Creatures (1994). É curioso perceber como Peter Jackson revela neste drama temas das obras de terror "gore" que tinha feito até então: o fantástico como escape do cotidiano familiar, o poder do amor tanto para condenar quanto para salvar as personagens, a obsessão. E Kate Winslet já era ótima logo no início da sua carreira no cinema.

Queen & Slim (2019). Em Abril, Daniel Kaluuya ganhou o Oscar por Judas and the Black Messiah. Acho que houve nessa vitória um reconhecimento, não só do grande ator que ele é, mas também do fato de, desde Get Out, ele protagonizar algumas das narrativas que melhor revelam a consciência da população negra americana perante a encruzilhada de injustiças e desigualdade de que é alvo. Este filme é uma dessas narrativas.

Stardust (2020). Mais do que um filme mau, é um filme estranho. É um filme sobre o David Bowie sem músicas do David Bowie e com atores que lembram muito pouco as pessoas reais. No fundo, parece usar a ideia mítica de Bowie enquanto personagem de si mesmo para invocar o seu conjuro, mas tanto Bowie quanto outros filmes, como Velvet Goldmine, o fizeram muito melhor e de forma muito mais memorável. 

Old School (2003). É interessante pensar como Todd Phillips, desde esta comédia até Joker passando pelos Hangover, se especializou em dirigir filmes sobre homens adultos que batalham para aceitar e reformular a sua maturidade. É uma obra fundamental para entender a crise da masculinidade no século XXI, e ainda tem o Will Ferrell.

Spring (2014). Uma história de amor num universo de terror. Interessante e original, mas a força da premissa acaba por se perder.

Marighella (2019)

O filme proibido pelo bolsonarismo é bem feito, mas não é perfeito. O Wagner Moura está firme na direção, orienta um elenco seguro e monta uns planos-sequência de arrepiar. Marighella parece colocar-se como um registro para a posteridade da vida e luta armada do político inimigo da ditadura e, por isso, talvez o Che de Steven Soderbergh seja uma boa obra a partir do qual pensá-lo. Como Soderbergh, Moura acerta ao evitar o tom hagiográfico — Marighella é mostrado, não reverenciado — mas enquanto os filmes sobre o argentino* cubano apostavam na solidez histórica (o próprio filme era o ato militante), Moura parece hesitar entre os fatos e o apelo à revolta e à indignação. Com isso, ele acaba por perder força dos dois lados: Marighella é um filme histórico, denso e relativamente longo, sem o sentido de urgência que faria toda a gente querer derrubar o governo depois de vê-lo, mas também com pormenores que o distanciam do fato concreto e nos deixam muitas vezes a perguntarmo-nos se aquilo que vemos aconteceu realmente. Um desses pormenores que me irritou particularmente é o fato de, em geral, as personagens não terem o nome das figuras históricas: o delegado Sérgio Fleury cometeu atrocidades suficientes durante a sua vida para ser reconhecido como algoz da ditadura, não mascarado atrás do nome "Lúcio". Não se pediria para Moura fazer um documentário, claro. O problema é que ele deixa-nos na dúvida, e isso diminui a relevância e o poder de ataque do seu filme, que deixa de ser um acerto de contas com a História e se transforma numa espécie de fábula.
Além disso, a personagem principal perde vapor pelo meio e a força trágica da sua história esvai-se. As cenas deixam de ser impulsionadas pelas ações de Marighella e ele acaba por tornar-se um espectador das ações dos outros. Ao mesmo tempo que isto enfraquece o filme, não deixa de ser uma metáfora perfeita do Brasil atual. Como Marighella, o brasileiro hoje sente-se perdido e acuado, sem saber muito bem o que fazer para escapar ao conformismo odioso que o cerca. Às vezes, a única solução possível parece ser desaparecer e esperar que outros continuem a luta. Isto é bonito, mas não encoraja a resistência — e era isso que se esperava mais deste filme.

O que vi em Abril

Parks and Recreation (2009-2020). Acho que, ao longo dos anos, já tinha visto e revisto temporada e meia de Parks and Recreation. Nunca avançara, porque não me prendia: a série era engraçada, mas faltava alguma coisa no balanço das personagens que me deixasse mais envolvido. Porém, um destes dias, num vídeo do canal de YouTube Entertain The Elk, ouvi algo que me deixou intrigado: que a série engrena de verdade quando Rob Lowe e Adam Scott entram. Retomei-a a partir de onde a deixara e realmente o Elk tinha razão. Não é só por causa dessas personagens propriamente ditas, mas por parecer que é nesse preciso momento que a série entende o seu tom e abandona completamente a acidez e a ironia, concentrando-se naquilo que realmente traz de original: a amizade e o afeto real entre colegas de trabalho, o que parece combinar com o ambiente real da gravação que se percebe nos vídeos de "bloopers" disponíveis por aí. Parks and Recreation é sobre o encontro de pessoas que gostam umas das outras e, ao mesmo tempo, uma elegia do servidor público dedicado que realmente quer melhorar a vida da sua comunidade. Por isso, o episódio especial de 2020, em que o elenco retoma as personagens para passar orientações sobre o Covid-19, faz todo o sentido. Há um grande mérito em fazer uma boa comédia sobre valores positivos: Parks and Recreation é realmente muito especial.

