Bacurau: o místico, o mítico e aquela tal arma

(Contém spoilers)
 
Há uns dias, dei por mim a pensar sobre como o Brasil me ensinou algo novo sobre a multidão. Claro que na Europa eu já tinha estado no meio de muitas pessoas juntas. Porém, as multidões do Brasil parecem-me outra coisa, como se a junção de muitos indivíduos, de alguma forma, os transformasse num novo corpo, com comportamento, movimento e fluidez próprios.

Bacurau lembrou-me disto. Os seus moradores transformam-se numa nova personagem quando se movimentam e agem em grupo. A prodigiosa sequência do funeral no início mostra-nos isto mesmo: todas juntas, aquelas pessoas tornam-se uma outra coisa, e é essa coisa que se chama Bacurau, pássaro que sai pela noite.

Tem-se falado muito sobre a relação de Bacurau com o "western". Os próprios diretores, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, admitem as influências do gênero, tanto temáticas quanto técnicas. Num enredo sobre uma cidade atacada que se defende a si própria, reconhecem-se logo os ecos de The Magnificent Seven. Posso estar sendo meio louco, mas até acho Silvero Pereira, o "Lunga", bastante parecido com Yul Brynner.


É extraordinário o modo como Bacurau trabalha essas convenções para se afastar do realismo social e se desviar para olhares que revelam fortes espaços psicológicos, como já víramos antes nos filmes de Mendonça Filho (a cachoeira de sangue em O Som ao Redor, a aula de ioga do riso em Aquarius). Podemos também falar dos ambientes e sensações que aludem ao realismo mágico, que aqui aparecem por conta de um certo "psicotrópico" ou quando a personagem de Udo Kier tem a visão da falecida Carmelita. Porém, parece-me que mais importante ainda é a forma como Bacurau se vale de todos esses recursos para criar um universo de grande peso místico e mítico.

Místico, porque a cidade de Bacurau fica isolada, desviada dos caminhos, no sopé de uma montanha, abraçada pela força dos elementos do Sertão, com os seus dias agudos e as suas noites profundas. Ela parece subsistir num plano diferente de existência que é simultaneamente espacial e temporal — como o Cinema, ao fim e ao cabo. A presença de Kier, que carrega em si 50 anos de Cinema, só agudiza essa noção, e os travellings repentinos em cenas aparentemente estáticas ou lentas para desviar o nosso olhar e salientar algum pormenor parecem repetir "há algo aqui além daquilo que vocês veem".

Assim, as personagens de Bacurau são ao mesmo tempo deste mundo e daquele meio caminho de distância até ao Olimpo montanhoso, como semideuses que estão bem e não querem sair de onde estão. E essa é a grande, a enorme sacada do filme: qualquer elemento de comentário social que dele se possa retirar não vem de uma ficcionalização sobre uma crua realidade, mas da construção de cada uma das suas personagens enquanto mito. Parafraseando Malraux, os mitos são os denominadores comuns que nos unem para além das nossas diferenças, porque fazem parte da reconstrução imaginária autônoma que todos fazemos sobre uma base colectiva. Eles tocam as multidões menos porque dão uma significação ao que elas vivem e mais porque as deixam sonhar para além do que vivem.¹ Citando Will Wright, que muito escreveu sobre a função do mito no "western":

Um mito fornece um modelo conceptual de ação social e, portanto, a ação narrativa do mito relaciona-se com as ações sociais cotidianas de indivíduos. (...) Num mito, a sequência narrativa explica uma mudança nas relações sociais - a ação de uma personagem no contexto de uma situação social traz uma nova situação, uma nova relação de personagens, mas (...) as personagens representam tipos sociais; portanto, a sequência narrativa explica a interação e relações de tipos sociais.
Will Wright, Sixguns and Society - A Structural Study of the Western

Bacurau é um "western" porque cria figuras mitológicas para falar dos problemas que nos afligem enquanto sociedade. Se esse gênero se diferencia «pela forma como as suas personagens agem no meio de um conflito de interesses entre uma sociedade rural abalada por um injusto processo de estabelecimento de uma civilização moderna»², o filme diz-nos também que há valores dos quais nunca devemos abdicar nesse confronto. A comunidade em que vivemos é um deles; a nossa humanidade também.

Por isso é que é tão importante que a primeira arma a matar um dos invasores seja um bacamarte, objeto que se confunde radicalmente com a história do Brasil: adaptado das granadeiras trazidas pelos combatentes da Guerra do Paraguai, faz parte do folclore do cangaço nordestino desde então. Ou seja, não foi Damiano quem matou os matadores, mas o próprio Nordeste acuado por eles.



