janeiro 2015

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Sobre American Horror Story (aviso: contém spoilers)

A quarta temporada de American Horror Story terminou e só serviu para me confundir mais em relação à série. De todas as que sigo, é a que me deixa mais indeciso quando alguém me pergunta "Gostas?".

Os criadores e showrunners são o Ryan Murphy e o Brad Falchuk, autores do Glee.

O piloto da série era confuso e com um ritmo nervoso que não favorecia a série em nada. Foi dirigido pelo próprio Murphy, e ainda bem que depois vieram outros diretores e, quem sabe, outros roteiristas, com visões que acrescentaram valor à original.

A série ganhou mais suspense e menos choque, mais gestão da tensão e menos explosões de adrenalina, mais atenção ao subtexto (uma família disfuncional) e menos ao "supertexto" (uma casa assombrada).

A primeira temporada terminou ok, e a segunda, no manicômio, foi a melhor de todas, com um ambiente tensíssimo, uma curva muito bem amarrada e a clarificação de um dos elementos que mais me divertiu na série: um delírio sobre as convenções do gênero, misturando serial killers, médicos doentios, nazis, zumbis, et's e possessão satânica numa única história.

Quando a segunda temporada terminou, tinha AHS lá no alto. Mas, com a terceira, tudo se desmoronou.

Ela começou como a jornada de uma menina, uma "coming of age story".

Depois, a Jessica Lange, e a sua batalha com Angela Basset, tomou a dianteira.

Mas aí aconteceu a disputa entre as bruxas novinhas sobre quem viria a ser a nova bruxa mega master blaster, e as personagens principais começaram a matar-se e a voltar à vida e a morrer outra vez a tal velocidade que eu deixei de me importar. Queria mesmo era que aquilo acabasse o mais depressa possível.

No meio daquela salganhada, tudo podia acontecer. E não de um modo entusiasmante, como aconteceu na s02 de Twin Peaks antes de sabermos quem matara Laura Palmer, mas como aconteceu depois de sabermos, ou seja, um sentimento de "qualquer coisa pode tanto acontecer que me estou a cagar para o que acontece".

Para mim, o último episódio não foi uma conclusão. Foi uma eutanásia.

Esperei a quarta temporada com curiosidade. Ela seria a que viria clarificar todas as minhas opiniões, facilitar a minha decisão e juízo sobre a AHS. Mas não foi isso que aconteceu.

Ela começou bem. Apesar de ter dado muito foco nas gêmeas siamesas no primeiro episódio (parecia que ia ser a história da relação entre elas e a Jessica Lange), isso acabou por se perder. Como acabámos por entrar num coletivo, com mais personagens boas e fortes, acabei por não dar muita importância, mas isso começa a parecer um traço do AHS: entrar no universo e abstrair-se de uma linha principal.

Ou seja, como se os criadores estivessem a insistir no que foi o erro da terceira temporada para transformá-lo em marca estilística, com a correção de expandirem o universo e não fecharem simplesmente as personagens dentro de um casarão a matarem-se umas às outras.

Houve coisas ótimas.

Ambientar o freak show nos anos 50, em puro conflito com o mainstream americano de classe média suburbial.

Os pseudo clips de músicas que só apareceram depois do período de tempo retratado, como David Bowie ou Fiona Apple.

O igualmente atraente e repelente Dandy, que deu à série o melhor monólogo que ela já teve:
This body is America. Strong, violent, and full of limitless potential. My arms will hold them down when they struggle. My legs will run them down when they flee. I will be the US steel of murder. My body holds a heart that cannot love. When Dora died she looked right into my eyes and I felt nothing. The clown was put on Earth to show me the way. To introduce me to the sweet language of murder. But I am no clown. I am perfection. I am greatness. I am the future, and the future starts tonight.

E houve coisas terríveis.

A canção dos Nirvana que parece ter levado os autores a dizerem "fomos longe demais, isto não é Glee", porque os momentos musicais sumiram depois disso.

As surpresas sobre a moralidade das personagens, que cheiram mais a preguiça de as pensar do que à criação de uma ambiguidade que nos deixe na expectativa.

E, de novo, tantas personagens a ganharem protagonismo e a morrerem pouco depois (o que foi aquele ventríloco do Neil Patrick Harris?) que eu fui para o episódio final de novo sem grande entusiasmo e prontinho para desistir de AHS.

E a verdade é que duas coisas aconteceram nele que me desconcertaram.

A performance final da Jessica Lange, cantando Heroes do Bowie, fechou a curva da personagem dela na perfeição.

Ela mesma já não era o freak recém chegado do Life on Mars, mas a conquistadora vitoriosa da psique americana, que invadia semanalmente através da televisão.

Aí AHS reclamou de novo, e sem hesitar, o seu lugar como comentador da cultura popular dos EUA.

Mais importante, o massacre a sangue frio de Dandy no freak show parece quase auto-satírico, como se os próprios autores nos estivessem a dizer "as nossas personagens morrem do nada, porque a América mata a sua cultura do nada quando já não precisa dela".

