SPOILER: Chelovek s kinoapparatom (O Homem com uma Câmera, 1929)

1. Como um espectador moderno vê O Homem com uma Câmera? Todas as técnicas que ele fez revolucionárias são hoje corriqueiras. O seu objetivo confesso de fazer um cinema pelo cinema, sem roteiro, personagens ou intertítulos, dir-se-ia ultrapassado, porque, nalguns segmentos, ele venceu: se tantas bandas fizeram trilhas para este filme é porque principalmente os clipes musicais acabaram absorvendo a sua estética.

2. Digo estética, porque é uma batalha estética que ele trava, e uma específica do cinema. Filma-se e mostra-se o espaço, mas a matéria que realmente se trabalha é a do tempo real através do tempo diegético. Sim, porque há diegese aqui, apesar de Vertov reclamar que quer uma linguagem pura independente da literatura e do teatro e blá blá blá. Há um prelúdio numa sala de cinema, começamos de manhã, vamos até à noite. Do que ele tanto se queixa? Não ter drama não significa que não haja um início, meio e fim.

3. É um filme que, como The Greatest Movie Ever Sold, de Morgan Spurlock, é making of de si mesmo: o homem da câmera filma, mas também é filmado. Não é só cinema puro, é também cinema exibicionista. Acho que o mesmo pensamento gerou muito filme presunçoso ao longo dos anos, mas desculpa-se em 1929.

4. Ainda não havia câmeras de vigilância nesta época (apesar de Metropolis já as ter imaginado). De qualquer forma, é um dos conceitos inerentes do filme e é bem atual: o Homem e sua Câmera tudo captam, tudo registram. Nós não podemos presenciar toda a vida que existe, mas podemos iludir-nos que a presenciamos olhando a sua imagem. João Lopes falava sobre isto a propósito do stunt de Godard fazendo FaceTime com os jornalistas no último festival de Cannes - Godard, o mesmo que começou Le Mépris mostrando as câmeras que o filmam e nomeando o elenco e a equipe quase como se fizesse uma denúncia.
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5. Nunca gostei da expressão "a cidade é personagem", então não a vou dizer; mas a cidade e as vidas que nela acontecem, com os seus contrastes de tempo, movimento e respiração, é o material bruto trabalhado aqui. E é trabalhado todinho na sala de edição, que nos leva, em rápida sucessão, de um casamento a um funeral a um parto a um acidente, e assim por diante. Para ser exato, o filme dever-se-ia chamar "O Homem com uma Câmera e Também o Outro Homem com uma Tesoura".

6. Este filme, com o seu fascínio por pistões e motores, marca, ainda mais do que Metropolis, a concretização no cinema do Manifesto Futurista de Marinetti, escrito exatos 20 anos antes.

7. De vez em quando, vem um cheirinho de Riefenstahl, com corpos gloriosos fazendo esporte, retratos de Lenine e bustos de Marx, clubes proletários e outras propagandas. Pergunto-me se será para ajudar a engolir o comprimido de um filme de estilo nada realista-socialista. Imagino Daniil Kharms, que por este ano estava no seu período de maior sucesso, saindo de uma sessão do filme e chamando Vertov de medrosinho. A coisa não acabaria bem para nenhum deles.

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  1. […] terminar, duas curiosidades: O diretor de fotografia, Boris Kaufmann, era irmão de Dziga Vertov. E parece-me que ele, Jean Vigo ou ambos gostavam de pôr os atores a subir […]

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