novembro 2020

Archive for novembro 2020

SALINUI CHUEOK ("Memories of murder", 2003)

Quando há mais ou menos um ano eu louvava "Parasita" e dizia que todos os outros filmes de Bong Joon-ho que vira me tinham parecido bons com um "mas", um amigo foi perspicaz e disse-me "vê o 'Memories of Murder' e depois diz o que achaste". Finalmente segui o conselho e ele tinha a mais absoluta razão. Que lição de cinema monumental este filme é.

JOHN MULANEY: THE COMEBACK KID (2015) e JOHN MULANEY & THE SACK LUNCH BUNCH (2019)

Na Netflix. Acho admirável como o John Mulaney me faz gostar tanto da "persona" cómica dele, porque, em princípio, eu não a consideraria nada apreciável: "mais um homem branco, filho de uma família de classe média alta, privilegiado como poucos, a ser irónico e azedo"? O que me parece brilhante é a forma como, ao ser honesto sobre a sua origem e ao mostrar as contradições e vulnerabilidades da sua vida, ele consegue criar empatia e conquistar o público. Depois de ver o seu show de stand-up de 2015 (hilariante e nada datado), tive curiosidade de ver o especial de 2019, em que ele adota os tropos da "Sesame Street" e os adapta à sua comédia. "The Sack Lunch Bunch" é incrível por ser um programa infantil que não infantiliza as crianças (as que lá aparecem e as que o possam ver), mas, ao mesmo tempo, nunca se esquece de que elas são crianças. Parece que, ao fazer isso, ele tem mais respeito pela pequenada do que metade dos programas que são feitos para ela. Aqui há Broadway, há "mockumentary", referências a clipes e filmes clássicos. Acima de tudo, há o desenvolvimento constante de um pensamento sobre a melhor forma de remontar um formato clássico, com uma sofisticação que eu não via desde o "Horace and Pete" do Louis C.K. Muito, muito bom.

MEET THE CENSORS (2020)

Da Amazon Prime. Um cineasta norueguês (Håvard Fossum) viaja pelo mundo e conversa com pessoas que, ou estão encarregadas de organizar a censura no seu país, ou convivem diariamente com algum tipo de censura do seu trabalho. A sua insistência é admirável, tal como as revelações nas suas viagens (Sudão do Sul, Alemanha, Índia, China, Irão e EUA), mas a construção do documentário enquanto viagem de autodescoberta resulta numa certa redundância narrativa: como Fossum não consegue tirar grandes conclusões, parece que voltamos ao ponto de partida. A pergunta que fica é se isso faz dele um documentário falhado ou se, pelo contrário, chegamos exatamente ao lugar aonde deveríamos chegar: ao impasse sobre como uma democracia pode limitar as mensagens antidemocráticas.

LORD OF WAR (2005)

Conhecia Andrew Niccol como o homem de "The Truman Show" e "Gattaca", por isso, não esperava que este seu filme sobre o tráfico de armas fosse tão fortemente baseado na realidade, com inspiração em figuras verdadeiras e uma precisão da história geopolítica pouco habitual no cinema americano "mainstream". Duas coisas limitam-lhe a força: espetaculariza demais a morte, esvaziando-a, e, por não focar numa figura específica, não deixa que a sua denúncia vá muito longe. Ponto extra por um Nicholas Cage contido.

ROLLING STONE: LIFE AND DEATH OF BRIAN JONES (2019)

Quando se fala sobre a vida de uma estrela (do rock, no caso), é preciso lidar com duas possibilidades: pesar mais no fato ou na lenda. Este documentário na Amazon Prime escolhe o primeiro caminho,  mas não lhe teria feito mal se tivesse equilibrado o jornalismo de investigação com um pouco de imaginação. De qualquer forma, é uma investigação bem contada, tanto que quase esquecemos que, por questão de direitos, não se ouve uma única música dos Rolling Stones.

THE JUNIPER TREE (1990)

Um belíssimo filme com uma Björk muito jovem. Livremente inspirado num conto macabríssimo dos irmãos Grimm, deixa-nos a pensar sobre como o Cinema tem, para o ambiente e o folclore, um lugar muito maior do que o Terror.

