agosto 2020

Archive for agosto 2020

SALEM'S LOT (1979)

As histórias de Stephen King têm uma coisa bem "pé no chão", com o terror a aparecer num cenário realista e povoado pelas vontades e desejos das suas personagens. Nos livros, funciona muito bem, mas, como Kubrick bem sabia, é uma armadilha para as adaptações para audiovisual. Se se força a mão para um lado ou para o outro, acaba-se com uma obra incoerente e que não convence. Tobe Hooper não deixou que isso acontecesse nesta minissérie de culto e ainda teve a astúcia de citar Murnau e Hitchock, mas sempre sobra uma sensação de que, em audiovisual, o King bom é o King traído.

BORAT (2006)

Não me perguntem porquê, mas a primeira vez que vi "Borat" foi em Lisboa, numa projeção para comediantes e VIPs numa pequena sala da Castello Lopes. Eu não era comediante nem VIP, mas consegui um convite para ver essa pequena maravilha que insultou pessoas da América à Ásia Central. Nunca o tinha revisto além de umas cenas isoladas, mas hoje apeteceu-me uma comédia boa para soltar umas gargalhadas, e não estou a gostar muito das que me têm aparecido. Se tiverem sugestões, aceito!

TROLL 2 (1990) e BEST WORST MOVIE (2009)

No texto anterior, falei do Cinema enquanto encontro, e é precisamente isso que nos aparece aqui. "Troll 2" tem uma nota historicamente baixa no IMDB e isso resgatou-o da lata de lixo da História, onde estava junto com as tranqueiras que enchiam os catálogos de locadoras de vídeo, levando-o ao estatuto de culto. Como disse um crítico, o filme é mais estranho do que ruim. Nele não vemos um grupo unido de gente desajustada e divertida, como nos filmes de John Waters, nem somos constantemente assaltados pelo pensamento "como é possível que este somatório de sem-sentido exista e que eu o esteja a ver?", como em "The Room" (2003). "Troll 2" é um filme com atores muito desconfortáveis que interpretam cenas bizarras e dizem falas bem artificiais, mas ele tem uma história. É esse somatório de convenção com estranheza e ultraje que o levou a criar um público cativo, que o visita enquanto evento e que torna o documentário muito interessante enquanto documento de cinefilia. Acho que o essencial é: um filme verdadeiramente mau é o que não tem coerência estética, e "Troll 2" não sofre disso.

DIVINE TRASH (1998) e I AM DIVINE (2013)

O primeiro documentário conta como foi o início da carreira de John  Waters, com foco especial em "Pink Flamingos" (1972) e inclui imagens de "making of" inéditas até então. O segundo fala sobre a vida e carreira de Divine, incluindo o detalhe tristíssimo de ter morrido na véspera do trabalho que o levaria definitivamente para o mundo do entretenimento "mainstream". Estão disponíveis no Youtube, são uma delícia e mostram como a obra de John Waters funciona por convocar, não só o deboche (da moral, dos costumes, do Cinema, de si própria), mas também o encontro tanto de quem faz como de quem assiste.

CHEWING GUM (2015)

A primeira série de Michaela Coel não tem o "pathos" de "I May Destroy You" (2020), mas é das sitcoms mais engraçadas que vi nos últimos tempos. É inspirada na sua juventude num bairro de habitação social em Londres, e a ideia de comunidade — aqueles que nos rodeiam, quer queiramos quer não, para o melhor e para o pior — domina a história desta miúda evangélica que só quer amor e perder a virgindade. Divertidíssima.

VILLAGE OF THE DAMNED (1960)

Não sei se será por causa deste ano estranho, mas estou com pouquíssima paciência para coisas longas. Se, em 77 minutos, consigo ver um clássico da ficção científica com ecos metafóricos do nazismo e da Guerra Fria, tanto melhor!

THE PUTIN INTERVIEWS (2017)

Só quando vi que apareceram legendadas no canal do Nocaute no Youtube é que percebi que ainda não as tinha visto. Três anos depois, o mundo já parece um pouquinho diferente, mas Putin continua no poder, e parece que lá ficará por muito mais tempo. Enquanto entrevistador, Oliver Stone não entra em confronto, mas também não faz grandes deferências, principalmente no último episódio, gravado em pleno burburinho de "interferência russa é que elegeu Trump". Já vi por aí quem usasse este documentário para basear tanto a celebração gloriosa quanto a condenação irredimível de Putin e/ou de Stone. Porém, acho que a lição que fica no final é outra, mais profunda, não particularmente original: a política faz-se de narrativas, e Putin recusa que só valham as dos outros. É um alerta válido para qualquer pessoa que se pense enquanto cidadão participante de sociedades políticas. Um documento importantíssimo para entender um dos mais obscuros e importantes líderes mundiais do século XXI.