Dito isso, é muito estranho ler as críticas que acusam Bacurau de propor uma solução de violência para os problemas do Brasil. Apetece dizer, com simplicidade necessária, que violento é o mundo, e o filme apenas o reflete. Mas a outra objeção possível a quem não consegue entender que estamos aqui num universo distópico em que execuções públicas são transmitidas pela televisão é que Bacurau é uma espécie de aviso. Nele, a violência é uma constante definidora de relações: faz de Pacote uma celebridade online, é entretenimento turístico para estrangeiros, niveladora de estratos sociais para os motoqueiros do Sudeste, fonte de excitação sexual para os matadores. Isso aproxima o filme desse Novo Cinema Gótico do Sul dos EUA, das obras de Jeremy Saulnier e Macon Blair, e parece deixar-nos um aviso claro: se não maneirarmos nos relativismos morais, depressa chegaremos em algo parecido com o que nos mostra.

¹ Jeanne-Marie Clerc, A Literatura Comparada Face às Imagens Modernas: Cinema, Fotografia, Televisão.
² Daniel Oliveira Mosca, O Bem, o Mal e a Polícia: Convergências entre as estruturas dramáticas dos Nordesterns brasileiros e dos Westerns estadunidenses

God fuck the queen! Um resumo da confusão em terras de Sua Majestade

Ao pedir ontem a suspensão dos trabalhos legislativos entre 9-12 de Setembro e 12 de Outubro, Boris Johnson fez  um "all-in" que encurrala o Parlamento entre aprovar ou não aprovar o acordo de Brexit que ele apresentar depois da prorrogação, pois não deixa tempo útil para discutir acordos alternativos.

Se o Parlamento aprovar o acordo, os opositores do Brexit saem encolhidos, mas poderão atribuir a Johnson a responsabilidade por qualquer confusão que disso resulte e, nos próximos anos do governo, não deixarão incólume o desacato.

Se o Parlamento não aprovar o acordo, o Reino Unido vai para o "no deal", e Johnson guarda o trunfo de poder culpabilizar os opositores pelo caos que se instalará.

O Parlamento terá uma semana de trabalho em Setembro (de 3 a 10) antes de fechar para a prorrogação e voltar no dia 13 de outubro.

Essa primeira semana de Setembro será crucial.

Nela, o Parlamento poderá aprovar uma lei que proíba o Governo de sair da UE sem acordo. É um prazo muito apertado (a lei teria que ser aprovada pelas duas casas do Parlamento), mas, a acontecer, obrigaria Johnson a pedir à UE mais um adiamento do Brexit e tentar negociar um novo acordo.

O Parlamento ainda pode aprovar uma moção de censura (ou "voto de desconfiança") ao governo. Haveria pouquíssimo tempo para formar um governo de unidade nacional, que então pediria à UE um adiamento da data do Brexit. Quer funcionasse quer não, esta solução instalaria o caos político, e Johnson, que pode ou não ficar no poder (ou voltar a ele, caso vença a eleição subsequente), sempre poderia dizer que ele é da conta dos seus opositores.

O Parlamento apenas conseguirá sair da ratoeira armada pelo primeiro-ministro se se unir contra ele, o que não é impossível, se considerarmos como parlamentares de ambos os partidos se sentiram ultrajados com o movimento de Johnson.

Porém, acredito que Johnson aposta na incapacidade deles para se unirem, porque é preciso entender que os acordos de Brexit têm sido reprovados — simplificando bastante — por duas razões distintas:

  • De um lado, os parlamentares totalmente contrários ao Brexit tentam ganhar tempo, rejeitando os acordos para forçar uma outra solução (por exemplo, a substituição do atual governo por outro que, pelo menos, convoque um novo plebiscito);
  • Do outro lado, temos parlamentares que são favoráveis ao Brexit, mas não concordam com um acordo que inclua uma condição de que a UE não abdica: um "backstop" na Irlanda do Norte. O "backstop" consiste num regime transitório que manteria a vigência de algumas regras do Mercado Comum nesse país, evitando a necessidade de uma aduana entre as duas Irlandas e o ressurgimento das tensões separatistas dos tempos do IRA. Porém, isso implicaria que a Grã-Bretanha, para mover os seus produtos para a Irlanda do Norte, teria que garantir que eles se adequariam às normas europeias. Ou seja, durante esse período de "backstop", o Reino Unido teria que se conformar às regras da UE, mas já sem ter nela representantes que discutissem e aprovassem essas mesmas regras. Imagino que Johnson considera que, perante a impossibilidade de um novo acordo, pelo menos alguns destes deputados poderia ser persuadidos a aprovar um acordo com "backstop". 

