novembro 2015

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O dia

Tinha reunião de manhã, acordei com um resfriado surpresa. Lá fora, enquanto comprava cigarros no boteco da esquina, percebi que não tinha o cartão do banco na bolsa. Paguei com dinheiro, voltei para o apartamento. Revirei coisas, não o encontrei. Fiz contas ao dinheiro que tinha, planejei só cancelar o cartão no dia seguinte se não o encontrasse à noite. Saí de novo. Passei pela farmácia, comprei paracetamol e gotas para o nariz. No caminho, uma montanha de pessoas por baixo do Minhocão, perto do Hirota. Expressões entre curiosas e consternadas. Um ônibus do lado, parado no corredor. Acidente? Talvez, se fosse avaria elas caminhariam até ao ponto seguinte para pegar outro ônibus, estava perto. Tentei olhar, mas tinha hora e a multidão era muita, não vi nada. Tive reunião, os olhos resfriados piscando. Fiz contas de novo, com o dinheiro vivo que tinha dava para almoçar e ainda conseguia esticar para o dia seguinte. Almocei. Disseram-me que morreu alguém por baixo do Minhocão, um homem, um ônibus. Pensei que passei pelo ônibus, pelas pessoas, pelo corpo que não consegui ver. O resfriado, os olhos piscando, o mau humor de sempre. Resfriado é a minha TPM. Voltei para casa ao fim da tarde, mais cedo do que o normal. No Minhocão já não havia pessoas, não havia corpo, a vida imparável doía. Um casal saiu da loja chinesa com a filha pequena, ela trazia um brinquedo brilhante na mão. Entrei em casa, o meu cartão estava caído ao lado do sofá. Os olhos piscando, lembrando: estás resfriado, estás vivo, estás resfriado, estás vivo, estás resfriado, estás vivo.

18 conclusões sobre Paris

1. Há quem insista em lembrar que mortes em Paris não valem mais do que mortes no Brasil. Quem insiste tem razão.

2. Há quem lembre que as mortes que todos os dias acontecem no Médio Oriente não valem menos do que as de Paris. Essas pessoas também têm razão.

3. A segunda parte desse raciocínio é que as mortes de Paris também não valem menos do que as do Brasil ou as da Síria.

4. Este atentado foi uma intervenção planeada e executada por uma organização político-militar que controla uma área maior que a Grã-Bretanha com um exército de milhares de soldados.

5. As mortes de civis na Síria são crimes de guerra. Este atentado não, pois não se lhe aplica a Convenção de Genebra.

6. Este atentado foi uma peça de teatro de terror, que começou com explosões durante um jogo que estava a ser visto por todo o mundo e terminou com o Estado Islâmico a gabar-se do seu ataque à "festa da perversidade" que era um show de rock e pessoas saírem à noite.

7. Estes psicopatas são bullys e nada mais do que isso. A civilização que estes proclamam defender é só eles mesmos e a sua leitura distorcida dos preceitos do Corão.

8. Quem do outro lado insistir que esta é uma guerra civilizacional só está a defender a si mesmo e à sua xenofobia. Esta é uma guerra contra um bando de bullys.

9. As 2as gerações de imigrantes sempre sentiram que não pertenciam a lugar nenhum e os países europeus não souberam lidar com isso. Os atentados são uma ampliação monstruosa dos carros quebrados no centro de Paris que se vêem há uns 20 anos.

10. Quem achar que em Portugal está tudo bem porque somos ótimos a integrar imigrantes deveria pensar na Cova da Moura ou do que aconteceu na Quinta da Fonte em 2008.

11. O passaporte sírio de um dos terroristas é provavelmente um truque do Estado Islâmico para acirrar os ânimos contra os refugiados e aumentar o seu poder de recrutamento no seio destes.

12. A guerra na Síria é um quebra-cabeças diplomático que o eixo EUA-Europa deixou andar até as consequências lhes baterem à porta.

13. Os refugiados que entram na Europa estão a fugir das mesmas pessoas que fizeram isto em Paris.

14. Acolher os refugiados é importante e a única solução humana possível.

15. Acolher os refugiados é tratar um sintoma, não curar a doença. A doença é a guerra na Síria.

16. A causa da doença é a manipulação eterna das políticas no Médio Oriente segundo os interesses do eixo EUA-Europa.

17. Eu tenho parentes e amigos em Paris. Temi por eles. E eu não gosto de temer que parentes e amigos sofram as consequências de um atentado terrorista.

18. A 2a Guerra Mundial também foi feita contra bullys. Os Aliados ganharam-na com maior força bélica, com melhor estratégia, com melhor diplomacia e com melhor espionagem. E essa, parece-me, é a forma de ganhar esta guerra.

Por mim, a TAP pode ir à vontade

Aqui vai a minha primeira queixa do Governo de esquerda em Portugal: eu não faria o mínimo esforço para impedir a privatização da TAP. Não conheço mais nenhuma companhia aérea estatal, não vejo a necessidade de uma companhia aérea ser estatal e não entendo porque a TAP tem que ser estatal. A ligação ao setor público não implica que os preços dos bilhetes sejam menores, não implica que o serviço seja melhor ou pior do que o de outras companhias e só serve para carregar o Estado com os prejuízos de um setor muito volátil às flutuações do mercado e que nem de longe se pode considerar transporte público. O que nunca deveria ter sido privatizado era a EDP, os serviços de saúde, as estradas. Agora, a TAP? Porquê?

Porque eu sou por um governo de esquerda

O meu avô ensinou-me a não confiar em políticos e, ao longo da minha vida, os políticos não fizeram grande coisa para me fazer mudar de ideias. Quero dizer, não à partida. Há três coisas de que gosto num político: ter princípios, não ter medo e saber-se mexer. Se me convencem disso, ótimo, e há muito tempo que não me convencem. Apesar disso, eu vejo com bons olhos a possibilidade deste governo de esquerda. Confio que governar acompanhado vai frear aquele impulsozinho chato do PS no poder de distribuir alegremente cargos e dinheiros aos amigos próximos. Quanto ao medo dos comunistas, só posso dizer que por uma vez sinto-me feliz por ter nascido depois do PREC e não ter esses fantasmas a pesarem-me nos ombros. Não acho que o PCP tenha maior capacidade de me decepcionar do que outro partido qualquer. De qualquer forma, nunca achei que comunistas fossem gente sem palavra - nem vi ninguém dizê-lo -, portanto, o respeito à Europa, até prova em contrário, está seguro, certo? Quanto ao resto, há uma frase de Camus que copio sem reservas: "sou de esquerda, apesar de mim e apesar da esquerda". Por favor, então, senhor Cavaco, com quem tenho uma bela história em comum, dê-me a satisfação imeeeeeensa de vê-lo acabar a sua presidência e a sua carreira política a mandatar um Governo de coligação de esquerda, ok?

Tudo igual

O povo queixa-se do governo, a alternativa ao governo é contestada, a sociedade está polarizada e há acusações mútuas demonizando o lado oposto. Portugal e Brasil estão iguais.

Estudioso

O meu último texto neste site é de Janeiro. E isso tem uma razão. Este ano, passei 122 dias em estúdio. Gravei quatro novas temporadas (e meia) de quatro programas. Passaram-me pelas mãos centenas de fichas de candidatos a participantes de reality show. Escrevi páginas e páginas de roteiro, horas e horas de televisão. Dezenas de pessoas choraram na minha frente enquanto as entrevistava. Terça feira será previsivelmente o meu último dia de gravação em 2015. Confesso que estou um pouco cansado. E também confesso que não trocaria isto por nada.