abril 2012

Archive for abril 2012

O documentário que deveria passar nas escolas

Graças à Internet, podemos ver várias coisas do nosso país natal quando estamos fora, como jogos de futebol, noticiários e concorrentes de reality shows dizendo que não sabem onde é África. E, felizmente, podemos ver também o documentário Os Donos de Portugal, que, num extraordinário ato de interesse público, a RTP passou no 25 de Abril. Adaptação do livro do mesmo nome, trata da hegemonia secular de algumas famílias na posse de Portugal e de como essa hegemonia foi mantida em estreita relação com todos os regimes, partidos e governantes que lideraram a política portuguesa desde o final do século XIX.
"Para quem contrata, a influência política é o ativo mais desejado. A promiscuidade torna-se um problema colateral. Quem dirigiu a privatização, passa a dirigir o que privatizou. Quem adjudicou a obra pública, passa a liderar a construtora escolhida. Quem negociou pelo Estado a parceria público/privado, passa a gerir a renda que antes atribuiu. Ou vice versa."

httpv://www.youtube.com/watch?v=jg_gd9aUWJQ

Para os meus amigos brasileiros

Gostaria que vocês entendessem que hoje faz 38 anos que Portugal se tornou uma democracia com uma das revoluções mais bonitas que já houve. Desculpem-me dizer isto assim, eu sei que parece presunçoso e uma espécie de patriotismo babaca. Mas eu acho isso mesmo. Foi uma revolução linda, porque teve flores, canções, quase nenhum sangue derramado. Os militares, em vez de fazerem uma nova ditadura, derrubaram a que lá estava e vigiaram todo o processo que levou até à democracia. As senhas para eles saberem quando avançar foram dadas pela rádio, com duas canções, "E Depois do Adeus" e "Grândola Vila Morena". Eu tenho orgulho disso. Eu tenho orgulho que a revolução do meu país, um país que começou então a descobrir quem realmente é, tenha começado nas palavras "quis saber quem sou, o que faço aqui, quem me abandonou, de quem me esqueci" e "dentro de ti, ó cidade, o povo é quem mais ordena" sendo cantadas na rádio. Não choradas, não só faladas: cantadas, por uma voz que rompeu a noite como se rompesse o breu onde até aí tinha vivido. Os presos políticos regressaram às famílias. Todos os jovens souberam que deixariam de ir ter de matar pessoas para África. E, acima de tudo, o mais belo, o mais pungente, é que todo um povo estava unido em volta da mesma esperança. O mais extraordinário sobre o 25 de Abril é isso. Os portugueses podem ser quezilentos, problemáticos, reclamões e, ao mesmo tempo, conformados com a situação e incapazes de mudar seja o que for. Mas no 25 de Abril todos nós nos unimos por sabermos que todos somos iguais enquanto donos do nosso país e do nosso destino. Que Portugal, ao fim e ao cabo, não é de um primeiro-ministro, da Igreja ou dos grandes grupos económicos - ele é nosso. Ainda hoje, o 25 de Abril é o dia em que os portugueses se lembram disso. Por isso, eu não digo que não é por eu estar no Brasil que Portugal deixa de ser meu. Eu digo que não é por eu estar no Brasil que Portugal deixa de ser nosso.
httpv://www.youtube.com/watch?v=uMiAYRRp-cE

Contenta-te com o que tens

Quando tinha 90 anos, Billy Wilder recebeu um prémio de carreira e começou o discurso de agradecimento com uma história. Um homem de 90 anos vai ao médico e diz "doutor, não consigo mijar". O médico pergunta "qual a sua idade?". O homem diz "90 anos". O médico responde "já mijou o suficiente".

O passeio à tarde

Havia uma ponte. Eu estava a atravessá-la, sozinho. À minha volta, estavam dezenas de pessoas. E era isso. Um dia muito quente, o céu estava azul. Não sei o que havia por baixo. Talvez um rio, mas ninguém falava disso. Todas as pessoas pareciam satisfeitas só por saberem para onde estavam a ir. Eu também. A ponte era enorme, larguíssima, do tamanho de uma cidade. Mas era mesmo uma ponte, com faixas desenhadas no chão para os carros saberem por onde ir. Todas as pessoas seguiam em frente, sem conversar. Eu não estava à frente, mas também não estava no fim. As pessoas que iam mais à frente começaram a chegar ao fim. Fila por fila, todos entravam no fim. E eu também.