THE GREAT DEBATERS (2007)

O segundo filme realizado por Denzel Washington ainda não teve a grandeza de "Fences" (2016) e caiu em alguns clichês, mas já o confirma como cineasta elegante e totalmente concentrado nos seus atores, que aproveita a história sobre uma equipe negra de debates universitários para encenar monólogos fortes e emocionantes. Bom para aqueles dias em que nos apetece ver nada mais do que uma história inspiradora com final feliz.

ER IST WIEDER DA (2015)

Se Hitler voltasse dos mortos hoje, o que ele seria? Uma piada? Um fracasso? Ou nenhum dos anteriores? Este filme, que mistura ficção e "mockumentary" à "Borat" já tem 5 anos, mas parece cada vez mais atual. Começa como sátira da cultura televisiva e do ambiente político da Europa e acaba como prenúncio dos fantasmas macabros que, ao que parece, nos voltam a atormentar na viragem para a terceira década do século XXI. Não consigo dizer se ele é mais engraçado ou tenebroso.

MID90S e EIGHTH GRADE (2018)

Em 2018, a produtora A24 lançou estes dois filmes sobre adolescentes escritos e realizados por comediantes ("Mid90s" é do Jonah Hill e "Eighth Grade" do Bo Burnham). Nenhum deles é uma comédia e eles são bem diferentes entre si. 

"Mid90s" é assumidamente inspirado em "Kids" (Harmony Korine até faz um "cameo"), filmado em 16mm e conta a história de um menino que descobre o skate para se refugiar da sua família disfuncional. 

Já "Eighth Grade" segue uma menina perdida num mundo de redes sociais e youtubers, popularidade, ansiedade e exigência. 

"Mid90s" é enternecedor, melancólico e representa na perfeição toda a "angst" adolescente dos anos 90. "Eighth Grade" é engraçado, angustiante e prodigioso por nunca desviar a sua atenção da protagonista e da sua aprendizagem dos rituais da idade adulta. 

Ambos são ótimos.

O gigante e o anão

Bolsonaro realmente confundiu um anão com uma criança em Sergipe?

Talvez sim, talvez não. Porém, o vídeo que viralizou hoje mostra um lado de Bolsonaro que me parece muito pouco considerado na análise política e que, ao mesmo tempo, é importantíssimo para a sua popularidade. Considerar seriamente Bolsonaro implica reconhecer que, sim, ele é engraçado.

Ele é o presidente que levanta anões, que é bicado por emas enquanto doente de Covid-19 e depois lhes oferece cloroquina, que, lendo um autógrafo de Sergio Moro, exclama "Lula livre?!" para debochar do ministro.

Este é um pilar fundamental da construção da sua imagem pública: fazer dele um "tio de churrasco", uma figura jocosa, mas com quem qualquer brasileiro tem familiaridade. Como impor a culpa pela destruição da Amazônia ou pelas mortes do Covid-19 a alguém que nos faz rir?

Talvez isto faça parte de um fenómeno maior: o pessoal critica Bolsonaro por ser baixo clero e menospreza o seu populismo, mas não entende que populismo implica a construção do apelo popular. Bolsonaro não tem uma ideia de país, não tem nem um pingo de estadista no sangue e o seu grande objetivo é, como sempre parece ter sido, ocupar um cargo público para usufruir os benefícios inerentes. Mas não se confunda o governante inane com o candidato ativo. Como em 2016, ele já está em campanha, reavivando uma onda. 

Entretanto, o Brasil definha e recusa ver que a culpa do definhamento é da mesma pessoa que o faz rir. É assim que, todos os dias, um país com tudo para ser gigante se reduz à pequenez do seu presidente.

LOCKE (2013)

A personagem principal (o absolutamente magistral Tom Hardy, ator que só falhou nos seus papéis quando foi bom demais) é um homem que, um dia, cometeu um erro e que passa uma viagem de carro de 1h30 a fazer telefonemas para impedir que a sua vida caia em derrocada por completo. Há algumas coisas em filmes que imediatamente me despertam o interesse, e a proximidade ao teatro é uma delas. Adoro coincidências com o tempo diegético, poucas personagens e muitos monólogos, como em "Timecode" (2000), "Den skyldige" (2018) ou "Buried" (2010), e não escondo que aqui também me fascinou muito o processo; durante 6 noites, Tom Hardy interpretava o texto duas vezes na estrada enquanto os atores secundários (Olivia Colman, Andrew Scott, Tom Holland) lhe ligavam em tempo real. Ou seja, o filme foi filmado 12 vezes, o que talvez explique porque, sem sair da autoestrada, ele seja tão bonito. Muito, muito bom.