Groundhog Day (1993). Vi-o pela enésima vez e, como no primeiro dia, maravilhei-me com este roteiro perfeito que se encerra em si mesmo e os pormenores meio esquecidos que ressurgem com nova força. É como se, em parte, o filme fosse sempre novo.

Stranger Than Fiction (2006). Não sabia como ele teria resistido ao avanço do templo. Porém, resistiu muito bem e continua um ocupante brilhante desse território perigoso entre a comédia, o drama e a metanarrativa. A versatilidade de Will Ferrell é quase assustadora.

Happy-Go-Lucky (2008). Quando o vi pela primeira vez, há dez anos ou mais, pareceu-me um filme menor do Mike Leigh com um elenco muito bom. Hoje, mudei um pouco de opinião. O papel de Poppy é complexo e cheio de sutilezas, mas também traiçoeiro para quem não estiverer disposto a entendê-lo por inteiro. Uma atriz menos boa poderia tê-lo arruinado, mas Sally Hawkins é grandiosa nele, e é precisamente porque o filme escolhe centrar-se nela que ele cresce acima da média.

Quo Vadis, Aida? (2020). Diz-se que Pedro fugiu de Roma e encontrou Jesus ressuscitado. Pedro perguntou "quo vadis?", ou seja, "aonde vais?". Jesus respondeu "vou para Roma para ser crucificado outra vez". Então, Pedro voltou para Roma, onde foi capturado e crucificado de cabeça para baixo. Como Pedro, Aida regressa e enfrenta o pior que o mundo depois duma guerra civil tem a oferecer. É um martírio, mas talvez também a forma de ela se apropriar da História.

Shiva Baby (2020). Há tempos, revi vários filmes do início da carreira do Godard e percebi que aquelas obras-primas são invariavelmente pequenas (poucas locações, poucos meios, poucos atores) e curtas. Não só isso, como essas características dão-lhes força, como se cada uma fosse uma pequena bofetada de Cinema. Shiva Baby é assim. É bem interpretado, bem escrito, bem dirigido Com 77 minutos, é menor do que dois episódios de uma série dramática. Porém, esses 77 minutos são suficientes para ele contar a sua história e propor a sua estética. Será o início de uma tendência, o cinema indie do pós-pandemia a assumir que, numa época de streaming e binge-watching, não precisa alongar-se no tempo para ser memorável? Veremos.

Sinister (2012). Já vi filmes de terror piores, mas o final abrupto deixa a sensação que lhe falta um ato. Vale muito pelo Ethan Hawke, que praticamente carrega o filme nas costas.

Sasquatch (2021). Quando os créditos iniciais começaram a aparecer, pensei "um documentário sobre o Pé Grande produzido pelos Duplass? O que é isto?". Mais interessante do que fascinante, mas, ainda assim, um bom "true crime", que intriga o espectador tanto com o crime quanto com aquilo sobre que a série realmente é.

Black Bear (2020). Poderia ter o subtítulo "Polanski e Cassavetes através do mumblecore". Bom papel da Aubrey Plaza.

Eve’s Bayou (1997). Não é normal ver um filme sobre personagens "cajun", ainda incluindo parte substancial de diálogo falado no dialeto próprio. É um filme sensível, elementar, com aquele tom e ritmo do "southern gothic" que revela o misticismo do cotidiano e as pulsões partilhadas entre natureza e pessoas. Um belo achado.

Shrill (2019- ). Esta série da Hulu consegue o feito de ser muito engraçada sem precisar entrar no disparate e de ser muito humana sem ser "dramedy. Fala sem clichês sobre ser mulher, ser gorda e ser jovem, com personagens que erram constantemente e parecem tão perdidos na idade adulta quanto qualquer pessoa. Assisti-la é um privilégio.

C'eravamo tanto amati (1974). Tem cheiro de cinema novo influenciado pela Nouvelle Vague francesa, mas, ao mesmo tempo, presta homenagem ao neorrealismo italiano em geral e a De Sica em particular (o estilo nas sequências a preto e branco não difere apenas na cor) e, mais, não deixa de ser uma comédia bem italiana, com figuras "larger than life", conflitos familiares, casamentos desavindos e amigos que discutem e brigam. Uma maravilha.

Cinema Paradiso (1988). Revi-o na Sexta-feira Santa, curiosamente o único dia que Alfredo, o projecionista, tinha de férias durante o ano. Já o vi muitas, muitas vezes. Desta vez, como sempre, chorei um rio de lágrimas.

O que vi em Março

The Return of the Living Dead (1985). George Romero que me perdoe, mas, depois de Night of the Living Dead, este é o melhor filme de zombies de sempre!