THE FOG (1980)

A mãe solteira que ama o seu menino acima de todas as coisas, a pequena cidade no litoral perturbada por uma ameaça extraordinária, as personagens que precisam sair das suas "ilhas" e comunicarem umas com as outras para poderem sobreviver: descontados o fascínio pelo sobrenatural e pela morte, é curioso como este filme de John Carpenter está tão próximo dos temas e motivos do Steven Spielberg da mesma época.

ONIBABA (1964)

Telúrico, sensual, elementar e assustador. "Onibaba" é um filme construído com sensações, mas com a moralidade a persegui-las de perto. Nem vinte anos tinham passado sobre as bombas em Hiroshima e Nagasaki e a catástrofe de Minamata tinha sido pouco antes. Isso talvez explique porque pareça sempre pender sobre ele a interrogação sobre o que faz de nós humanos, principalmente num lugar em que a violência e a crueldade extremas parecem ter um lugar reservado de relativização. Uma poderosa experiência de Cinema.

SERIAL MOM (1994)

Sempre que quero passar hora e meia a rir, vejo um filme do John Waters. A característica mais fascinante do realizador é a forma como, mesmo já longe da sua raiz "underground", ele mantém a sua acidez e predisposição para expor e ridicularizar a sociedade estadunidense pelas suas hipocrisias burguesas. Aqui, Kathleen Turner interpreta uma dona de casa que se torna "serial killer" de forma tão tranquila que até surpreende como isso não acontece mais vezes. Ou será que acontece?...

THE 13TH WARRIOR (1999)

Antonio Banderas interpreta um árabe que é "adotado" por um grupo de vikings e levado para batalhas em países do Norte distante. Por baixo desta manta de retalhos, esconde-se um filme de guerra que foi um fracasso de bilheteira, mas que hoje se vê relativamente bem, principalmente pelo espetáculo da grandeza de produção pré-CGI.

THE HAUNTING (1963)

É incrível o quão prolífica foi a carreira de Robert Wise e como ele se movimentava tão bem entre géneros. Entre a realização dos eternos musicais "West Side Story" e "The Sound of Music", ele fez este filme a preto e branco, com tão poucas personagens e cenários que poderia ser uma peça de teatro. O que torna "The Haunting" uma das obras fundamentais do terror psicológico tem muito a ver com a sua atriz principal, Julie Harris, a interpretar uma protagonista que é talvez das mais fascinantes que o Cinema viu: uma mulher de meia idade cheia de invejinhas e irritações e frustrada com a sua vida banal. É uma personagem tão pequena que é grandiosa na sua pequenez — e como ela cresce aos nossos olhos, e como toda a dor da sua vida comezinha aflora ao longo do filme! Por entre o estilo eminentemente clássico de Wise rompem os ecos da modernidade subjetiva que logo viria. Um filme fascinante.

INDIANA JONES AND THE LAST CRUSADE (1989)

Porque a morte de Sean Connery me deixou melancólico e porque o "tatarata" do tema do Indiana Jones sempre dá aquele calorzinho na alma.

ALTERED STATES (1980)

Filme do Ken Russell, esse grande cineasta dos excessos da década de 70. Foi o primeiro papel de William Hurt no cinema, e cai-lhe como uma luva a personagem de um professor universitário que se submete a experiências com alucinógenos em busca de uma conexão primordial entre espírito, mente e corpo. Uma mistura de ficção científica com misticismo "new age" e a boa e velha viagem psicotrópica. Muito divertido.

THE PARTY (1968)

A minha memória tem uns caprichos curiosos, e às vezes ela retém pormenores banais sem qualquer razão aparente. Por exemplo, lembro-me perfeitamente de ter visto a cena final deste filme numa sessão da tarde da televisão portuguesa. Nunca mais me esqueci, apesar de ela estar muito longe de ser a mais memorável dele. Blake Edwards era um cineasta extremamente elegante e aqui ele conseguiu juntar o humor físico de Jacques Tati, a crítica à futilidade da burguesia de Buñuel e o maravilhoso excesso visual de Fellini. O "brown face" de Peter Sellers ainda será controverso hoje em dia, mas há um aspecto que não pode ser desconsiderado: o seu indiano Hrundi V. Bakshi é a personagem mais simpática de todas e é com ela que o público acaba por se identificar, caindo o peso da sátira sobre todas as demais. Isto terá que contar para alguma coisa.