THE TIME MACHINE (1960)

Apesar da mensagem pacifista e do apelo à responsabilidade humana para não repetir as atrocidades do passado, a forma como mostra o cientista inglês a responsabilizar-se por liderar uma civilização "primitiva" no futuro, alumiando-a com a tocha do progresso, é bem um reflexo direto do colonialismo com inspiração positivista dos séculos passados. Além disso, fica-me a dúvida: se a máquina do tempo atravessa o tempo sem se movimentar, não seria de considerar que as pessoas à volta do cientista (que ele vê moverem-se muito depressa, como num "time-lapse") o veem, mas muito lentamente, como se fosse uma estátua?

ANGEL HEART (1987)

Um ano depois de "9½ Weeks", não seria de esperar um filme com Mickey Rourke que não tivesse uma cena de sexo. "Angel Heart" tem, e é memorável, mas o que impressiona é lembrar como Rourke era um ator delicado, com gestos e expressões quase pueris que dão à sua personagem uma vulnerabilidade marcante. De resto, confesso que o neo-noir não é o meu género preferido, principalmente quando a novidade que poderia trazer — no caso, o subtexto do satanismo — não parece concretizada por completo.

HAIRSPRAY (1988) e CRY-BABY (1990)

Os dois filmes de John Waters que foram adaptados para musicais abordam a cultura teen dos anos 50-60 bem ao jeitinho dele, com muito absurdo, alegria e iconoclastia, mas há uma diferença importante: enquanto "Cry-baby" vai abraçando a loucura devagarinho até uma grande apoteose final, "Hairspray" evita essa vertigem, talvez por tratar o tema bem sério da terrível segregação que se instalou em Baltimore, logo ali tão perto de Washington. .

JOHN ADAMS (2008)

Enquanto John Adams estava no Congresso Continental a tentar aprovar a Declaração de Independência, a sua esposa Abigail decidiu que ela e os filhos iriam vacinar-se contra a varíola. Naquele tempo, isso significava que o médico fazia um corte no braço da pessoa e, com um osso, inseria na ferida pus retirado das pústulas de um doente. Esperava-se que a pessoa vacinada tivesse, durante uns dias, uma variação ligeira da doença, que às vezes não era tão ligeira e podia levar à morte. Boa lição para estes nossos tempos de gente mimada.
(e também: sim, eu li Howard Zinn e entendo bem toda a hipocrisia nesta aventura de homens brancos protestantes; ao mesmo tempo, que rebeldia delirante e que projeto incrível que foram os EUA)

COFFY (1973)

O filme que lançou Pam Grier e uma influência admitida de Tarantino, que o usou como referência para o seu "Jackie Brown" (além, claro, de "Foxy Brown").  "Coffy" mostra-nos que a diferença entre uma atriz atraente e uma "sex symbol" é um papel marcante, e Grier não desperdiça a oportunidade. A forma como manipula as outras personagens com a sua sensualidade para consumar a sua vingança é semelhante à forma como manipula o espectador. Afinal, se Coffy sabe camuflar tão bem as suas reais intenções, será que não está a fazer o mesmo nos momentos em que nos parece ser sincera? Ela até pode tirar a roupa, mas nunca perde o controlo da situação, e isso atinge uma contradição fundamental do género da "blaxploitation": ao mesmo tempo que era gerado no seio de um sistema de produção dominado por homens brancos que criava personagens negras estereotipadas (hipersexualizadas, entregues a uma vida de crime, toxicodependentes, etc), também abordava temas que realmente interessavam ao público negro e, talvez até mais importante, criava heróis e heroínas negras com a capacidade de empoderarem o seu público.

POLYESTER (1981)

John Waters, o "Papa do trash" é um provocador nato. Sempre que vejo um filme dele, lembro-me de um conselho que uma colega de trabalho me deu uma vez: "se a gente não se divertir a fazer isto, ninguém se diverte a ver". Parece que Waters e os seus atores estão em permanente diversão quando montam estas cenas escandalosas, absurdas e cabotinas que parecem fazer com o espectador um pacto silencioso: "relaxem e divirtam-se, que foi o que a gente fez". Porém, também parece que, por trás disso tudo, está um cineasta que adora e conhece intimamente a sua arte. "Polyester" cita William Temple e Douglas Sirk e lembra-nos que a época em que estreou foi a mesma em que, do outro lado do Atlântico, um senhor chamado Pedro Almodóvar começava a fazer longas. .

