2022

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A minha lista dos melhores de 2022

Este ano, decidi fazer isto de forma um pouco diferente: o critério que escolhi foi «quais filmes e séries deste ano não me saem da cabeça e por quê?». Aviso que sou liberal em relação às datas: se eu vi este ano e estrearam em algum lugar este ano (mesmo que não em estreia mundial), entram.

15. COMPETENCIA OFICIAL e THE OFFER
O primeiro é uma comédia ácida sobre o processo de construção de um filme por dois atores egocêntricos e uma diretora caprichosa. O segundo é uma série que conta a história da produção de "The Godfather". 
À sua maneira, ambos mostram na perfeição as alegrias, tristezas e loucuras do trabalho no audiovisual.

14. SWAN SONG e BRIAN AND CHARLES
Duas comédias melancólicas sobre solidão. "Swan Song" é a celebração merecida do grandioso Udo Kier no papel de um cabeleireiro e ex "drag queen" idoso. A cena em que, de um banco de jardim, ele contempla um casal de homens passeando com os seus filhos e diz «eu não saberia mais como ser gay» é inesquecível. 
"Brian and Charles" é um "mockumentary" sobre um homem na Inglaterra rural que constrói um robô para o ajudar nas tarefas de casa e acaba por mudar a sua vida além do que esperava. Muito gervaisiano e muito bonito.

13. WHITE LOTUS, TEMPORADA 2
Coloco-a aqui principalmente por causa de Jennifer Coolidge. Ela já tinha relançado a carreira com a primeira temporada, mas os episódios deste ano mostraram o seu brilhantismo, até porque, pareceu-me, a sua personagem Tanya não estava tão bem escrita quanto em 2021. Coolidge poderia ter interpretado Tanya como simplesmente mais uma mulher rica e fútil, mas ela consegue transformar a futilidade e a apatia na ponta visível de um gigantesco iceberg emocional, uma dor que passeia pelo mundo com vestidos caros e maquiagem pesada num rosto que às vezes parece a máscara clássica da Comédia e, no minuto seguinte, a da Tragédia. Não consegui cansar-me de vê-la.

12. RESURRECTION e BLONDE
Dois filmes que falam de violência contra mulheres de formas pouco óbvias. "Resurrection" retrata uma relação de dominação e submissão de uma forma que nunca vi em cinema, principalmente porque livre do folclore do "bondage" e outras ideias feitas sobre BDSM. 
"Blonde", mais do que um "biopic", é uma leitura da figura de Marilyn Monroe a partir do seu corpo: um corpo do qual a verdadeira Marilyn nunca poderia dispor porque, no imaginário popular e no mundo real, ele existia para ser violado.

11. ORANGES SANGUINES
Uma mistura de "Relatos Selvagens" com "Happiness". Uma comédia tão ácida que só lhe falta espremer as suas personagens para o nosso bel-prazer. 

10. BARDO, FALSA CRÓNICA DE UNAS CUANTAS VERDADES
«Pretensioso» é uma crítica que se ouve muito por aí, por exemplo, quando um filme leva as suas aspirações artísticas muito longe. Eu não gosto dela, porque diz muito pouco. Exatamente a partir de que momento é que algo é pretensioso? De quem é a sensibilidade definitiva que diz se se foi longe demais ou não? "Bardo" poderia facilmente ser chamado de pretensioso. Porém, são muito raros os filmes que, sempre que um plano começa, deixam o espectador em pulgas para ver como vai acabar. Iñarritu rouba inspirações de Fellini aos Radiohead, e ainda bem que o fez: se este filme fosse uma praça, caberiam nele muito mais do que três culturas.

9. SEVERANCE
Uma temporada construída ao pormenor e com a precisão de um relógio até chegar a um episódio final que me fez sentir o coração bater dentro do peito. Ao ensinar sobre suspense na universidade, fale-se de Hitchcock, mas fale-se também de "Severance".

8. THE BANSHEES OF INISHERIN
Sou daqueles que acham que qualquer obra do Martin McDonagh deve ser celebrada. Esta, com pessoas a discutirem por insignificâncias e a recusarem conversar umas com as outras — tudo isso enquanto uma guerra está a acontecer — pareceu-me uma metáfora perfeita para uma época em que as formas de socializar e comunicar foram irremediavelmente afetadas pelos vícios das redes sociais.

7. THE SOUVENIR: PART II
Acho que é preciso ver esta segunda parte para entender bem o jogo de espelhos no díptico da diretora Joanna Hogg. Hogg faz um filme autobiográfico sobre uma diretora que faz um filme autobiográfico: um curta-metragem de fim de curso. Ora, este filme é uma adaptação do curta-metragem de fim de curso de Hogg, "Caprice", que foi protagonizado por Tilda Swinton, sua amiga há décadas. Na vida real, Swinton é mãe da atriz principal de "The Souvenir" e, por acaso, também interpreta a sua mãe ficcional (só que, no caso, esta seria a mãe de Hogg). Ou seja, mais do que um filme que expõe uma cronologia, Hogg trouxe a sua vida para dentro do seu cinema, ligando os dois inextricavelmente. 