O tapete mais feio do mundo

Escrito para a última edição d'A Cabra, porque é sempre bom sentir um pezinho em casa. Inspirado numa história real.

Era uma vez um tapete. Muitas histórias poderiam começar assim. Mas ele não era um tapete qualquer, porque ele era o tapete mais feio do mundo. O dono já não se lembrava de onde o tinha encontrado. Pelo menos, nunca o admitiu a ninguém. Quando Márcio e Dora, um casal de amigos, o visitaram, Márcio riu-se e disse "não acredito que deste dinheiro por isto. Este é o tapete mais feio do mundo!". Dora baixou os olhos, triste com as coisas que o namorado dizia. E o dono do tapete tentou lembrar-se porque é que ainda era amigo do Márcio.
O tapete já ouvia coisas parecidas desde que, acabadinho de sair da linha de produção, o pessoal da fábrica o olhou com preocupação. Um funcionário disse mesmo "será que pode ir para a loja assim?". O patrão chegou, viu toda a gente parada, atirou o tapete para a pilha dos vendidos e gritou "a crise já acabou ou quê? Tudo a trabalhar!".
Na loja, as empregadas puseram-no no fundo da pilha, com a esperança que ninguém o visse e saísse assustado. Mas, um dia, alguém comprou o camarada que estava por cima dele e, sem querer, levou-o também. A rapariga da caixa reparou no engano, mas não disse nada. O tapete mais feio do mundo tinha que se fazer à vida.
Quando o dono do tapete fez aniversário, diminuiu e direcionou sabiamente as luzes para que ninguém na festa conseguisse notá-lo Ao tapete, soube bem sentir tantos pés a pisarem-no. Normalmente, era evitado. Mas nessa noite não: ele podia por fim sonhar que era um tapete igual aos outros, peludo e grande, aqueles tapetes que os pais passam para os filhos e os filhos para os netos e assim por diante. Mas o Márcio estava na festa também, e o Márcio é daquele tipo de pessoas que cria uma roda de convidados em volta dele e se põe a contar coisas que as fazem rir. Entre elas, o tapete mais feio do mundo. Todos explodiram numa gargalhada, menos Dora, que ficava triste com as coisas que o namorado dizia, e o dono do tapete, que decidiu enfiá-lo num armário até decidir o que fazer com ele.
No dia seguinte, enquanto o dono arrumava a confusão que ficara da festa, o tapete estava triste. Ele não gostava do armário. O seu destino enquanto tapete era o chão, onde todos o podiam pisar e limpar os sapatos. O escuro do armário era a humilhação suprema na sua curta vida. E "curta" era realmente a palavra certa: o dono planeava deitá-lo ao lixo no fim do dia.
A campainha tocou. Era Dora. "Posso entrar?". "Claro", respondeu ele com surpresa. Dora era uma mulher cobiçável pelos homens, e o dono do tapete não era exceção. O que ela fazia ali? Ela entrou e despiu-se à frente dele. "Quero-te aqui e agora, com uma condição". Ele estaria disposto a tudo. Ela continuou: "vai ser em cima do tapete".
Nas horas seguintes, o tapete sentiu coisas inimagináveis para a maioria dos tapetes do mundo. O toque amigo da pele humana. A confusão do prazer enquanto joelhos e mãos se fincavam nele. As umidades caindo nos seus pelos, muitas vezes, repetidas vezes. E a perversão também, quando ela gritava o nome do Márcio no meio de uma onda de insultos enquanto o dono do tapete a ia preparando para o clímax. Ela, gozando, levantou os olhos. E o dono do tapete lembrou-se então porque era amigo de Márcio: para ficar com Dora por perto.
Depois de fumarem um cigarro, ela levantou-se, pegou as roupas do chão e vestiu-se. Ele riu-se: "E eu que ia deitar o tapete fora". Ela, que já estava perto da porta, disse "podes fazê-lo. Ele é feio mesmo. Mas há coisas que é má educação dizer". E saiu.
Mais tarde, o tapete estava no meio do lixo de um contentor e sentia o ar frio da noite. Era o fim, ele sabia. Mas, em tão pouco tempo, ele tinha conseguido mais do que tantos outros seus camaradas. Em si, para a morte, levava as marcas de uma tarde de amor. E, sorrindo, foi levado pelos almeidas enquanto, em casa, o seu ex-dono pensava na Dora e tentava inventar uma maneira de preencher o espaço em branco com que ficara no chão.