Eu e as imagens

Sempre vi muitos filmes, sempre vi muitas séries. Quando era adolescente, gravava o "5 Noites, 5 Filmes" para ver no dia seguinte, depois dos trabalhos de casa. Tinha em casa uma estante cheia de VHS's, do chão até ao teto. No mesmo dia, descobria Alain Resnais e revia o Terminator 2. 

Acho que tudo começou quando a minha mãe me levou para ver "Rain Man" no cinema. Estávamos de férias e eu devia ter uns 9, 10 anos. A fila no salão dos bombeiros voluntários de Vila Praia de Âncora era gigantesca e, quando finalmente chegou a nossa vez, o rapaz do outro lado do vidro colocou um letreiro que dizia "lotação esgotada". Não gostei da sensação de querer ver alguma coisa e não conseguir. Às vezes, brinco a sério que estou sempre a tentar entrar no "Rain Man".

Tenho-me armado numa espécie de Roger Ebert da quarentena porque, durante o isolamento, é fácil cair em poços negros dentro e fora de nós. Políticos maus (em mais do que um sentido), gente burra, racismo em Portugal e no Brasil, as contas para pagar, muitos afazeres de trabalho, muitos afazeres do mestrado. Escrever sobre os filmes e séries que vejo à noite ajuda-me a desanuviar a cabeça e permite-me fazer uma espécie de inventário do visto e do pensado (como o meu amigo que colecionava os canhotos de todos os bilhetes de cinema). Gosto muito quando vocês leem, comentam, concordam ou discordam. O mais importante mesmo é curtir junto. Obrigado!

MARADONA BY KUSTURICA (2008)

No ano passado, a HBO deu-nos o excelente "Diego Maradona", que escarafuncha a história do jogador focando principalmente no seu período em Nápoles, mas, 11 anos antes, Emir Kusturica tinha dirigido este documentário mais interessado na personalidade combativa. O filme parece ser um sobrevivente: o realizador sérvio foi afetado pelas crises narcóticas e pelos humores de Maradona, que o fizeram faltar a algumas entrevistas, e ele teve que enchê-lo com animações, visitas a nightclubs temáticos e à Igreja Maradoniana, imagens de arquivo, o Manu Chao e até consigo próprio. É a inclusão do documentarista, à Michael Moore, que salva o documentário: Kusturica é interessante e reflexivo, encontra paralelismos entre a sua obra e aquilo que vê e o seu monólogo dá a coesão que o filme arriscava não ter. O realizador cita muito Borges, mas, revendo a esta distância, lembrou-me mais Ortega y Gasset e o  “yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo”. Ao contrário do filme da HBO, o que vemos aqui é o Maradona das suas circunstâncias, preso entre a lenda que é e os fantasmas que carrega, paradoxalmente tentando salvar o mundo à sua volta ao mesmo tempo que dele se esconde. Para terminar, deixo uma pergunta: estou a escrever isto ouvindo a música dos filmes de Kusturica, sim ou não?

THE AMITYVILLE HORROR (1979)

Uma joia da coroa da AIP do Samuel Z. Arkoff, inclui tudo o que parece tema do terror americano dos anos 70: casa assombrada, cristianismo, satanismo e possessão satânica, "slasher", família e crianças, a intervenção sobrenatural que leva à loucura, e por aí segue. Não me parece ter sobrevivido muito bem, principalmente por uma estética meio quadradona que o faz mais parecer um telefilme.

R (2010)

Tobias Lindolhm é um cineasta dinamarquês que já escreveu várias coisas que vocês provavelmente viram ("Borgen", "A Caça", "A Comunidade") e dirigiu outras que vocês ainda vão ver ("Krigen", "Kapringen"). "R" é o seu primeiro filme e o começo da sua colaboração com Pilou Asbæk, que hoje deve estar no pelotão de atores dinamarqueses mais reconhecíveis  logo atrás de Mads Mikkelsen. Não é difícil ver "R" e dizer algo como «um filme de prisão num lugar em que cada preso tem para si um quartinho melhor do que aqueles em que muita gente mora? Uau, deve ser muito difícil». Ironias à parte, o filme é uma análise bem pesada das hierarquias complexas que se criam dentro de uma prisão e termina com uma moral bem clara: por muito que nos imponhamos divisões e diferenças, no fundo somos todos réplicas uns dos outros.