Histórias Que Nosso Cinema (Não) Contava (2017). Na Netflix. Não é tanto uma história da pornochanchada quanto um ensaio visual sobre o gênero, o Brasil e a ditadura que é construído com a matéria-prima dos filmes originais. Interessante e muito divertido.

Phantom of the Paradise (1974). Às vezes é paródia, outras é homenagem. Tem Fantasma da Ópera, Fausto, o reflexo de Hoffmann, Psycho de Hitchcock. É uma ópera rock, mas também é uma ópera rock sobre uma ópera rock. Barroco, desequilibrado e muuuuito divertido.

Visages, villages (2017). Mais do que um filme de Varda, é um filme que a celebra, e isso está muito bem. Pelos seus filmes e pelo que era, Varda merece ser celebrada. Viva Varda!

Colectiv (2019). Jornalistas perseguidos, um sistema de saúde colapsado, corrupção enraizada em todos os setores da sociedade e uma balada que pegou fogo matando dezenas. Se não fosse o ministro da Saúde que realmente tenta ajudar as pessoas, poderíamos pensar que é o Brasil.

Riot in Cell Block 11 (1954). Don Siegel. Energia. Ondas de tensão e alívio. Multidões.

Gomorra (2008). O crime que encontramos na vida real não é bonito ou glamoroso, como em The Godfather e Scarface. Ele é sujo, pobre, confuso, filho do caos e da necessidade. Nas décadas entre Ladrões de Bicicletas e Gomorra, a esperança acabou.

Dick Johnson Is Dead (2020). Dores e alegrias muito humanas aqui. Acho raro um documentário sobre a esfera pessoal de quem o faz ser simultaneamente tão engraçado e tão comovente, sem pesar para o confessional, para a autocomiseração ou para a sátira azeda. Kirsten Johnson soube fazer um filme doce sobre a morte, e o mais extraordinário é que ele próprio parece ser parte fundamental da sua estratégia para lidar com os tempos difíceis.

Ma Rainey’s Black Bottom (2020). A Viola Davis é um gigante e o Chadwick Boseman era outro. Belo, belo filme.

Broadcast News (1987). Gosto muito desse filme, mas já há muitos anos que não o via. O mais incrível dos filmes do James L. Brooks é sua capacidade para revelar toda a humanidade das suas personagens, independentemente do contexto em que ele escolhe colocá-las. Sim, é uma história sobre jornalistas, mas não exatamente sobre jornalismo, tal como As Good As It Gets, por exemplo, é uma história sobre um escritor e não necessariamente sobre escrita. O que vemos aqui são pessoas a relacionarem-se, às vezes sendo boas, outras vezes não tão boas, às vezes revelando as suas qualidades e, outras vezes, os seus defeitos. Ótimas personagens, portanto. Uma coisa que a maturidade me levou a apreciar mais: os maneirismos sutis e tortuosos do incrível Albert Brooks.

Butt Boy (2019). Depois do primeiro exame de próstata, um homem descobre uma compulsão irresistível e começa a enfiar no ânus tudo o que lhe aparece pela frente. É trash, mas menos comédia do que a premissa dá a entender, entrando pelo domínio da fantasia e da ação. Para mim, sofre de um problema estrutural: a primeira meia hora é tão competente a surpreender-nos que, quando a história pousa, parte da sua força se esgota. É como se o filme tivesse um início bom demais. Porém, achei admirável que prefira apostar mais na narrativa e nas personagens e menos em deixar explícita a exploração das regiões mais recônditas da humanidade.

Kraftidioten ("In Order of Disappearance", 2014). Não tem investigação policial, um protagonista problemático ou peso narrativo das divisões sociais, como se vê muito em "nordic noir". A história é simples: um homem decide vingar a morte do filho. Descobrimos rapidamente quem matou e por quê, e resta-nos então acompanhar o percurso das personagens. É um filme de gangsters construído com solenidade, nada espetacularizado. Não vi o remake americano de 2019, mas não me surpreendeu nada quando vi que ele era protagonizado por Liam Neeson, homem com um "very particular set of skills". Até adivinho o tratamento que Hollywood deu a isto.

Promising Young Woman (2020). Depois de I Care a Lot, mais uma bela e inesperada junção de comédia e thriller. Carey Mulligan está ótima, tanto no filme quanto na sua carreira: ela traz para as suas personagens peso e profundidade, compondo-as de forma silenciosa e refinada. O melhor filme de vingança que vi desde Blue Ruin (2013).

Almost Famous (2000). Revi pela primeira vez desde a estreia. Lembro-me que, na época, o achei um bom filme, mas não a obra-prima que as críticas entusiasmadas faziam crer. Mantenho a opinião, mas reparo que continua a funcionar muito bem 21 anos depois, e isso não é coisa pouca.