6. YOU WON’T BE ALONE
É o melhor filme de terror que vi esse ano e, ao mesmo tempo, é uma pena dizer isso, porque vai afastar muita gente que rejeita o gênero. Esta história de uma moça que se torna bruxa contra a sua vontade fala sobre identidade de gênero, sororidade e crescimento de maneira muito sensível e bela. 

5. TRIANGLE OF SADNESS
Os filmes de Ruben Östlund não são apenas extremamente bem feitos: são também um desafio muito estimulante para o espectador. É divertido que um dos cineastas mais celebrados do cinema europeu atual seja também um dos seus maiores provocadores.

4. RIGET: EXODUS
Lars von Trier termina a sua série 25 anos depois do final suspenso da segunda temporada. Gosto muito dos projetos mais dinamarqueses do von Trier, porque parece-me que, sem a pressão dum público internacional, ele fica solto e mais disposto a arriscar. Se "Riget" sempre teve uma grande dose de autoironia, esta terceira temporada leva-a ao delírio. É absurda, inconstante, brincalhona, assustadora e o claro produto de um gênio que, na maturidade, parece tão inquieto e iconoclasta quanto sempre.

3. EVERYTHING EVERYWHERE ALL AT ONCE
Os Daniels são criadores audiovisuais inesperados e poderosos, capazes de nos fazerem rir enquanto olhamos para duas pedras e chorar com pessoas que têm dedos de salsicha. Com este filme, eles concorrem ao lugar de Fellini do nosso tempo, criando imagens que não só parecem sonhos como parecem querer ensinar-nos a sonhar.

2. SUNDOWN
Quem é este homem silencioso, este estrangeiro camusiano que parece perder-se da vida nas praias de Acapulco? Tim Roth é um portento neste filme que surpreende a cada volta. Levou-me a ver toda a obra de Michel Franco e tenho uma certeza: Haneke mexicano ou não, é dos melhores escritores de filmes da atualidade.

1. THE REHEARSAL
É normal que alguém se pergunte «quero contar esta história: qual o melhor formato e gênero para contá-la?». Normalmente, isso implica pensar em termos de comédia ou drama, filme ou série de televisão. Porém, para Nathan Fielder, "The Rehearsal" pareceu ter implicado algo assim: «para contar uma história sobre o meu encontro com a ideia de paternidade e a relevância das projeções de mim mesmo na amálgama de coisas que me fazem, o melhor é usar a própria materialidade do gênero do reality como instrumento narrativo».

O jogo com o simulacro já não existe, como em "Nathan For You", no sentido da subversão que revela o novo significado da verdade no mundo do ciclo noticioso de 24 horas e das mídias sociais. Aqui as simulações servem como ensaios de vida que acabam construindo uma viagem pessoal marcada pela autoperformatividade. E a subversão de Fielder é feita de outra forma. Primeiro, ele adota uma linguagem audiovisual popular — a do "reality" de confinamento — e resgata-a da ideia de concurso para se revelar a si mesmo enquanto personagem. Depois, ele prova que essa confusão entre realidade e ficção é o melhor caminho para contar a história da germinação da sua verdade pessoal. O "ensaio" é montado para externar uma ficção imaginada por Fielder para si mesmo e que, por isso mesmo, é tão ficção quanto realidade.

Enquanto contador de histórias, Fielder trabalha num nível narrativo diferente do normal e completamente inesperado neste contexto televisivo. É o nível em que reconhecemos o real na ficção (como naqueles momentos de um filme em que um ator não se contém e ri de uma piada) e a ficção no real (como a estrutura ficcional construída sobre o mundo por uma teoria da conspiração). Por isso, discutir se o que vemos em "The Rehearsal" é verdade ou mentira não é tão interessante quanto perceber que Fielder reconfigura os gêneros até nos fazer questionar, não só os seus limites, mas o que realmente ideias como "ficção", "realidade", "verdade" e "mentira" significam no audiovisual. É por isso que o coloco no topo da minha lista de 2022.

A rede dos desastres

Lembro-me de ter lido há anos que a Web é feita de nostalgia e imagens de gatos. Esses seriam os dois significantes principais dela, as duas coisas em que pensaríamos quando pensamos nela. Acho que o autor do texto não mencionava a pornografia, certamente porque não queria correr o risco de não ser levado a sério. Poderia também ter falado das teorias da conspiração, que andam por aqui desde os fóruns dedicados aos X-Files e ao "The Shining". 