MICHELLE WOLF: JOKE SHOW (2019)

O show da Ilana Glazer foi tão chatinho que achei que merecia algo melhor. Apostei que o especial da Michelle Wolf para o Netflix não me iria decepcionar, e ganhei a aposta. Foi até interessante ver os dois na sequência para perceber o porquê. Wolf fala exatamente sobre os mesmos temas que Glazer — menstruação, feminismo, sexualidade — e vai mais longe, abordando o cancelamento, o estupro e até o aborto que ela fez no passado. A diferença entre as duas comediantes consiste num ponto muito simples: em nenhum momento Glazer põe algo em causa. Ela é um dado adquirido e o mundo não é um problema complexo a ser resolvido, mas um simples pretexto para ela dar a sua opinião. Ora, o show de Wolf é exatamente o oposto. Ela e o mundo aparecem como lugares complexos, onde nada é adquirido e onde é possível fazer punchlines com frases como «as mulheres brancas são as vítimas mais privilegiadas» ou «quando fiz o meu aborto, senti-me poderosa». Como qualquer grande comediante, Wolf deixa-nos pensativos depois de passar 1 hora a fazer-nos sentir o perigo que as palavras podem conter.

STARSHIP TROOPERS (1997)

Se há alguém que se pode queixar de ter sido mal entendido, essa pessoa é Paul Verhoeven. Lembro-me bem de quando este filme estreou e de todas as acusações que o realizador ouviu: efeitos digitais maus e a mais, violência gratuita, elogio ao totalitarismo, e por aí adiante. A grande injustiça é que a ironia de Verhoeven não é tão difícil de compreender. A artificialidade dos efeitos, da história e das personagens e a forma como a nação, a ordem, o militarismo e o ódio ao inimigo são exaltados em excertos de noticiários (como ele já tinha feito em "Robocop") diz-nos outra coisa: «este filme é fascista porque ele faz parte de um sistema de imaginário — o cinema, a informação, as imagens que vocês veem — que é fascista». Torcemos pelos heróis de Verhoeven, porque queremos que o herói vença, mas, ao mesmo tempo, reconhecemos o absurdo do imperialismo militarista de que eles fazem parte porque o realizador deixa evidente que o meio audiovisual é um elemento fundamental para a construção desse imperialismo. Verhoeven foi castigado por ter colocado o género e o espectador moralmente em causa, e isso não se lhe podia permitir.

ILANA GLAZER: THE PLANET IS BURNING (2020)

Gostava muito de "Broad City", principalmente das primeiras temporadas. Por isso, quando vi este especial de stand-up da Ilana Glazer no catálogo da Amazon Prime, não resisti, mas antes tivesse resistido. Glazer tem um grande problema que nunca consegue resolver (apesar de começar o "set" falando sobre ele): a distância entre a sua personagem na série e ela própria. O seu "delivery" do texto é preguiçoso, como se ela não tivesse conseguido dominar o tempo específico do stand-up, e, enquanto fala sobre menstruação e sexualidade, não diz nada de novo ou de particularmente engraçado. Além disso, o público não ajuda. Aquelas pessoas estão lá mais para ver Glazer, rainha dessa espécie em vias de extinção que é o hipster de Brooklyn, do que para ouvir o seu número. É só ela gritar «xana!» ou «gosto 60% de homens e 40% de mulheres» que toda a gente irrompe numa saraivada de aplausos e vivas. Muito, muito fraquinho.

THE HATER (2020)

Conhecido no Brasil como "Rede do Ódio", é um filme que vem a calhar para estes tempos de divisões e que mostra bem como as redes sociais — surgidas como promessa de uma comunicação sem obstáculos entre as pessoas — são espaços de manipulação e distorção com consequências terríveis no mundo. Uma espécie de "Nightcrawler" (2014) do mundo digital, não resiste a alguns clichês, mas é interessante na sua crítica ao jogo político, da esquerda caviar à direita nacionalista, e termina com uma moral curiosa: num mundo de imagens, quem se esconde é rei.

MA LOUTE (2016)

Foi-me recomendado este filme que o Bruno Dumont filmou entre Quinquin e Coincoin. Há algo em Dumont que me lembra o saudoso João César Monteiro: a capacidade subversiva de impor um ritmo lento, que intriga e faz com que nos surpreendamos ainda mais quando algum absurdo aparece. Pensamos outra e outra vez "peraí, eu vi mesmo aquilo que penso que vi?" enquanto Dumont nos vai atirando realismo mágico, canibalismo, uma aristocracia podre e incestuosa, referências cinéfilas (Laurel & Hardy, "O Atalante") e assassinatos mil. Como nas suas séries, a história é um pretexto que serve para nos presentear com tudo isso e que não precisa de um fim convencional. Divertidíssimo.

