março 2011

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Estudo para personagem

Eu gostaria muito de te ter aqui, mas há uma força que nos obriga a andar.

Dantes, para as vacas ganharem força para puxar pedra e assim, dava-se-lhes vinho por uma garrafa. Mas tinha que se ter cuidado, senão a vaca mordia e partia a garrafa. O meu pai chegava-lhes com o dedo, punha-lho na boca para lhes apartar a pele e punha-se a garrafa de lado enquanto outro lhes agarrava o focinho para elas beberem. Mas o meu pai não lhes dava vinho, dava-lhes urina de homem. E farinha, milha.

Eu tenho uma uma coisa, sonho muito. Sonho que estou nalgum lugar, depois acordo. Mas dantes desesperava, agora não. É o que Deus quer, é assim.

Tinha na Bela e aqui muitos campos, que era uma coisa que gostava muito. Agora não os vejo.

Eu estou a pensar uma coisa, que tenho sonhado muito com eles. Ó Jorge, levas pressa? Quero-te perguntar, tens comido nuns campos lá em cima? Tu e a São... Não? Devem ser sonhos.

Quando fui para a tropa, levei presunto, cozido e lampreia seca fumada. Cozia-se a lampreia com presunto, passava-se em açúcar e enrolava-se. Depois ficámos lá todos a comer.

Fiz a tropa no Porto. Pesava 120 quilos quando me pesei na balança. Estive lá 12 dias. Quando nos mandavam encerar o chão, espalhávamos a cera, pegávamos numa passadeira, um deitava-se no fundo e os outros puxavam. Eu era sempre o que ia para o fundo.

Quando me quis ir embora, o meu tio pagou ao Sargento Vasconcelos, que era de Valença. Como não era tempo de guerra... Tinha de se ir a uma Junta. Na Junta estava um coronel, um tenente-coronel e um major e quem mandava naquilo era o major. Mas o sargento tinha-os na mão. Perguntaram-me "de que se queixa?". Eu respondi "da veia da urina". Fui-me embora ter com o meu tio.

Depois disso é que fui tirar a carta a Lisboa para começar a conduzir camiões. O teste foi na Graça. Eles queriam-me passar a perna e puseram-me num lugar difícil para dar a volta, mas eu fiz a manobra só com um braço.

Quando eu estava em Lisboa, uma vez estava com fome lá pelo Areeiro. Entrei num café, viro-me para o homem que lá estava e digo "dê-me um trigo com presunto, se faz favor". O homem virou-se para mim e disse "você deve ser lá de cima, de Coura, Monção, por aí". E eu "sou de Monção, como soube?". "Porque aqui não se diz 'trigo'. Se falar assim ainda se riem de si". E eu "ai os filhos da puta".

Hoje já vai ser um dia de sonhos.

Objetos do Brasil: o chuveiro elétrico


Ao contrário de alguns visitantes desprevenidos das terras de Vera Cruz, nunca tive nenhum problema com o chuveiro elétrico, que considero até muito eficiente. Na generalidade dos países que conheci (ou seja, em todos menos o Brasil), juntar as ideias de água e eletricidade não era coisa muito recomendável. Isto, reconheço agora, é medíocre e limitador. Afinal, sempre permitiria adiantar algumas tarefas matinais. Enviar um e-mail ao mesmo tempo que nos ensaboamos. Secar o cabelo da nuca enquanto ainda lavamos o da frente. Pôr as torradas a tostar enquanto nos esfoliamos.

No Brasil, ainda não se leva a torradeira para o banho. Porém, um dia alguém ligou o foda-se e disse "porque não?". São as frases que iniciam toda as grandes revoluções da vida moderna. Assim nasceu a democracia grega. Assim nasceu a revolução egípcia. E assim nasceu o chuveiro elétrico.

O chuveiro elétrico, está bom de ver, é um chuveiro que aquece a água através de uma resistência elétrica, não precisando de gás. Foi uma solução inteligente para aquecer a água a multidões e multidões que não podiam pagar a instalação de outros sistemas mais dispendiosos, incluindo esquentadores. Ou seja, uma espécie de Bolsa Família só para o momento do banho. As implicações políticas são óbvias: o chuveiro elétrico permitiu que o pobre se começasse a sentir classe média logo no quentinho do duche. Hoje, o chuveiro elétrico é transversal à sociedade brasileira. O seu uso é como comer rissóis: por muito rico e chique que se seja, de vez em quando passa-se por ele.

Lembro-me da primeira vez que usei um chuveiro elétrico como se fosse hoje. Imaginem a situação. Jorge Vaz Nande pendura a toalha na porta e, nu, fica a olhar para aquele estranho e volumoso objecto branco sobre a sua cabeça, preso à parede por um tubo e dois parafusos, do qual sai um grosso cabo elétrico que parece rir-se para ele como quem diz "ahah vou-te foder". Ele estica a mão com medo, já sentindo o frio da manhã no corpo, mas com receio de que a água demore tanto a aquecer na geringonça e o atinja com tanta crueza que ele não consiga reprimir um grito efeminado. Enche-se de coragem e roda a torneira. A água cai, de início fria... mas, em segundos, bem mais depressa do que com qualquer esquentador fajuto, ela fica quente. Nobremente quente. Regiamente quente. Jorge Vaz Nande põe-se por baixo da torrente e leva com ela na cara, logo experimentando a excitação das suas terminações nervosas. Enquanto ele pensa, rindo, em todas as vezes que um esquentador mau o deixou agarradinho a um fraquejante fiapo de mornura, ele repara que a água está a ficar demasiado quente. Ele olha para a parede, procura a torneira de água fria - mas ela não existe! Isto é um chuveiro elétrico, só tem uma torneira! O que fazer? O que fazer?! Sentindo a cara a ficar queimada, chegando-se já ligeiramente para o lado, Jorge Vaz Nande tem uma ideia- abrir ainda mais a torneira. É a única ação possível, a única que faz sentido - e funciona! A água fica, de repente, no seu ponto certo e Jorge Vaz Nande pode-se lavar, pensando que só falta inventarem chuveiros elétricos para as torneiras da cozinha, para assim ele não precisar de levar a louça suja para o banho.

Já agora, se procurarmos "chuveiro elétrico wikipedia" no Google, este remete-nos para a história dele logo no primeiro link. O segundo link é a definição de "lavagem vaginal". Apesar de o Brasil ser um país onde a higiene pessoal é muito valorizada, ainda não consideramos este um objeto do Brasil. Porém, quem sabe, talvez um dia falaremos sobre o tema.

Vida atribulada

O bom de vir a casa é que podemos encontrar revistas Maria de 1988 que contêm cartas como esta:
VIDA ATRIBULADA
Somos três amigas que vivem juntas e as nossas idades estão compreendidas entre os 15 e os 18 anos. Temos três problemas que gostaríamos que nos ajudassem a resolver. Arriscámos a fazer fotografias nuas e o fotógrafo tentou violar-nos. Estamos cheias de medo e sem saber o que fazer. Há rapazes que têm a mania que nós somos a Ninon e a Rosaly do 'Roque Santeiro', e então tentam agredir-nos. Finalmente, o último problema diz respeito à droga. Uma vez ofereceram-nos e como nós recusámos assaltaram o nosso apartamento.
Carla, M.S. - Porto