Coming 2 America (2021). O maior problema deste filme é que ele tenta contar duas histórias ao mesmo tempo sem conseguir decidir qual delas é a principal. Por um lado, temos a história de Akeem, agora rei, que se encontra numa crise de meia-idade e é confrontado com um dilema (a solução para problemas políticos pode perigar a estabilidade da sua família). Do outro lado, está o arco de Lavelle, o seu filho recém-descoberto, que tem que decidir se quer ser um príncipe africano ou um rapaz simples do Queens. A falta de decisão sobre qual é a história principal torna o filme confuso, e ele tenta resolver isso colocando-se num espaço de nostalgia, aludindo constantemente ao filme de 1989 dirigido por John Landis. Isso até seria de esperar, mas aqui só aumenta a estranheza: é como se Coming 2 America não fosse uma verdadeira continuação, mas mais uma homenagem ao filme original, que invoca a simpatia que o público e o elenco guardaram por ele sem se comprometer totalmente com a sua herança. Teria sido uma ideia melhor re-abordar o enredo "riches to rags to riches", que Landis e Murphy já tinham desenvolvido no ótimo Trading Places, e criar uma história menos rebuscada. Do jeito que está, sorrimos com simpatia, sim, mas tal como sorriríamos se fôssemos ver um grupo de teatro amador montando uma peça inspirada em Coming to America.

Rock ‘n’ Roll High School (1979). É bobo, caótico, com problemas de timing, momentos de comédia de gosto duvidoso e que parece agitar na nossa frente o tempo todo que tem os Ramones. Ou seja, é um filme extremamente divertido e que exala entretenimento em todos os seus planos!

Matinee (1993). Esta homenagem aos filmes de série B ambientada durante a crise dos mísseis em Cuba talvez seja adolescente demais para adultos e adulta demais para adolescentes, mas é um grande espetáculo e um festival de citações cinematográficas. O Joe Dante é um diretor apaixonado pelo Cinema, e isso faz toda a diferença.

Amadeus (1984). Foi a enésima vez que o vi, mas só a segunda da versão Director's Cut. Sei que há quem a considere redundante, mas discordo: acho que as suas sutilezas são esclarecedoras e os seus pormenores enriquecedores.

Bloody Sunday (2002). Paul Greengrass recria os acontecimentos do Domingo Sangrento em Derry, na Irlanda, contextualizando-os como uma crônica de um desastre anunciado, e põe a sua câmera documental no centro. O seu processo é inteligentíssimo e afinado com os tempos, mesmo já depois de termos conhecido a pós-verdade: se a força da mensagem é conquistada com a franqueza da imagem, a representação ficcional precisa da promessa de real do documentário para se constituir. Angustiante e revoltante. Um grande filme.

People of Earth (2016-...). Uma série de comédia com o Wyatt Cenac que parte da premissa "e se essa teoria da conspiração sobre seres reptilianos fosse verdadeira?". Não é incrível, mas é engraçada e tem personagens muito simpáticas. 

O que vi de Janeiro até agora

The Rider (2017). Ainda não consegui ver Nomadland, mas sabia que este anterior da Chloé Zhao tinha sido bastante aclamado. Não o achei memorável, mas é um filme sensível, que parte do mundo do rodeo para falar sobre coisas em transformação como a masculinidade e os EUA. Grande acerto: os atores amadores, principalmente o protagonista, Brady Jandreau, que praticamente está a representar-se a si mesmo.

The Wolf of Snow Hollow (2020). É trash, excessivo, ostensivamente imperfeito e violento e muito, muito divertido. Se quiserem ver um filme que não pede para ser levado a sério, recomendo.

Derek DelGaudio's In & of Itself (2021). O último espetáculo gravado que tentara ver antes deste fora o filme do Hamilton, e achei-o tão insuportável que parei no meio. Não foi o que aconteceu quando vi In & of Itself. Derek DelGaudio mistura "storytelling", magia e mentalismo com um tom confessional e o objetivo confesso de revelar alguma verdade profunda e sobre todos os espectadores. É difícil encaixar este espetáculo num género, mas há uma questão profunda no seu cerne que é discutida desde Platão: até que ponto é que uma representação — uma ilusão — consegue mostrar o real, ainda para mais o real no que somos? Ao longo da sua duração, sentimos compaixão, rimos, comovemo-nos e desejamos estar lá, naquela plateia, a participar desta catarse coletiva. Isto, senhoras e senhores, não é nenhum Hamilton — é muito melhor.

Jimmy O. Yang: Good Deal (2020). Na Amazon Prime. Já dá para perceber vendo o seu filme Opening Act que o Jimmy O. Yang é um comediante em ótima forma e com muito amor por aquilo que faz. Este especial de stand-up dele não vai mudar a vida de ninguém, mas é bem engraçado e prenuncia uma boa carreira para o rapaz.

Palm Springs (2020). Das melhores comédias que vi nos últimos tempos, e não só — mas também — por cometer o ato temerário de emular Groundhog Day e sair vivo do outro outro lado.