CAR WASH (1976)

Ao ver esta comédia de "blaxploitation" que passava em sessões da tarde na televisão, dei por mim a pensar em que momento é que nos perdemos de nós mesmos. O filme é bem simples: um dia numa lavadora de carros, acompanhando os empregados, o chefe e os clientes. Há uma prostituta, um ex-presidiário, um latino, um nativo americano, uma transsexual, um revolucionário negro e um universitário riquinho maoista. O patrão sai com a balconista às escondidas e queixa-se de ganhar pouco dinheiro. Enquanto o disco e o funk-soul passam na rádio, os empregados armam partidas uns aos outros e tentam animar as horas. Os pequenos dramas e comédias dessa gente passam à frente dos nossos olhos sem ironia, sem julgamento, num roteiro sem firulas escrito pelo — surpresa — Joel Schumacher. Por trás da sua aparência falsamente bobinha, "Car Wash" é um filme absolutamente real, feito por quem soube observar a vida e fazer comédia com isso. É melhor do que carregamentos inteiros de coisas que se produzem por aí até hoje.

THE WOMAN IN BLACK (1989)

Antes do filme de 2012 com Daniel Radcliffe, o romance de Susan Hill foi adaptado para um telefilme da ITV que, numa decisão histórica de programação, o transmitiu na noite do dia 24 de Dezembro, aterrorizando crianças e estragando o Natal das famílias do Reino Unido. Naturalmente, o orçamento foi menor do que o do seu irmão mais novo, e os efeitos especiais não são tão desenvolvidos, mas a austeridade fica-lhe bem: a história é enxuta, sem tempo para se distrair com acessórios, a construção da tensão é imaculada e diria mesmo que o paralelismo entre assombração e perda da sanidade é mais bem conseguido.

DELLAMORTE DELLAMORE (1994)

Este filme italiano, realizado por um colaborador de Dario Argento e com Rupert Everett no papel principal, adapta o romance do mesmo nome de Tiziano Sclavi, mas também se inspira livremente numa banda desenhada chamada "Dylan Dog", criada pelo mesmo Tiziano Sclavi e com um protagonista inspirado no próprio Rupert Everett. Começa parecendo uma comédia de terror à "The Evil Dead". Um pouco depois, parece que vamos afinal ver um "gothic horror" à Mario Bava... ou talvez um terror erótico à Jess Franco? Mas o erotismo dura pouco e retrocede para o que parece uma sátira política. Mais um pouco e estamos em plena "Night of the Living Dead", mas, no final, parece que o que vimos foi um thriller psicológico. Se isso vos faz pensar que talvez seja incoerente, desenganem-se. Sob a capa de série B "eurotrash", "Dellamorte Dellamore" é apenas um filme incrível.

SE TIL VENSTRE, DER ER EN SVENSKER (2003)

O mundo roda, as epidemias mudam e é fácil a gente esquecer-se como, em 2003, ser infetado com o HIV ainda parecia uma sentença de morte ou, pelo menos, de uma qualidade de vida muito inferior. Não que este filme Dogma faça disso uma tragédia à "Les Nuits Fauves", muito pelo contrário: é uma comédia romântica leve e humana, muito mais na linha de Lone Sherfig do que na de von Trier e Vinterberg. Seis anos depois de começar, o Dogma já não sobrevivia bem e levava a histórias, lugares e emoções que já pareciam vistas, mas o seu efeito "corretivo" no cinema dinamarquês e mundial era incontornável. O movimento esgotara-se, não porque morrera, mas porque fora absorvido.

BLACK SUNDAY (1960)

Há dias, falei sobre "Viy" (1967), o primeiro filme soviético de terror. Supostamente, "Black Sunday" (que se chamou "La Maschera del Demonio" na Itália e "The Mask of Satan" no Reino Unido) baseou-se no mesmo texto de Gogol. Sublinhe-se o "baseado", porque a única coisa que aproveitou da história original foi a volta à vida de uma bruxa. De qualquer forma, isso é o menos, porque Bava era um animal do cinema, um artesão que sabia fazer filmes com um esplendor clássico enquanto adicionava ideias visuais renovadoras que seriam imitadas até hoje. 60 anos depois, "Black Sunday" não tem momentos de monotonia nem parece ultrapassado. É, em todo o rigor da palavra, um clássico..