Anos depois, as redes sociais da Web 2.0, que cresceram paralelamente à ascensão da direita autoritária pelo mundo, adicionaram à mistura a intolerância e o radicalismo. Não que eles já não andassem por aqui, mas talvez não fossem uma componente imprescindível de uma vivência on-line. Hoje, porém, qualquer pessoa se lembra da primeira vez que ensaiou uma palavra de indignação sobre Bolsonaro, ou Trump, ou Orban, ou André Ventura, e foi alvo de comentários indignados e raivosos de parentes ou conhecidos que, até então, considerava pessoas razoáveis. 

As redes sociais foram movimentadas por desastres. No 11 de Setembro de 2001, o dia em que nenhuma imagem na televisão parecia confiável, os blogueiros foram como radioamadores que descreviam com veracidade o que acontecia no Ground Zero. O Twitter foi o principal instrumento de comunicação, interna e externa, durante a Primavera Árabe. Depois que a evolução dos celulares permitiu que qualquer pessoa andasse com uma câmera viável no bolso, o Instagram e o Youtube tornaram-se canais privilegiados de denúncia de brutalidade policial. Até o Facebook tem uma ferramenta que nos permite dizer às nossas relações se estamos seguros de alguma calamidade que tenha acontecido na nossa área. 

O último desastre que movimentou as redes sociais aconteceu na noite da última quinta-feira, 17 de Novembro. Felizmente, ninguém morreu, mas várias pessoas perderam o trabalho depois de o novo dono do Twitter, Elon Musk, fazer um ultimato aos seus engenheiros após uma primeira onda de demissões: «preparem-se para serem trabalhadores "extremely hardcore" ou saiam». Tanta gente preferiu sair que a rede aparentemente ficou presa por fios. Por todo o mundo, os utilizadores tiveram medo de perderem seguidores e seguidos e foram atrás de alternativas. 

Como um martelo ou um telefone, as redes sociais são um produto tecnológico. O seu sucesso deriva da eficácia com quem conseguem facilitar ou substituir uma função da nossa vida. O Facebook, na sua raiz, procura ser um espaço para encontros de amigos. O Instagram é a versão on-line de "mostrar as fotos de viagem". O LinkedIn serve como currículo profissional e o Twitter é um "ao vivo" permanente, divulgando notícias e temas da atualidade em tempo real. 

O Twitter nunca teve o tamanho do gigante Facebook, mas o número de jornalistas, académicos e fazedores de opinião nele presentes fizeram dele um espaço mais incisivo. Aquilo que aparece no Twitter aparece nos jornais e na televisão. Por isso ele é tão importante para políticos, e por isso ele é um campo de batalha ideológico, onde qualquer opinião é amplificada, discutida e ressignificada frequentemente além da proporção que se intencionava. Se as redes sociais são praças públicas, o Twitter é a nossa ágora.

Até ao momento em que escrevo estas linhas, as trapalhadas de Elon Musk não derrubaram o Twitter. Se um utilizador mais distraído entrasse hoje na rede, acharia que nada tinha mudado. Mas os tuiteiros não são particularmente distraídos — e a hashtag #RIPTwitter continua alta para prová-lo. A noite de quinta-feira foi determinante para impor a dúvida sobre a capacidade do Twitter de continuar a informar, entreter e, no fundo, manter a sua importância no discurso público. O efeito foi mais grave do que o de um chilique do mercado que derruba a Bolsa após as declarações de um político: é como se o próprio contrato social que sustentava a rede tivesse sido quebrado.

Nos dias seguintes, vários artistas, jornalistas e influenciadores brasileiros jogaram pelo seguro e criaram contas no Koo, uma rede indiana que emula a de Musk. Levaram com eles milhares de seguidores. De um dia para o outro, o Brasil tornou-se o segundo país com mais utilizadores no Koo depois da Índia. Trocadilhos com o nome inundaram a Internet. 

Porém, nota-se também uma prudência: como alguns dias não chegam para reconstruir no Koo o número de seguidores que anos de Twitter juntaram, ninguém parece ter efetivamente trocado de rede, postando em simultâneo nas duas (o mesmo conteúdo ou não). A memória do Clubhouse, a rede social de áudio que foi febre em 2021 e abandonada pouco depois, ainda está presente na mente de muita gente.

De qualquer modo, o que esta "Grande Migração" está a mostrar é uma dispersão dos tuiteiros, que deixa a dúvida sobre qual será o próximo espaço privilegiado de discussão pública. Enquanto muitos abriram conta no Koo, vários simplesmente remeteram para as suas contas já existentes em outras redes, como o Facebook ou o Instagram. Outros ainda preferiram abrir conta no Mastodon, uma alternativa open-source menos ruidosa, comprometida contra o discurso de ódio e organizada em servidores moderados por pessoas físicas. 