The Dig (2021). Nunca pensei que um filme sobre a escavação de um navio normando poderia ser tão interessante, mas também nunca tinha pensado que um filme sobre agentes imobiliários poderia ser interessante até ter visto Glengarry Glen Ross. Direção sensível (me marcaram as cenas com os diálogos em off sincronizados com os jogos de olhares entre as personagens), mas o mais memorável é Ralph Fiennes, um "character actor" maduro que aprendeu a desaparecer completamente por trás da personagem.

Martyrs (2008). Serviu-me para descobrir que ver pele a ser cortada e pessoas a gritarem muito não me impede de bocejar.

12 Angry Men (1957). Não acredito que haja uma única pessoa que ganhe a vida a escrever (seja para "page, stage or screen", como dizia Robert McKee) que não veja este filme de Sidney Lumet com admiração pelo estudo de personagens e economia de meios. Tudo é como deve ser. Uma preciosidade.

The Mole: Undercover in North Korea (2020). Ao longo dos seus dois episódios, este documentário dinamarquês surpreende-nos constantemente pelo escopo e pela distância que ele e as suas personagens percorreram para conseguirem construir a sua denúncia. Não é só a Coreia do Norte, regime construído sobre a corrupção e o crime organizado, que nele é exposta — é a geopolítica do mundo inteiro, em toda a sua hipocrisia. Surpreendente e imprescindível.

The Double (2013). Uma adaptação de O.Duplo de Dostoiévski com toques de Kafka, Brazil do Terry Gilliam e After Hours do Scorsese. Jesse Eisenberg muito bem, Richard Ayoade a comprovar que é um diretor bem talentoso.

Cujo (1983). Lembro-me que uma vez estava na praia a ler uma revista e encontrei nela um conto do Stephen King que não consegui largar enquanto não terminei. Não havia nada de sobrenatural nesse conto, tal como não há neste filme que adapta um romance dele, o que só revela como o grande talento do escritor é revelar a profunda humanidade das suas personagens.

Blood & Flesh - The Reel Life and Ghastly Death of Al Adamson (2019). Na Amazon Prime. Um documentário muito inteligente, que se mascara de "true crime" quando, na verdade, é uma biografia do produtor independente de série Z que está no título. Um grande conto de Cinema.

Pretend It's a City (2021). Salve, salve, Fran Lebowitz, os resmungões deste e outros mundos te saudamos como nossa santa padroeira.

Get Duked (2020). Na Amazon Prime. Uma comédia de adolescentes que usa e abusa do "nonsense" para nos tentar surpreender constantemente e que não pede desculpas por ser como é. Vi sorrindo.

Generation Wealth (2018). Na Amazon Prime. Vemos poucos ensaios fotográficos e documentários sobre pessoas ricas porque elas não precisam mostrar o que têm e como vivem para mudarem de vida. Felizmente, a fotógrafa Lauren Greenfield era amiga de ricos e ex-ricos suficientes para fazer este belo documentário sobre eles.

Efterforskningen ("The Investigation", 2020). Nas suas ficções, Tobias Lindholm parece ser um autor muito interessado nos processos das coisas. Em Kapringen ("Sequestro", 2012), por exemplo, ele mostrava-nos o que acontece quando um barco é tomado por piratas, não só dentro do barco, mas também na empresa armadora e nas casas das famílias dos sequestrados. Neste Efterforskningen, inspirado num caso real, ele mostra-nos aquilo que se desencadeou na polícia dinamarquesa quando uma jornalista desapareceu. Se for "nordic noir", é um analítico e humanista, despido dos elementos de thriller e completamente entregue às suas personagens. Não empolga, porque não quer empolgar; interessa, porque quer interessar.

Kuroneko (1968). Kaneto Shindô foi um diretor modelar para cineastas independentes de todo o mundo. Aqui ele segue a mesma receita de Onibaba: imagens poderosíssimas, poucos atores, produção enxuta e uma história sobrenatural intrigante.

Saint Maud (2019). Repito o meu padrão de pensamento para Terror: se não me assustar, que me fascine e, se não me fascinar, que me entretenha. Vi este filme sobre obsessão religiosa ser muito elogiado e, por isso, esperava mais. Porém, entreteve-me, e isso já não é nada mau.

Pose (2018- ) e Paris is Burning (1990). Implico com as séries do Ryan Murphy e os seus maneirismos narrativos desde a terceira temporada de American Horror Story, mas Pose reconciliou-me com ele. É uma série corajosa, com um elenco maioritariamente trans que interpreta uma comunidade criada pelo encontro nas margens da violência, da pobreza e da marginalidade. Paris is Burning é o documentário para quem quer aprofundar a lição, muito menos glamoroso, mas igualmente celebratório.

Battle Royale (2000). Se o tivesse visto no início do século, quando ele era fenómeno de culto em vários continentes, talvez tivesse gostado mais, mas hoje parece que todas as suas novidades já foram absorvidas, desde Tarantino até Hunger Games

La Vita È Bella (1997). Revi-o 24 anos depois, ri-me nos mesmos momentos e voltei a chorar no final.