TIM AND ERIC'S BILLION DOLLAR MOVIE (2012)

Tem Zach Galifianakis, tem Will Ferrell, tem Will Forte. Foi escrito e realizado pelos próprios Eric Wareheim e Tim Heidecker, cujo programa no Adult Swim fizera deles "the next big thing" na comédia. Porém, o filme foi um fracasso de bilheteira e também não foi bem com a crítica. Vendo-o 6 anos depois da estreia, achei difícil rir, e fiquei algum tempo a pensar porquê. A comédia de Tim and Eric é extremamente elaborada, misturando absurdo com "cringe", piadas rápidas à ZAZ com pausas embaraçosas à The Office, escatologia e tecnologia lo-fi com o aroma lynchiano de atores como Robert Loggia e Ray Wise. O Wall Street Journal chamou a isto "wince comedy" ("comédia do estremecimento") e a sua influência é nítida até hoje: sem Tim and Eric, talvez não tivéssemos Eric Andre ou canais de comédia como o "SkyCorp Home Video", por exemplo. 

Então, por que este filme não parece dar muito certo? Há um aviso numa carta de W. H. Auden a Frank O'Hara que nunca me saiu da cabeça e que talvez sirva para explicar. Auden pede ao poeta mais jovem para «não confundir autênticas relações não-lógicas, que causam espanto, com as acidentais, que causam uma mera surpresa e, no final, cansaço». Os "non sequuntur" constantes de Tim and Eric — as relações acidentais que eles fabricam o tempo todo — funcionam bem em episódios de dez minutos, mas são cansativos quando estamos perante 1h30 deles. Talvez a lição que fica disto é que um filme deve manter pelo menos uma pontinha do pé no chão, no real, e construir-se a partir dela. De qualquer forma, há sempre fascínio em ver Ícaro queimar as asas.

TO ROME WITH LOVE (2012)

O Woody Allen repete-se bastante e tem uma propensão a cair nos maneirismos do seu estilo próprio. Acho que não se poderia esperar outra coisa de um realizador com 84 anos que, em média, faz um filme por ano. Porém, é curioso como os seu filmes menores parecem sempre deixar à mostra algum risco, algo que fascina mesmo que o conjunto da obra não seja o mais incrível. Lembro-me, por exemplo, do papel duplo de Radha Mitchell e da história bifurcada em "Melinda e Melinda". Aqui, ele levou a dispersão longe, com várias histórias independentes que, em comum, terão apenas o fato de acontecerem nas belíssimas ruas da cidade de Roma. Porém, as cenas na ópera e a história com Roberto Benigni lembram com agrado o Allen do início, mais comediante do que cineasta e pouco preocupado com a coesão narrativa. Além disso, é sempre um prazer ver os diálogos de Allen interpretados por atores dirigidos por Allen. Melhor ou pior, há sempre um lado celebratório no cinema dele, que ultimamente passa escondido por trás de toda a discussão pública sobre a sua pessoa.

SAMI BLOOD (2016)

Há muitos anos, cheguei a um artigo sobre os Sami que os definia como um "povo indígena europeu". Nunca tinha percebido que, na Europa continental, sempre tão centrada nos seus estados-nação, havia povos indígenas. Muitos conheceremos os Sami pelo nome "lapões", mas esse é o nome do colono, tão incorreto quanto chamar "esquimó" a um inuit ou "índio" a um nativo americano. Como a História do mundo é uma coleção de momentos em que pessoas fazem mal a outras, parece normal que os Sami vivam entre dois mundos, o seu e o dos invasores. Por isso, nada mais lógico do que fazer um filme "coming of age" sobre uma adolescente que, na encruzilhada entre a infância e a idade adulta, se vê dividida entre as suas raízes e o fascínio pelo que está além.

THE WALL (1982)

A gente às vezes é burra. Nunca me apeteceu ver "The Wall" porque pensava "eh pá, sim, Pink Floyd, e tal, mas Bob Geldof?". Porém, hoje arrisquei-me nos 160 minutos do musical do "Hamilton" e, depois de uma hora, não aguentava mais aquela direção nervosa de show de estádio. Então, desliguei, fui ver o que mais tinha na lista e lá estava o "The Wall". Dei o "play" e não demorei muito até perceber que era uma obra-prima. Em vez de uma narrativa convencional, prefere uma estrutura em quadros ligados por um enredo simples. O roteiro é do próprio Roger Waters, o que talvez explique porque aquilo que vemos não é uma mera ilustração das músicas do álbum dos Pink Floyd: filme e música iluminam-se um ao outro, como se não fosse possível que sobrevivessem sozinhos. Ri sozinho das pessoas que vão a shows do Roger Waters e se ofendem pelas suas mensagens políticas. Certamente, elas não viram este filme. Certamente, elas não viram um monte de coisas. Por ter feito isto dentro do sistema do cinema comercial, o Alan Parker é um herói. E, sim, o Bob Geldof está incrível.