O Mastodon foi a alternativa que eu escolhi (https://mastodon.social/@nande). Fi-lo ainda antes do 17 de Novembro, por várias razões. Nos meus quinze anos de redes sociais, aprendi como é fácil tornarmo-nos um produto vendido para anunciantes que nos disparam com publicidade a todos os momentos, e eu não estava com muita paciência para ser gado de outro algoritmo. Depois, alguns amigos abriram conta lá, criando um ambiente muito parecido com os meus primeiros tempos de Facebook, com poucas conexões, mas muito relevantes. Por fim, parece uma rede mais cordial e equilibrada, que não precisa da discórdia e do chauvinismo para sobreviver. Quando faço login no Mastodon, sinto uma sanidade que o Twitter teve que abandonar para se tornar grande e movimentado (como fica, de resto, demonstrado pela última jogada de Musk para responder à ameaça de abandono: a ressuscitação da conta de Donald Trump).

Por enquanto, entrar no Mastodon é como estar numa mesa de café com pessoas de temperamentos afins: essa é a função que ele ocupa tecnologicamente. Pelo seu design e pela sua comunidade reduzida, ele não serve (ainda?) para substituir o Twitter enquanto provedor de informação em tempo real. O Koo também não, concentrado que está na Índia e agora no Brasil. 

De qualquer forma, estas convulsões dão a sensação que os tempos de discórdia e tumulto social e político que alimentaram e foram alimentados pelas redes sociais da Web 2.0 podem estar a chegar ao fim. Porém, só saberemos em definitivo quais serão os novos protagonistas on-line quando vier o próximo grande desastre.

Os filmes de Kevin Smith

Depois de alguns meses, terminei hoje os longas do Kevin Smith pré Clerks III. Já conhecia metade, mas agora acabei por assistir tudo na ordem de estreia. Havendo uma palavra que caracteriza cada cineasta, se não na temática que aborda, pelo menos na forma como a sua obra é recepcionada pelo público, a de Kevin Smith é "simpatia". Os seus filmes são filmes de encontro e reencontro: de personagens, de lugares e, principalmente, de amigos. 

Ocasionalmente ele teve azar. Jersey Girl é um filme muito bonito sobre paternidade que só não foi um êxito por causa do fim da primeira encarnação da Bennifer. Zack and Miri Make a Porno, que ele fez para aproveitar a onda dos filmes de Judd Apatow, acabou como uma comédia demasiado "blue-collar" e independente para ter o sucesso que ele queria. 

Muito frequentemente ele também é mal-entendido. Chasing Amy é um "stoner movie" irónico, que discute e desconstrói o machismo da classe média branca dos "stoner movies" da viragem do século e, ao fazê-lo, cria uma das personagens femininas mais incríveis que se viu numa comédia. Dogma, que foi tão atacado por cristãos fundamentalistas, é apenas uma exegese da iconografia religiosa feita por uma mente que cresceu com a cultura popular do século XX. 

De qualquer forma, o mais bonito na obra de Kevin Smith é perceber como, ao longo do tempo, ele tanto constrói a sua vida no cinema quanto o cinema com a sua vida. Em Clerks, ele era um jovem que estourou o limite de vários cartões de crédito para fazer um filme independente com os amigos. Em Jay and Silent Bob Reboot, 25 anos depois, os amigos continuam, mas agora já trazem as esposas e os filhos. Ver estes filmes é como ir a um bar para encontrar gente engraçada com quem podemos falar bobagem, mas que também vai amadurecendo ao longo do tempo. São filmes que nos fazem sentir bem, e isso é tão raro. Bravo, Sr. Smith, e obrigado.

JLG, 1930-2022

Ver Godard exige uma disponibilidade específica da mente e do espírito, sem a qual pode acontecer como a mim aconteceu, quando, após uma noite pouco dormida em Coimbra, arrisquei o Prénom Carmen no TAGV e descobri que as sessões das 19h são aquelas em que estou mais susceptível a cair num belo e clandestino soninho. 

Isso não quer dizer que assistir os seus filmes exija necessariamente um grande esforço intelectual. Ver um filme, qualquer um, no fundo não é um ato muito intelectual: sentamo-nos, imagens passam, vemo-las e pronto. Podemos apreciar Le Mépris como quem contempla postais da Riviera e a Brigitte Bardot. 

O problema é que Godard implica-nos na posição de espectador, exercício pouco e cada vez menos praticado. Vemos os seus filmes e percebemos que cada um deles é um pensamento construído sobre política e estética, sobre linguagem e cultura e o próprio cinema (porque, quando Godard começou, já havia cinema suficiente para garantir que a sua obra fosse principalmente sobre ele). O propósito não será tanto entender os filmes imediatamente quanto deixar a mente atenta, mas solta, e depois pensar "o que vi?". 

Por que mostrar-nos esta imagem, e não aquela? Por que esta frase, e não outra? Por que este final em vez daquele? Quando ele escolhe falar sobre isto, ele fala sobre o quê? Godard não nos dá duas horas de diversão, mas dá-nos tudo o que vem depois: uma reflexão que nos constrói e forma enquanto espectadores. 

Por outro lado o cinema é uma história.