I Care a Lot (2020). Nunca vira a comédia e o thriller tão bem juntados quanto aqui, e é uma lição sobre como um jogo de alto risco pode substituir a identificação do espectador com personagens ou, talvez melhor, como a empatia não implica necessariamente a identificação. Não há ninguém que se aproveite aqui e, no entanto, vemo-nos e empolgamo-nos com o destino desta gente escrota até ao fim. A anti-heroína é tão detestável que o primeiro ato me fez sentir fisicamente indignado, com um aperto no peito de raiva. Nunca um filme me fizera sentir assim.

The Professor and the Madman (2019). Sean Penn é grande. O filme vê-se.

Wellington Paranormal (2018- ). Uma série criada pelos estelares Taika Waititi e Jemaine Clement sobre dois agentes de polícia da pacata Wellington que são destacados para uma unidade secreta de investigação de fenómenos paranormais. Um "mockumentary" muito divertido, bobo e inteligente nas medidas certas e bom para desanuviar um pouco a cabeça. 

El Agente Topo (2020). Um documentário chileno sobre um idoso que é contratado por um detetive particular para se internar numa casa de repouso e investigar se ela maltrata os seus residentes. Está na "shortlist" para os Oscars de Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Documentário e tem tanto de divertido quanto de emocionante.

Ófærð ("Trapped", 2015- ). A Netflix encarregou-se de que este "nordic noir" viciante, a série audiovisual islandesa mais cara de sempre (pelo menos na época em que estreou), se transformasse num sucesso internacional. Filmada em duas cidades minúsculas rodeadas por fiordes e neve, só me lembra aquela frase atribuída ao Tolstoi: «canta a tua aldeia e serás universal». 

Insomnia (1997). Não quero ser injusto, mas, quando vi o Insomnia de Christopher Nolan em 2002, tive a impressão que era um filme que se ia perdendo. O original norueguês, pelo contrário, parece um filme que se vai encontrando.

Wolf (1994). Lembro-me deste filme ter sido muito visto e falado nos anos 90, mas eu nunca o vira. Não me lembrava que ele era do Mike Nichols, mas a surpresa maior ainda foi quando percebi que a Michelle Pfeiffer era mais jovem do que eu sou agora.

Judas and The Black Messiah (2021). Não é um filme espetacular, porque o espetáculo não lhe interessa. A história de Fred Hampton é a história de um dos maiores crimes que o governo dos EUA já perpetrou contra um dos seus cidadãos e ele merecia um filme à altura do que Spike Lee fez para Malcom X. Finalmente conseguiu-o.

Cuba and the Cameraman (2017). Na Netflix. É um puro filme de diretor de televisão, e isso é um franco elogio. As visitas de Jon Alpert a Cuba durante mais de 30 anos e os seus reencontros tanto com Castro quanto com pessoas comuns do campo e da cidade dão-nos um recorte de vida surpreendente, que conta a história recente da ilha melhor do que muitos livros e artigos de jornal. 

O que vi esta semana

The 40-Year-Old Version (2020). Um filme muito pessoal sobre teatro, hip hop e poesia que é também uma comédia sensível e extremamente divertida. Se o tivesse visto antes, é bem possível que o tivesse posto na minha lista de melhores de 2020. Aproveitem enquanto ainda está na Netflix.

Never Rarely Sometimes Always (2020). Não se aventura pela agudeza trágica de 4 luni, 3 săptămâni și 2 zile, de Cristian Mungiu, mas o estilo documental faz dele um filme exemplar para mostrar como o aborto nos EUA, embora liberado, continua a ser um desafio terrível para muitas mulheres. 

The Exorcist 3 (1990). É um erro esperar dele uma simples continuação de The Exorcist. O que William Peter Blatty fez aqui é puro "arthouse film" com um tom bem teatral (no bom sentido) e diálogos sofisticadíssimos, tanto que os seus desequilíbrios têm muito a ver com pedidos do estúdio para que a coisa ficasse mais do mesmo. 

The Trip to Greece (2020). A verdade nua e crua, para o bem e para o mal, é que The Trip é sobre dois homens, ingleses, brancos e ricos a envelhecerem. Pode-se não gostar da premissa ou não achar graça a Rob Brydon e Steve Coogan, mas uma coisa é inegável: The Trip é um caso raro na forma como expõe o humano por trás da celebridade, e muito disso deve-se à realização elegante e respeitosa de Michael Winterbottom. As séries e filmes da franquia são como os filmes do Woody Allen: de uma forma ou de outra, já sabemos o que vamos ver, mas vemos de qualquer forma, como se fosse um remédio periódico. Belas paisagens, comida incrível e imitações de gosto duvidoso? Estou dentro. 