RAMY S02 (2020)

A forma como explico "Ramy" rapidamente para quem não a conhece é «uma espécie de "Master of None", mas em que a personagem principal é um jovem muçulmano». Sendo uma definição rápida, é também insuficiente, mas continuo a defendê-la. A busca pela identidade em "Master of None" passa pela posição do filho de imigrantes e pela experiência moderna do amor, tal como aqui. Porém, Ramy complica a equação juntando-lhe o questionamento permanente sobre a religião e o encontro com o sagrado. Tenho ainda um prazer especial: os episódios isolados centrados na personagem da mãe, interpretada pela maravilhosa Hiam Abbass.

BILL AND TED'S BOGUS JOURNEY (1991)

Ser divertido já não é pouco, mas acho que os filmes da franquia "Bill and Ted" têm um encanto especial porque, como os seus protagonistas, eles aparentam ser bem mais burros do que realmente são. De qualquer forma, se só quiserem ver uma comédia para rir um pouco, as citações de Bergman não vos vão distrair.

THE THIRD DAY (2020)

Esta série intrigou-me mais do que me fascinou. Ainda assim, intrigou-me tanto que a vi até ao fim, o que é mais do que se pode dizer sobre muita coisa. Apreciadores de "folk horror" vão ter interesse especial.

LA 92 (2017)

Documentário monumental sobre os motins em Los Angeles que se seguiram ao julgamento dos polícias que espancaram Rodney King. Composto só por material gravado e transmitido na época, o seu gigantesco trabalho de pesquisa mostra como as tensões sociais e a desigualdade são barris de pólvora sempre prestes a explodir. Depois de 2020, vê-lo é obrigatório.

SOCIETY (1989)

O filho adotado de uma família rica sofre de alucinações psicóticas e, das duas, uma: ou está tudo normal ou os seus pais e irmã entregam-se a orgias incestuosas e satânicas. "Body horror" trash com jeito de luta de classes: como não gostar?

YOU'VE BEEN TRUMPED TOO (2016)

Depois que obtivemos o resultado das eleições nos EUA, encontrei na Amazon Prime este documentário que conta como, para fazer o seu campo de golfe na Escócia, Trump e filho cortaram o acesso à água duma senhora de 90 anos e nunca mais o repuseram. Mostra aquilo que já todos sabíamos: que a nação mais poderosa do mundo, durante quatro anos, foi comandada por escória.

ON THE ROCKS (2020)

O novo da Sofia Coppola começa morno, tentando encontrar-se num território geográfico e narrativo próximo do de Woody Allen. Porém, quando Bill Murray entra, o filme transfigura-se. Não é apenas por ele ser um grande ator, mas por principalmente por ser uma criatura do Cinema, uma espécie de património performático ambulante que chega para reclamar o seu território. Mais do que um filme com Bill Murray, este é um filme do Bill Murray.

THE FUGITIVE (1993)

Revi-o um dia destes para desanuviar a cabeça. É a prova cabal de que, para ser comercial, um filme não precisa sacrificar a caracterização das personagens ao espetáculo. Na verdade, "The Fugitive" é tão honesto nas suas intenções que as confessa abertamente quando Harrison Ford diz "I didn't kill my wife" e Tommy Lee Jones responde "I don't care". Certo, a razão narrativa é que ele é um agente íntegro empenhado em cumprir a missão que lhe é atribuída, mas o subtexto é claro: se ele dissesse "ora, meu caro, acredito em você, vamos lá então cuidar desse problema", não teríamos o fascinante jogo de gato e rato que procuramos neste thriller.