O racismo em Portugal e no Brasil

Neste fim de semana, viralizou o vídeo de Giovanna Ewbank revidando contra uma mulher num restaurante na Costa da Caparica, em Portugal. A mulher chamou os filhos negros da atriz e uma família angolana que lá estava de "pretos imundos" e disse-lhes que voltassem para África. O presidente português Marcelo Rebelo de Sousa chegou a pronunciar-se hoje sobre o caso.

Além das condenações óbvias, eu não gosto de falar sobre racismo porque considero que na maior parte das vezes não é o meu lugar de fala e eu não tenho o que acrescentar. 

Mas, neste caso, eu, português que mora no Brasil, acho que tenho, porque ele toca muito claramente em algo que me é notório: uma diferença silenciosa do racismo em cada país e como este revela as iniquidades próprias de cada lugar.

Tenho uma noção muito forte do racismo brasileiro como sendo principalmente classista. Ele traduz uma visão do país dividido em espaços de pertencimento. A favela e o asfalto do Rio de Janeiro. O quarto de empregada dentro da casa dos patrões, a mesma empregada que tem que preparar uma comida para si diferente da que prepara para eles. O shopping aonde os adolescentes negros não podem ir, porque eles têm de ir ao shopping "deles". 

É como se o racista brasileiro tolerasse um negro perto dele, mas não na sua classe. O negro pode trabalhar para o branco rico, mas será mantido num lugar de pobreza relativa em relação a ele. É um racismo que revela um conservadorismo econômico radicado nos espaços definidos pela escravidão.

Parece-me que em Portugal o racismo não é construído tanto em cima dessa aporofobia, mas da xenofobia. Para o racista português, a pele negra é o símbolo acabado do estrangeiro. Mesmo quando a pessoa já mora no país há muito tempo, mesmo quando nasceu em Portugal e nunca conheceu outro lugar, não importa: a pele negra cataloga-a como alguém que não é dali.

O racista português importa-se menos com a classe econômica do negro e mais com ele estar perto, pisar o mesmo chão. O racista português não diz "volta lá pra tua quebrada", ele diz "volta pra tua terra, volta pra África". O espaço de pertencimento e exclusão é todo o país. Ou seja, se no Brasil o outro é sempre pobre, em Portugal o outro é sempre estrangeiro.

E eu não acho que isto venha tão diretamente da escravidão, mas vem sim da colonização africana e da condição de Portugal enquanto metrópole, de ter sido um país que enriquecia à custa dos invisíveis que estavam longe e que nunca resolveu completamente, primeiro, a perda dessas colônias e, segundo, o fato de esses invisíveis terem começado a aparecer como imigrantes. As mesmas pessoas que deixaram de enriquecer o país, de repente, entravam no país para "tomar os seus empregos".


Uma vez, eu conversei sobre isto com uma amiga, portuguesa, negra, e ela encolheu os ombros e disse "que importa?". Realmente, que importa? Se alguém é atacado em Portugal por causa da cor da pele, que lhe importa se é porque ela é símbolo de classe social ou de ser estrangeiro? E, se uma pessoa é excluída num processo seletivo no Brasil por ser negra, ir pra casa sem o emprego é um "vai pra tua terra" do mesmo jeito.

Ainda assim, eu acho importante falar sobre isto, porque pressinto que talvez o racismo não seja a doença, mas o sintoma que revela a doença, cultural e social, que cada país deve tratar. 

No Brasil, ela tem a ver com desigualdade e mobilidade econômica. Em Portugal, ela tem a ver com a fobia ao estrangeiro e ao diferente.

Se os brasileiros começarem a pôr em causa e a atacar a exclusividade da condição econômica dos mais abastados, talvez alguma coisa mude. Se os portugueses forem acostumados a ver o seu país como um espaço aberto ao outro, talvez alguma coisa mude.

Enquanto não mudar, a minha amiga tem toda a razão: não importa.

Sonho

Tenho reparado que às vezes os meus sonhos vêm em série, com episódios mais ou menos contínuos.

Hoje consegui lembrar um desses sonhos depois de acordar. A série passa-se num festival de cinema. Como é normal nestas coisas, o protagonista sou eu. 

Uma das contrapartidas para eu estar no festival era gravar vídeos com os convidados. Enquanto gravava uma conversa muito interessante com uma idosa e veneranda cineasta, a câmara enguiçou. Deixei que a cineasta terminasse a resposta, agradeci e fui ver se estava tudo bem. Percebi então que todas as gravações que fizera durante o festival tinham sido apagadas do cartão de memória, e ainda tinha a terrível impressão de que não copiara nenhum material para o computador. Perdera tudo.

Sentei-me estarrecido na primeira fila. O filme era uma animação; os desenhos eram em 2D e estilo realista, mas com um efeito gráfico que deixava a imagem ligeiramente desfocada, como o mundo visto por um astigmático sem óculos. No filme, um grupo de personagens aparentemente sem conexão entre si enchia a tela. Elas falavam todas ao mesmo tempo, como uma calçada na cidade momentaneamente ocupada por monologuistas. Seria impossível distinguir as frases individuais no meio do burburinho, mas cada personagem tinha uma legenda na altura do peito com a sua fala. Achei uma solução engenhosa.