THE COMMITMENTS (1991)

A forma como o falecido Alan Parker sempre tinha um pezinho no realismo social lembrou-me os tempos em que terras irlandesas e britânicas, do cinema ao telejornal, me pareciam ser lugares duros, frios e pobres. Apesar disso, é uma história extremamente divertida e capta bem aquele misto de entusiasmo e caos que qualquer pessoa que já começou uma banda conhece bem.

THE NIGHTINGALE (2018)

Acho Jennifer Kent uma diretora muito interessante. Lembro-me de o seu curta "Monster" ter sido um dos mais fascinantes do festival Imago de 2006, e surpreendeu-me muito a forma como ela o desenvolveu para fazer "Babadook" (2014), certamente um dos melhores filme de terror da década. Se "Babadook" desenvolvia o tema da maternidade enquanto conquista (o monstro parecia ser uma metáfora clara da depressão pós-parto), "The Nightingale" mostra-a enquanto luta moral no contexto mais geral da luta pela sobrevivência dos povos no mundo colonial. Um filme violentíssimo e muito belo.

SALT FAT ACID HEAT (2018)

A chef e colunista Samin Nosrat viaja pelo mundo para exemplificar como funcionam os quatro elementos que ela considera serem a chave da boa (e da má) cozinha. Se em "Cooked" o  mentor dela, Michael Pollan, oferecia uma visão histórica e antropológica da alimentação, Nosrat tem uma atitude bem mais "mãos na massa" (às vezes literalmente) e mostra uma paixão imensa pelo ingrediente, pelo sabor e por cozinhar. Didático e delicioso!

LE P'TIT QUINQUIN (2014) e COINCOIN ET LES Z'INHUMAINS (2018)

Há dias, conversava sobre o quanto as nossas expectativas e até estados emocionais momentâneos influem no apreço de um filme. Quando há uns anos vi "Le P'tit Quinquin", não me entusiasmou, mas ficou-me a sensação de que algo me escapava. Agora, ao ver "Coincoin et les Z'inhumains", percebi: não se deve ver estas séries tanto pelo que é representado quanto por deixarem a representação toda à mostra. Os atores amadores riem quando não devem rir, usam pontos para ouvirem as próximas falas (parte dos tiques de Bernard Pruvost, que interpreta o Comandante, tem essa razão) e às vezes são adoravelmente desastrados. 

Porém, essa realização plena do estranhamento brechtiano não significa que esta gente saia ridicularizada, muito pelo contrário. Esse recurso revela a comunidade de forma muito honrosa e simpática, e encontrar aquelas pessoas acaba por ser o grande gozo destas séries.  Gostei tanto disso na "Coincoin" que fui rever a "Quinquin" todinha!

STREET FOOD: LATIN AMERICA (2020)

Gosto muito de Chef's Table, mas os anos passaram e ela acabou ficando com a fórmula à vista e algo institucionalizada. "Street Food" é a sua irmã mais nova, mais informal e divertida. Na 2ª temporada, ela propõe-se descobrir a comida tradicional de seis cidades da América Latina e dá o protagonismo a mulheres fortes e admiráveis. E agora eu quero muito comer uma fugazzeta argentina!

VIY (1967)

Filmes de países que já não existem são como pequenas cápsulas do tempo, e o primeiro filme de terror da URSS não poderia deixar de ter uma justificação inicial fundada no povo (mesmo que o folclore reclamado por Gogol para a história original fosse uma verdadeira balela) e uma conclusão a condizer com o espírito da nação: "é preciso trabalhar". Enquanto obra de terror e fantasia, é terrivelmente convencional e ultrapassado, mesmo para os padrões da época: em 1967, o Japão já fizera "Jigoku" há 7 anos e "Onibaba" há 3, "Rosemary's Baby" viria no ano seguinte e a Checoslováquia dar-nos-ia essa maravilha chamada "Valerie a týden div"em 1970. O que prevalece é mesmo o interesse arqueológico e contemplar a belíssima técnica dos filmes soviéticos.