Se o corpo de Dandy é a América, o vazio moral que o espetador sente quando vê uma personagem morrer é semelhante, não só ao vazio moral dele quando mata, mas também ao de quem apaga do mapa aquilo de que já não precisa em vez de construir a partir dele.

Uma coisa eu consigo dizer: o que falta a AHS é coerência.

Tem-lhe sido muito difícil concentrar-se numa linha narrativa, e sofre com isso.

No melhor, as suas digressões são extraordinárias; no pior, causam-nos indiferença.

Mas - e esta é a minha grande dúvida - e se suscitar essa indiferença perante o aleatório das vidas e mortes das suas personagens for a forma de a série nos acusar a todos de sermos cúmplices de uma cultura que banaliza a vida e a morte como mais um fait-divers, mais uma nota de rodapé no jornal, mais um minuto de televisão preenchido?

Se assim for, essa será a ironia máxima.

A série que começou por assumir os clichês do horror e que depois os misturou com prazer e humor acaba por dizer que a verdadeira "história de horror americana" não é a da violência ou da morte, mas a da sua redução ao zero e ao absurdo.

Mas será que é isso?

Os seis "Mas" do Charlie Hebdo

O massacre na redação do Charlie Hebdo revoltou-me.

Primeiro, porque eu entendo o que é sofrer pressão por algo que se escreveu, produziu, lançou para o mundo.

Acreditem ou não, sofro-a quando os realities que roteirizo têm um vencedor e todos os apoiantes do perdedor mandam à merda e insultam o canal e todos os que produziram o programa.

Sofri-a quando quis dizer o meu poema crítico sobre o Durão Barroso num evento que só por acaso aconteceu nas instalações da Comissão Europeia em Lisboa.

E sei que a posso sofrer em tudo o que fizer.

O princípio por trás disto é o mesmo do que aconteceu em Paris: alguém te vai sempre lembrar que há coisas que não se podem dizer.

Mas, para poder trabalhar, eu tenho que dizer coisas.

Se me pudesse dar ao luxo de pensar em toda a gente que pode ficar incomodada com o que escrevo, não conseguiria escrever nada.

Ou seja, não poderia trabalhar.

Segundo, eu sou um cidadão e, como tal, tenho uma consciência muito forte - decidam se é errada ou não - dos direitos que eu e todos temos para fazer e para dizer.

Por tudo isso, houve reações ao atentado que eu simplesmente não engulo.

1- "Estou chocado, mas a culpa é do Islão".

Uma vez, estava a almoçar em Paris.

Reparei num homem, sentado numa mesa próxima, em silêncio total.

Tinha uns 50 anos, bigode, um ar banal de quem saiu do trabalho e foi almoçar.

Estava tão quieto que pensei que tivesse adormecido à mesa.

Mas, de repente, ele levantou os olhos, pousou o livrinho que tinha na mão, esperou o que tinha de esperar pelo almoço, comeu e foi-se embora.

O livrinho era o Corão.

E aquele era o jeito possível de ele cumprir a sua oração a Meca.

Há 1.6 bilhões de muçulmanos no mundo.

Considerar que os seguidores de uma religião são responsáveis pelos atos criminosos de três dos seus integrantes é absurdo.

Eu nem sei quem eles representam. Alguém sabe quem eles representam, além deles mesmos?

Os irmãos Kouachi são muçulmanos que nasceram e cresceram em França.

E a política europeia de integração de imigrantes falha, sim, e tem que ser repensada e balizada pela tolerância e respeito mútuo, sim.

Mas quantos muçulmanos há em França que sofreram com a política de integração e não pegaram em armas para invadir um jornal?

Isto não foi um caso de imigrantes resistirem a polícias que entraram no bairro onde moram e os trataram, inocentes, como criminosos.

Isto foi um caso de fanáticos assassinarem a sangue frio pessoas que estavam numa sala a trabalhar só porque não gostavam do trabalho delas.

Confundir estes assassinos com o homem que eu vi almoçar em Paris é um insulto a ele, ao bom senso e à inteligência de todos nós.

2- "Estou chocado, mas a culpa é da globalização/geopolítica ocidental/EUA".

Houve quem dissesse que a culpa é do Bush filho e Bush pai. Da invasão do Iraque. Do apoio a Israel. Da ingerência ocidental no Médio Oriente.

Talvez tenham razão. Mas a Segurança Social também já teve ingerências bem chatas na minha vida e não foi por isso que entrei numa repartição e abri fogo.

Este argumento é vicioso, porque não responde a nada. E não responde a nada porque a ingerência não tem fim.

"Vocês desenharam Maomé", "Mas vocês explodiram o metro de Londres", "Mas o Bush invadiu-nos", "Mas vocês fizeram o 11 de Setembro", "Mas vocês estão feitos com Israel", mas vocês, mas vocês, mas vocês.