O incómodo das gravações perdidas não me deixava tranquilo. Por um segundo, esqueci-me completamente que estava num lugar fechado e acendi um cigarro. Só percebi o erro depois de dois tragos. Apaguei o cigarro no encosto de braço e coloquei a bituca na mochila. Tentei concentrar-me no filme, mas a história não fazia sentido e eu não estava com cabeça para o encontrar. Então, o pessoal do festival começou a abrir as grandes janelas que ocupavam toda a parede lateral da sala. Estranho. Nunca vi isto acontecer num cinema.... Ah! É por causa do fumo do meu cigarro. A noite lá fora não incomodava a projeção, mas não consegui mais prestar atenção ao filme, só à espera que alguém viesse para me expulsar do festival. 

Se estivesse acordado, tinha-me ido embora.

(foto: Radio City Music Hall, New York, 1978, de Hiroshi Sugimoto)

Fui ao ato da CUT e vi o Lula

Já era tarde. O discurso do Lula chegava ao fim quando pisei no fundo da praça Charles Miller, no mesmo lugar onde às vezes me sentara para comer o pastel da Maria na feira do Pacaembu. Quando foi a última vez que o comi? Nem me lembro mais. Certamente antes da pandemia, esse antes e depois elástico que todos entendemos.

Algumas pessoas, também membras do clube de retardatários, apressavam-se para a praça para conseguirem ouvir as últimas frases de Lula. Os jornais disseram que falou sobre reforma trabalhista, sobre os polícias, sobre Bolsonaro. É o que se esperava. Não foi um discurso como os das primeiras greves do ABC que afrontaram a ditadura, nem como o que fez em São Bernardo do Campo antes de ir para a prisão em Brasília e se transformar, de político preso, em preso político. Mas um discurso do Lula continua a ser o discurso duma das maiores personalidades do século XXI, e as pessoas correm para ouvi-lo. Porém, desta vez os retardatários não tiveram sorte: Lula despediu-se e saiu do palco.


Os Francisco, el Hombre iam começar a tocar dali a pouco. Fui tirando umas fotografias enquanto subia a praça. Sorrisos, camisetas vermelhas, bandeiras sindicais. A minha mãe foi sindicalista a minha vida inteira: eu sei quem são estas pessoas, e gosto delas. Também gosto dos Francisco, el Hombre. Pensei em esperar um pouco e ver o show. Sempre daria para abanar o quadril habituado demais à posição sentada.




Reparei então que, do lado direito, algumas dezenas de pessoas esperavam encostadas numa grade. Havia uma abertura entre os tapumes que protegiam os bastidores, logo abaixo da escada de acesso ao palco. Lula estava no topo da escada e acenou para a multidão, que lhe respondeu com entusiasmo. Não consegui tirar a câmara a tempo, mas as pessoas continuaram por ali. Gritavam "Lula, guerreiro do povo brasileiro" com os punhos cerrados e esperavam para vê-lo de perto.



Seria uma daquelas alucinações coletivas a que às vezes as multidões se entregam? Sabe-se que é fácil o engano de alguns tornar-se a ilusão de muitos. Porém, ninguém arredava pé, mesmo enquanto os Francisco, el Hombre tocavam as primeiras músicas. Um homem de cabelo grisalho aproximou-se e perguntou-me se o Lula iria sair por ali. Respondi que, pelo menos, todo mundo esperava que sim. Ele falou «não, ele já saiu! Foi por trás. Tem segurança, aqui é muita gente, não vai sair, não». Encolhi os ombros, sem saber o que dizer perante tanta certeza, mas questionei as palavras do grisalho quando, uns minutos depois, percebi que até ele se juntara à multidão. 

Enquanto nada acontecia, tirei umas fotos em volta. Ambulantes vendendo comida, pessoas dançando, jovens paquerando. Cadê o ódio, cadê a polarização? Lamento, aqui não havia nada disso. As pessoas da praça são todos nós. Têm a marca de quem perdeu algo não faz muito tempo; agora só querem dançar um pouco e seguir em frente.




De repente, noto um burburinho na grade. Lula finalmente se preparava para encontrar a multidão. Coloquei a lente automática na câmara e corri para lá. Ele ficou na minha frente, abraçando as pessoas e segurando as suas mãos. Uma mulher chorava enquanto o abraçava. Toda a gente ergueu o celular com uma mão e estendeu a outra, procurando o toque deste homem. Confesso que também estendi a minha. Enquanto o Suplicy observava e o Stuckert fotografava, Lula passou por toda a extensão da grade, conversou o que conseguiu e depois foi-se embora. 