NERUDA (2016)

Gosto dos filmes do Pablo Larraín, mas neste parece-me que o realizador ficou no meio, e isso não ajudou. Esta mistura da linha narrativa do fato e da biografia de Neruda com a da imaginação e do simbolismo deixou-me meio perdido, sem saber em qual chão pisava e com a sensação de que teria sido melhor ir para um lugar ou para outro. Filme bonito, mas falhou o alvo.

THE QUEEN'S GAMBIT (2020)

Sempre se poderia criticar esta série dizendo-a previsível, mas isso seria uma patetice. A sua grande genialidade é a forma como, a partir da personagem, une dois géneros — a história de desporto, à falta de melhor termo (como "Rocky" ou "Karate Kid"), e a "coming of age". O caminho da vitória para Beth enquanto jogadora de xadrez encontra-se com o que a leva a tornar-se uma mulher adulta e independente, às vezes da forma mais crua possível. Mais do que ver, é uma série que se devora.

I KNOW THIS MUCH IS TRUE (2020)

Se algum dia estiverem a procurar um melodrama recente, e não se importarem com ele contrariar as tradições do género, tendo como protagonista um homem de classe média-baixa, vejam esta série da HBO. O primeiro episódio é tão triste, tão triste, que cheguei a levar as mãos à cabeça. Acabamos por recuperar do baque inicial e o Mark Ruffalo está incrível a interpretar dois irmãos gémeos, mas, meu deus, nem um raiozinho de sol de vez em quando...

BORAT SUBSEQUENT MOVIEFILM (2020)

O novo Borat tem um final amarradíssimo, arma uma cilada monumental para o Rudy Giuliani e tenta ir além da caricatura dos seus "alvos" (por exemplo, os sujeitos que recebem Borat na sua casa são, ao mesmo tempo, teóricos da conspiração e defensores dos direitos das mulheres), mas a direção mais limpa não tem aquela tensão suja e caótica da do Larry Charles no primeiro filme. Além disso, quando o primeiro Borat saiu, estávamos no segundo mandato do George W. Bush e os absurdos nacionalistas e racistas dos EUA pareciam nunca terem sido explorados em humor daquela forma tão crua. O impacto então foi muito forte, mas, na era Trump, não só o radicalismo tomou o poder como é pauta diária e constante de todo o humor que se faz no mundo, incluindo a série "Who Is America?" do próprio Sacha Baron Cohen. O que antes era "cringe" agora é banal.

QUINCY (2018)

É um documentário realizado pela Rashida Jones, filha do músico, e dá tudo o que se poderia esperar dele: um acesso fenomenal, com cenas que outra pessoa não teria conseguido filmar, e também o tom hagiográfico de quem prefere mostrar o Quincy heróico ao Quincy controverso. Altamente recomendável para fãs do artista, de jazz e de música negra no geral.

THE HAUNTING OF BLY MANOR (2020)

Sobre terror, tenho um lema: se não me assustar, que me fascine; se não me fascinar, que me assuste; se não me fascinar nem me assustar, que me entretenha. Esta série cumpriu a última opção, ainda que, a dado momento, tenha parecido que começou a complicar sem necessidade aquilo que parecia simples.

LAZZARO FELICE (2018)

Será o filme mais bonito na Netflix? A momentos, lembrou-me o "Dom za vesanje" ("Vida Cigana" em BR, "O Tempo dos Ciganos" em PT) do Kusturika, mas, acima de tudo, fez-me pensar como o final da década de 2010 foi pródigo em filmes sobre os excluídos do capitalismo e como vários destes ("Bacurau", "Martin Eden") configuraram uma espécie de género próprio. Proponho até um nome: "neorrealismo mágico".

LARS AND THE REAL GIRL (2007)

Mais de dez anos depois, revi e confirmei aquilo que o torna um filme extraordinário. Não é só por mostrar que o Ryan Gosling é um ótimo ator, capaz de papéis memoráveis mesmo quando não faz um galã. É também por ser talvez o único filme que assumidamente dessexualiza a fetichização, mostrando-a como uma ferramenta que religa a pessoa ao mundo e permite que ela intervenha sobre ele e o reordene.