Lorena (2019). Li algumas críticas a este documentário da Amazon Prime que apontavam a falta de crítica ao contexto cultural e social que levou a que Lorena Bobbitt pudesse ter sido abusada e estuprada pelo marido durante anos antes que ela lhe tivesse cortado o pénis e a ridicularização a que foi sujeita depois. Parece-me uma crítica injusta, considerando que o documentário é mais expositivo do que argumentativo e, desse ponto de vista, faz um bom trabalho condensando o antes, durante e depois dos julgamentos que, nos idos anos 90, fizeram todo o mundo parar e pensar um pouco sobre violência doméstica.

North By Northwest (1959). Um ano antes, Hitchock realizara Vertigo. Um ano depois, realizaria Psycho. Que colheita, senhoras e senhores, que colheita.

FOTBAL INFINIT (2018)

O diretor romeno Corneliu Porumboiu encontra um homem simples com um emprego burocrático e tenta entender a motivação para o seu projeto de vida: encontrar uma forma alternativa de jogar futebol em que a bola se mova mais e mais depressa do que os jogadores. É um documentário simples, filmado em meia dúzia de sequências, mas o monólogo final do protagonista é tão poderoso que não resisti a traduzi-lo. Quem não quiser "spoiler", fica avisado. 

— Quando tinha 19 anos, já tinha sofrido vários acidentes. Comecei a perguntar-me porque estas coisas aconteciam. Estaria a receber castigo divino por erros do passado? Comecei a olhar para trás, perguntando-me qual erro merecia esta punição. Na Bíblia, em Apocalipse 3:19, Deus diz «eu repreendo e castigo a todos quantos amo». Parece uma contradição total. As pessoas que Deus ama, ele repreende e pune: qual o sentido disso? Quando eu era estudante, encontrei uma versão original da Bíblia em grego, e, para dizer "castigo", eles usavam um termo relacionado à "paideia". Em Filosofia, ao estudar a alegoria da caverna de Platão, aprendera que a palavra "paideia" é usada para expressar "conhecimento". Sob a influência do conhecimento, a pessoa receberia a luz, e a República de Platão descreve uma humanidade que vive dentro de uma caverna escura e deve ser levada até à luz pela "paideia", mas gradualmente, porque, se sai da caverna de repente, a luz pode cegá-la. Mas aqui eu encontrara a palavra "paideia" usada para significar simplesmente "castigo". Também descobri a mesma coisa para "metanoia", "metanoeo" e outras palavras relacionadas, que agora são traduzidas no Novo Testamento como "arrependimento". Na Bíblia atual, Jesus diz «arrepende-te!». Mas, considerando o sentido original da palavra "metanoia", isto deveria ser traduzido como «muda!». Tive uma espécie de revelação, e contatei a minha professora de Grego Antigo, Mihaela Paraschiv. Ela explicou-me que estas palavras originalmente tinham conotações não-violentas. "Paideia" significava "educação não violenta", "metanoia" significava "transformação". Porém, durante o feudalismo, a igreja cristã começou a atribuir a estas palavras conotações violentas, que eram úteis para dar uma justificação espiritual a todo o tipo de abusos e para responder às perguntas das pessoas. Era mais fácil dizer que uma doença é um castigo divino por algo que nós ou os nossos antepassados fizeram. Comecei a entender que, de uma perspectiva moral e espiritual, violência não é boa. Tentar justificar violência usando certa palavras da Bíblia não é coerente. Então, eu entendi que, se conseguirmos encontrar regras, normas e um contexto geral em que as pessoas possam ser menos violentas, é possível viver em maior harmonia. Isto também se aplica ao desporto.
— O teu desporto é uma espécie de utopia política.
— Não.
— É uma utopia.
— Não. É uma solução autêntica. É isso que quero dizer.  Só parece utópico para aqueles que se recusam dar a si mesmos uma certa liberdade.

O que também tenho visto


SOUL (2020). O último da Pixar tem tanto de divertido quanto de comovente e ensina duas lições importantes: os adultos devem aproveitar mais a vida e as crianças devem aprender a gostar de jazz. 

DRUK ("Another Round", 2020). O vencedor dos European Film Awards é marcado pela tragédia pessoal do diretor Vinterberg: a sua filha Ida, que seria atriz no filme, morreu no início das gravações. Talvez por isso, é um filme sobre pessoas que se perdem das outras e também de si mesmas, desde as personagens que seguimos até toda a Dinamarca. É um "coming of age" da meia idade que nalguns momentos nos lembra "Idioterne" de von Trier e noutros "I Vitelloni" de Fellini e que nunca, nem mesmo no seu final aparentemente iluminado, larga inequivocamente a dor que o motivou. É como se o filme nos dissesse que, na vida, segue-se em frente, sim, mas carregado de cicatrizes.

LONG STRANGE TRIP (2017). Na Amazon Prime. De Grateful Dead só conheço a fama, as histórias e a "Dark Star", mas se há uma coisa certa nesta vida é que os documentários sobre músicos produzidos pelo Scorsese entretêm. 