É indiferente se se concorda politicamente com ele ou não. A presença de Lula parece inspirar as pessoas a quererem ser melhores do que são. A sua resiliência e a sua história levam o povo a reunir-se à sua volta, e o Brasil, esgotado depois de anos de divisões internas, precisa de pessoas que o façam reencontrar-se consigo mesmo.

Arrumei a câmara e vi um pouco do show do Francisco, el Hombre. Continuam tão incríveis quanto eram na primeira vez que os vi, bem antes de serem conhecidos. Depois, subi a escada de pedra que me levaria ao caminho de casa através de paradas de ônibus com bandeiras do PT e bares carregados com a fauna de Higienópolis. A escada estava identificada como a "saída de emergência".

União Latina?

Acho grandiosa esta visão de Lula da América Latina como um bloco autônomo de poder, para a qual o Brasil poderá estar como a Alemanha está para a UE. O contraste com a subserviência de Bolsonaro aos EUA não pode ser maior. 
É por isso também que a cobrança ao PT sobre a Venezuela sempre me pareceu sensacionalista. Não hostilizar a Venezuela hoje pode significar o Brasil liderando uma das maiores uniões econômicas amanhã — e, se a entrada nessa união implicar o cumprimento de critérios como os de Copenhaga, esta pode ser a saída para a redemocratização do país fora do quadro estadunidense e para a América do Sul acabar definitivamente com a condição de quintal do hemisfério norte.

25 de abris

25 de abris, meus países, ou fechais
os meus democratas, que elegem fascistas
disparam salvas coloridas, matam seus pretos
cravo no ar, pistola no check in
discursos e salões nobres, cifrões secretos, indultos
carnais vais, em fome chegais
livres como um elon, não
faias queimadas pagando a inflação
e vendo a rua do arsenal no jacarezinho
e as migalhas de flores na avenida noturna
e o dia, final sujo, em pedaços
e os gritos de socorro 
às margens ácidas

A guerra simples

Só esta noite, a Rússia comunicou que um dos negociadores de paz ucranianos foi executado por traição (o governo de Kiev nega) e que a Ucrânia planeia arrebentar um reator nuclear em Kharkov para depois culpar os russos. Verdade, jogo duplo, jogo triplo?

Vibramos com a bravura dos soldados ucranianos assassinados após dizerem "vá-se foder" ao navio russo que exigia a sua rendição. Dias depois, vimos as imagens deles a chegarem, rendidos, a Sebastopol. Putin diz que não faz uma guerra e, ao mesmo tempo, destrói cidades inteiras, áreas residenciais, hospitais pediátricos.

O que é verdade, mentira, simples confusão ou desinformação deliberada?

Um clichê que corre por aí de novo: na guerra, a primeira vítima é a verdade. 

Este combate é na Ucrânia, nas mesas da diplomacia e nas redes sociais. Há dias, gente ucraniana que procurava o amor percebeu que a invasão vinha aí quando começou a receber likes de soldados russos no Tinder. Hoje, o TikTok entra na onda de sanções e limitou o acesso da Rússia ao seu app. Zelensky, um ator, compreende o poder das imagens e usa-o a seu favor. Putin, outro ator, envia mensagens gravadas para o mundo como se fossem em direto e esmaga os seus próprios jornalistas.

Outro clichê que se ouve por aí: quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado. 

O batalhão Azov, que a Rússia diz estar por trás do suposto plano de explodir um reator nuclear, é nacionalista, reconhecidamente neonazi. Foi integrado na Guarda Nacional ucraniana em 2014 e combate os separatistas em Donbass desde então. Ouvimos que guardas fronteiriços discriminam os emigrantes negros que tentam fugir. Enquanto isso, as Patrulhas do Povo, um grupo de extrema-direita anti-imigrantes, manifesta-se em Belgrado a favor de Putin, que há anos prende e assassina adversários, músicos e jornalistas.

Quem controla o presente?

As culpas parecem baratas quando se começa a escavar a História. Não é por acaso que o Estado Islâmico era obcecado com o acordo Sykes–Picot de 1916. Podemos apontar a responsabilidade pessoal imediata de quem deu a ordem que começou esta guerra. Talvez devamos. Mas também devemos saber que o primeiro dedo apontado vai levantar outro, e outro, e outro, e assim os dedos se levantarão até se perderem na escuridão do tempo e já não sobrar ninguém para quem apontar. 

No futuro, as armas que a OTAN deu para a Ucrânia se defender ficarão com o batalhão Azov? As sanções vão levar à ascensão da oposição democrática na Rússia ou o regime vai fechar-se ainda mais? A guerra vai levar a uma nova ascensão dos nacionalismos em toda a Europa, destruindo lentamente a União Europeia, ou, pelo contrário, vai levar a que ela se fortaleça?

Quem controlará o passado? Quem controlará o futuro?

O certo é que vemos os mortos e os refugiados e pensamos em nós, porque esta gente é parecida conosco. Hoje é segunda-feira: vamos trabalhar, cuidar da nossa vida. Pensamos se, daqui a uma curta semana, também teremos que encher uma mochila e caminhar até à fronteira.