O que eu quero que o livro que vou escrever tenha

O livro tem que me pôr em causa. E eu vou ter que saber defendê-lo. Defendendo aquilo que me põe em causa, conseguirei, não sei como nem porquê, defender-me a mim também.

Vou escrever sobre o que conheço, o que me interessa e as coisas que me aconteceram. O livro deve ser uma defesa do que acredito ser preciso defender (fora ou dentro de mim), um ataque do que acredito ser preciso atacar (fora ou dentro de mim) e uma narração do que acredito que é preciso ser narrado.

O livro vai ter capítulos curtos. Ninguém tem paciência para nada. Nem eu. Muitos capítulos curtos. Muitos episódios.

Algumas personagens serão uma mistura de várias pessoas que conheci. Isso deve estar justificado dentro do próprio livro: a sucessão de pessoas fez-me esquecer de algumas delas.

O meu livro vai ser concreto. Mesmo que fale de sonhos e coisas imaginadas, queridas, idealizadas, ele vai ser concreto nelas e não adotar esse idealismo como parte da sua matéria constitutiva.

O meu livro não vai ter vergonha daquilo que é, tal como eu não tenho vergonha daquilo que sou.

O meu livro não vai ter medo, pois eu também não tenho medo.

O meu livro vai ser uma história com princípio, meio e fim, mas que pode ter digressões.

A linguagem e a gramática vão variar conforme o lugar que está lá. No Brasil, será brasileiro. Em Portugal, será português.

Eu vou escrever o meu livro como se filma um documentário. Escrever os capítulos que têm unidade temática como se fossem a gravação da realidade. E depois editar.

O meu livro vai ser uma coming up story em que o protagonista é um homem que se transforma num outro homem, e não um adolescente que se transforma num adulto.

O meu livro é escrito numa época de reality shows que apresentam uma versão higienizada do sexo e das relações humanas, ou seja, uma versão que não é real. O meu livro, sendo ficcional, vai ser mais real do que um reality.

Se eu tiver que chorar enquanto escrevo o meu livro, eu vou chorar.

O Kindle e a existência


Eu tenho um Kindle. E eu adoro o meu Kindle. Não tive grandes problemas em adaptar-me à leitura nele e, quanto mais o tempo passa, mais encontro novas maneiras de o utilizar. Uso-o para o trabalho, para tirar notas em textos, que posso depois ver num arquivo à parte. Posso comprar livros na Amazon que são imediatamente baixados. Com o Klip.Me, envio para lá os textos extensos que encontro em sites, para ler de modo bem mais confortável. Sublinho excertos que depois posso encontrar imediatamente, uso o dicionário inglês para palavras que não conheço, faço pesquisa no texto para encontrar só aquilo que me interessa. No fim das contas, o Kindle permite ser mais rápido e prático em ações morosas que uma leitura atenta implicava. Ele tem toda a agilidade que é necessária num tempo em que a leitura pode vir de mil lugares e em mil formatos diferentes. Lutar contra ele (ou contra os livros físicos, que ele não substitui) não faz muito sentido e, sinceramente, irritam-me muitos argumentos de detratores da leitura em ebooks, que raramente percebem que só se trata de uma escolha entre um ou outro fetichismo.

Mas há outra razão para o meu apreço pelo aparelho da Amazon. Eu sou um homem que mora fora do seu país e que, como tal, sente a vida sempre em suspenso. Isso transforma. Sentimos a tendência para reduzir o excesso. Costumo dizer que agora não quero nada na minha vida que não caiba dentro de duas malas. Claro que eu tenho eletrodomésticos em casa, mesas, cadeiras e um colchão de ar. Mas eu não levaria essas coisas para lugar nenhum. Não preciso delas.

É normal dizer-se que, quando compramos um livro físico, o sentimos mais nosso, porque a posse aí é física, material. Eu contraponho que, quando leio um livro eletrónico, a minha ligação com o texto é imediata, porque acontece uma coisa curiosa com o Kindle: enquanto objeto, ele é independente do próprio texto. Num livro impresso não é assim. O livro é o texto que nele está escrito. Mas o Kindle recebe os livros que quisermos, apagamo-los, modificamo-los, substituimo-los. Quando lemos, a nossa ligação com a escrita é uma outra, diferente da que temos com a máquina, com o objeto. Ou seja, com ele nós somos donos, não do livro, mas do texto.

Acho que o resumo disto tudo é que eu acho que não precisamos de muitas coisas, mas precisamos de ler. O Kindle é um passo num caminho em que a leitura se desliga das coisas. É por isso que gosto dele.