SPOORLOOS (1988). Aparece muito em listas de terror, mas isso é enganoso. "Spoorlos" é, na verdade, um ótimo suspense, apesar das marcas do tempo, como aqueles sintetizadores chatos que de vez em quando se fazem ouvir na trilha. No final, lembra Haneke: o destino das personagens é consequência tanto das suas ações quanto da vontade insaciável do espectador "voyeur" e cruel, que quer saber mais e mais independentemente do que acontecer. 

MONOS (2019). Um filme colombiano sobre um grupo paramilitar de adolescentes que é uma mistura de "Lord of the Flies" com "Apocalypse Now" e que deve ser visto considerando a história do país com as FARC. Fantasioso e com locações incríveis, é um filme poderoso, que nos surpreende constantemente e que parece dizer que a violência é bem menos fluida do que o género.

O que vi no Natal

O Natal longe da família teve momentos de melancolia, por isso, comecei-o revendo filmes. "The Money Pit" (1986) continua a ser uma ótima comédia, que nos faz rir com o "slapstick" e ainda pode ser usada por professores para explicar o que é uma metáfora (a casa = o relacionamento).  "Die Hard" (1988) continua a ser o filme que tirou os músculos do herói de ação e para o bem e para o mal, mostrou que pessoas normais também podem eliminar terroristas. 

Depois entrei numa sequência Bill Murray. Nunca vira "A Very Murray Christmas" (2015), na Netflix, um filminho muito querido. Passei para "The Bill Murray Stories" (2018), documentário sobre as aparições do ator em locais e situações inesperadas (festas privadas, bares, e por aí adiante) que só mostra que ele é um sujeito que parece saber viver bem a vida. Terminei com "Scrooged" (1988), adaptação de "A Christmas Carol" que melhora com os anos passados, mesmo que eu não esteja muito certo se são os anos do filme ou os meus.

"Scrooged" levou-me a uma vibração mais classicamente natalina, então fui atrás de filmes com o Pai Natal. "Santa's Slay" (2005) é uma comédia "trash" divertidíssima com um Pai Natal assassino que é filho de Satanás e uma virgem chamada Erica. Já o finlandês "Rare Exports" (2010) não é exatamente uma comédia e parece sofrer com a falta de dinheiro para efeitos visuais mais impressionantes, mas é atravessado do início ao fim por um humor muito ácido que o sustenta bem.

O período de festas terminou com "The Shawshank Redemption" (1994). A minha mulher nunca o tinha visto, por isso, tive um pretexto para revê-lo pela enésima vez. Para quem não viu, poderíamos dizer que é um filme sobre não perder a esperança de que tudo acabe numa praia paradisíaca. Adequadíssimo aos nossos tempos, portanto.

SCHITT'S CREEK (2015-)

Estive a gravar em estúdio durante as últimas semanas e o trabalho pesado puxa-me a vontade de ver algo leve, descomplicado e sem compromisso. Decidi experimentar a grande vencedora dos últimos Golden Globes de Comédia, e acertei em cheio. Vê-se com um sorriso, tem um elenco ótimo (Catherine O’Hara e Eugene Levy são enormes, enormes) e principalmente as primeiras duas temporadas são uma mistura encantadora de graça com uma elegia à vida simples.

ENGLAND IS MINE (2017)

Esta biografia ficcional e não-autorizada de Morrissey sofre com os defeitos do próprio: é muito difícil empatizar com uma personagem tão chata e com tamanhas ilusões de grandeza.. 

DARK WATERS (2019)

Na Amazon Prime. Acho que nunca vira um filme do Todd Haynes tão abertamente de denúncia. Fiquei boquiaberto por descobrir, não só como o uso e fabrico do Teflon são nocivos para a saúde, mas também a monumentalidade da ação jurídica que foi necessária para que as suas vítimas fossem compensadas. Depois desta, as minhas frigideiras estão com os dias contados.

I, TONYA (2017)

Foi realizado por Craig Gillespie, o mesmo de "Lars and the Real Girl", e confirma o apreço do cineasta por figuras da América escondida atrás das luzes e da purpurina. Nos cursos de guião, ensina-se muito que é necessário respeitar as personagens, os seus caminhos. Este filme é o exemplo claro de que isso não significa deixar-se enganar por elas: ele é povoado por pessoas desprezíveis e não esconde a ironia (até o humor) com que olha para elas. A honestidade só lhe fica bem.

BLOW THE MAN DOWN (2019)

Uma daquelas histórias de faca e alguidar que constroem a mitologia das cidades piscatórias, com a originalidade de dar a mulheres o protagonismo de motores da ação. Um belo filme na Amazon, com alguns ares do "neorrealismo mágico" que parece andar em voga.

SWALLOW (2019)

Começa na linha "épater la bourgeoisie", segue na onda do "body horror" e termina concluindo-se metáfora forte sobre o trauma e a maternidade. Um belo pequeno filme, e acho que ainda veremos Haley Bennett, a atriz protagonista, a interpretar muita coisa boa.