Leio por aí muitas ironias com quem diz "é complexo". As ironias tanto erram quanto acertam. Não é que a situação seja simples por causa das causas históricas ou pelos enredos da política internacional. É simples porque, como diz o provérbio português, quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão. 

E, claro, nós somos o mexilhão.

Quatro séries

Depois de vê-la ganhar o Oscar com The Favourite e dos belos papéis em The Father e The Lost Daughter, é fácil esquecer que Olivia Colman foi e é uma grande atriz de comédia e uma grande atriz de televisão. Tenho visto várias séries com ela e não me canso de admirar o domínio que esta mulher tem do pormenor, do gesto ou esgar sutil que constrói e revela completamente uma personagem. 
Então, se ainda não viram Peep Show, façam-no. Se então descobrirem que a comédia inglesa do início dos anos 2000 vos agrada, partam para Look Around You, uma série que parodia os programas educacionais da BBC dos anos 80. A primeira temporada, de 2002, é desconcertante e viciante, a segunda (2005) entra a fundo pelo "nonsense" e tem um elenco surpreendente, com pessoas como Edgar Wright e Simon Pegg a fazerem "cameos".

Quem também apareceu brevemente em Look Around You foi Ed Sinclair, o marido de Colman e autor de Landscapers (2021), uma minissérie brilhante que a todo momento escancara os mecanismos ficcionais que a sustentam, ocupando um território fascinante de experimentação e de liberdade de linguagem. Aqui Colman já foi produtora executiva, e eu sou capaz de apostar que foi ela quem chamou o jovem diretor Will Sharpe, que ano passado ainda arranjou tempo para fazer The Electrical Life of Louis Wain e mostrou o seu domínio da representação da doença mental e da ternura familiar com arrojo visual. 

Em 2015, Sharpe já tinha dirigido Colman em Flowers, série criada por ele e cuja primeira temporada acabei de acabar: uma viagem impressionante que começa cheia de humor ácido, parecendo satirizar as suas personagens, e termina como uma elegia enternecedora do amor entre pais e filhos. 

Se ainda estiverem a ler e conseguirem encaixar uma recomendação que não tem nada a ver com a Olivia Colman, vejam Reservation Dogs (2021), uma série criada pelo Taika Waititi sobre jovens que vivem numa reserva indígena nos EUA. Além de ser uma lição de diversidade e representação — os atores, diretores e autores são quase todos indígenas —, é uma história incrível sobre a adolescência enquanto idade de grandiosos planos e frustrações.

A minha lista dos melhores de 2021

Entre todas as produções de 2021 que vi, estas são aquelas de que mais gostei. Não distingo entre o que é televisão e o que é filme, porque às vezes nem eu mesmo sei mais o que elas são. A ordem é mais indicativa do que rigorosa.

12. Them (Amazon)
O "americana" como território de demónios e violência, o racismo estrutural como condenação e claustrofobia que limita os corpos e fere os espíritos. Perguntar se fetichiza a violência é muito menos importante do que perguntar porque o faz.

11. It’s a Sin (Channel 4/HBO Max)
Russell T Davies, um dos grandes autores para televisão dos dias de hoje, conta-nos como foram os primeiros dias da AIDS em Londres.

Uma visita à mitologia americana do faroeste (e ao seu duplo, o western) que a desmonta através do poder do silêncio e da solidão.

9. Time (BBC)
Triste, mas esperançosa, trágica, mas sem lamúrias. Dois gigantescos atores britânicos numa das melhores histórias de prisão dos últimos tempos.

Esta série sempre foi a melhor a representar o embaraço e a introspeção adolescente, mas este episódio especial (animado, por causa da pandemia) superou tudo. Erskine e Konkle são rainhas.

Nunca me acontecera romper em lágrimas enquanto via um concerto — até ver o dueto de Mahalia Jackson com Mavis Staples neste belíssimo documentário. 

Um belo ano para o diretor Edgar Wright. 

O registo de um espetáculo fascinante, que mistura "storytelling", magia e mentalismo com um tom confessional e o objetivo de revelar alguma verdade profunda sobre o autor e também sobre todos os espectadores. 

Uma comédia ferozmente ácida sobre esta modernidade meio estúpida que a gente inventou. É romeno, mas poderia estar a falar sobre o Brasil, ou Portugal, ou (preencher com o lugar à sua escolha).

A melhor série do ano passado que ninguém viu é um ensaio visual devastador sobre civilização, colonização e aniquilação. 

Ducournau entra por territórios em que nem Cronenberg se atreveu a aventurar-se. Não ver se tiver o estômago fraco.

É o acontecimento audiovisual de 2021, e ponto final. 

Também: Katla (Netflix), Pretend It's a City (Netflix). Mare of Easttown (HBO Max). Bo Burnham: Inside (Netflix). The French Dispatch. Annette.