Quem define onde parar?

No Lawrence da Arábia? Na invasão do leste europeu pelo Império Otomano? Na expulsão dos mouros da Península Ibérica, que foi árabe quase 600 anos? Na invasão do Médio Oriente por Alexandre o Grande?

A culpa é de quem matou quem está morto, e ponto.

3- "Estou chocado, mas parte da culpa é dos cartunistas, porque atacavam o Islão".

Este argumento implica que se deve regrar o discurso pelo conteúdo.

E esquece que a democracia não foi construída para albergar respeitinhos ou consensinhos.

Ela foi construída para albergar choques.

Esses choques, numa sociedade democrática, dão-se nos tribunais. Nos órgãos representativos. No voto. Nas ruas, nos cafés, na internet. E na imprensa, claro.

O Charlie Hebdo satirizava quem precisasse de satirizar. Religiões, partidos políticos, chefes de Estado, a França.

E também satirizava muçulmanos. Porque não satirizar muçulmanos, afinal? Se satirizava judeus e cristãos, não o fazer seria, de certa forma, uma verdadeira discriminação.

Para quem não gosta, há um bom remédio.

Esse remédio é os tribunais com que se pode processar um jornal, a imprensa em que se pode responder ao jornal, a legislatura que pode criar leis que protejam quem se sentir vítima de um jornal.

E não precisa de Ak-47s.

4- "Estou chocado, mas ironia e sátira não são construtivas".

Este argumento quer regrar o discurso, não pelo conteúdo, mas pelo tipo.

Ele implica que a ironia e a sátira são um discurso de dentro para dentro, que não potencia o diálogo e que o nosso mundo só poderá melhorar se pudermos dialogar com o diferente.

Ele pretende ignorar que a sátira e a ironia geram o riso, mas também o desconforto. Que a provocação gera o pensamento. E que o pensamento gera a discussão.

Por isso é que o humor não é apreciado por ditaduras. Ou por fundamentalistas. Ou por terroristas.

Como se dialoga com terroristas, humoristicamente ou não?

E, além do mais, quem tem autoridade para dizer que tipo de discurso é mais ou menos válido? Eu? Tu? Ele?

Aceitar a liberdade de expressão é aceitar, simplesmente, que a expressão é livre. Que expressar o desacordo é livre. Que uma sociedade esclarecida é mais completa do que a que não o é.

Alguém pode perguntar "E se a sociedade não estiver pronta?".

E eu respondo: com toda a gente calada, ela nunca vai estar.

Não existem discursos mais ou menos meritosos. Só mais e menos arriscados.

5- "Estou chocado, mas ninguém se lembra dos outros jornalistas que morrem por aí e das pessoas todas assassinadas em conflitos pelo mundo".

Assim se diz como quem não quer a coisa que as pessoas são indignas de se indignarem.

Na pior perspectiva, isto é sentimentalista e baixo.

Na melhor, isto passa por cima de uma diferença fundamental do que aconteceu em Paris.

Quem escreve, grava, difunde, ou opina numa sociedade livre, jornalista ou não, sente-se posto em causa mais pelo que aconteceu no Charlie Hebdo. Porquê?

Porque isto não foi um jornalista atingido por uma bala perdida, assassinado numa esquadra ou que aparece furtivamente enforcado em casa no momento em que se preparava para lançar uma notícia sobre um político corrupto.

Essas pessoas merecem o nosso respeito e memória e a sua morte não vale menos do que a de ninguém.

Tal como não vale menos do que a sua morte a de polícias. Ou a de soldados. Ou a de civis. Ou a de qualquer pessoa que morre injustamente.

Mas pensem que os assassinos não gritaram "Matamos o Charb", ou o Cabu, ou o Wolinski, ou o Tignous.

Eles gritaram "Matamos o Charlie Hebdo".

Eles não queriam apenas eliminar uma voz incômoda, mas dizer "este lugar já não é seguro para fazer o que faz". E, como tal, mais nenhum o é.

Em vez de um jornal, poderia ter sido uma igreja. Uma sinagoga. Uma mesquita. Ou uma escola.

Poderia ser qualquer representante de qualquer bastião que consideramos necessários para a nossa sociedade democrática funcionar.

Portanto, isto foi um ataque à nossa ideia de democracia, sim, e por isso mais espantoso, e por isso mais memorável.

6- "Estou chocado, mas há muitos hipócritas que agora dizem 'Je Suis Charlie'".

É verdade, há gente hipócrita.

E eu só tenho a dizer que espero que não o estejam a ser quando dizem isso.

Afinal, diferentes valores juntam-nos a pessoas diferentes.

Se pessoas de quem não gosto se chocaram com o que aconteceu, pelo menos sei que temos isso em comum.

Se assim for, espero que isso lhes tenha servido para pensar na vida e serem menos hipócritas no futuro.

Se não forem, pelo menos saberão que não podem mandar ninguém calar-se.