O Brexit é uma ideia horrorosa que contraria os valores europeus em que a minha geração foi criada.

A jogada de Johnson diminui o poder parlamentar e ninguém com juízo poderá considerá-la tranquilamente democrática.

Porém, do ponto de vista da pura realpolitik e comparado com os métodos de desinformação truculenta de Trump e Bolsonaro, é um golpe de mestre que por enquanto o tornou dono da agenda política.

Ainda assim, será bom não esquecermos aqui todas as implicações da palavra "golpe".

Se Boris sobreviver a esta batalha, tem garantida uma guerra muito longa pela frente.

Corações Livres (2002)

Os Dogma do século XX eram melodramas com um toque de limão — uma exposição amarga das hipocrisias tão inerentes às relações (sociais, íntimas, familiares) que nos levava a questionarmo-nos se seria realmente possível que estas existissem. Este filme de Susanne Bier (Elsker dig for evigt, no original) mostra que ela soube erguer o melodrama, mas não o arrojo crítico. A sua falta de excesso e de experimentalismo levou o movimento até à fronteira da telenovela.

Valerie e a Semana das Maravilhas


Para fechar o dia em que nos disseram que filmes de temática LGBT não merecem fundos públicos, assisti a cópia da Criterion de "Valerie e a Semana das Maravilhas", uma fantasia de terror gótico interpretada pela atriz Jaroslava Schallerová, então com 13 anos. Após menstruar pela primeira vez, Valerie faz uma viagem surreal por um mundo que parece ser também a sua fantasia da sexualidade adulta. Ela apaixona-se por seu suposto irmão,  tem uma noite de amor com uma amiga para curá-la do vampirismo e tenta escapar dos avanços da sua avó — que também é sua mãe e sua prima —, do seu pretenso pai — um ente nosferático que também é bispo —, e de um padre que, frustrado, manda que a queimem na fogueira. Adaptação de um romance de 1945, o filme seria improduzível em qualquer lugar do mundo hoje, mas não o foi na República Tcheca de 1970. Tem 100% no Rotten Tomatoes, 7,2 no IMDB e é absolutamente incrível..

O coração triste de Willian

Gostaria de dizer aos políticos, e tantos outros, que a morte não se celebra. A vida celebra-se. A morte lamenta-se. E gostaria que Willian, o sequestrador da ponte Rio-Niterói a quem encontraram uma biografia de Bukowski na mochila, tivesse lido "O Coração Risonho" com mais atenção antes de ter entrado naquele ônibus.
Sua vida é sua vida
Não deixe que ela seja esmagada na fria submissão.
Esteja atento.
Existem outros caminhos.
E em algum lugar, ainda existe luz.
Pode não ser muita luz, mas
ela vence a escuridão
Esteja atento.
Os deuses vão lhe oferecer oportunidades.
Reconheça-as.
Agarre-as.
Você não pode vencer a morte,
mas você pode vencer a morte durante a vida, às vezes.
E quanto mais você aprender a fazer isso,
mais luz vai existir.
Sua vida é sua vida.
Conheça-a enquanto ela ainda é sua.
Você é maravilhoso.
Os deuses esperam para se deliciar
em você.

Fox e Fassbinder

Vi Faustrecht der Freiheit, ou, em português, O Direito do Mais Forte é a Liberdade (1975). Há muita coisa que me fascina em Fassbinder, mas nunca deixarei de me impressionar com a fotografia maravilhosa dos filmes deste homem, na qual incluo aquele permanente e incrível jogo coreográfico da câmara com os atores. Nada aqui parece feito às pressas para cumprir cronograma, o que é extraordinário para alguém que filmou mais filmes do que teve anos de vida — só em 1975, o IMDB lista quatro títulos escritos e dirigidos por ele!

Compras

Deixei as peras e os limões no supermercado, pagos, e não vou conseguir lá ir buscá-los amanhã. Praticar o desapego é muito mais fácil quando não há reais e comida envolvidos.

The Magnificent Ambersons / Soberba / O Quarto Mandamento (1942)

Há muitos anos que não o via, desde que a RTP2 o passou num ciclo dedicado a Welles. Acho que algo não estava à altura, a cópia ou eu mesmo, porque não me lembro de ter então ficado tão impactado com este filme como fiquei hoje. Acho que terá muito poucos rivais à altura no uso tão aplicado e tão bom do plano-sequência: de forma discreta, calma, sem se impor como uma necessidade do início ao fim da cena, permitindo que outros planos se intrometam nele e estando absolutamente subordinado às personagens e seus movimentos. Sabe-se que, durante a edição, Welles estava pelo Brasil, a (tentar) filmar É Tudo Verdade, e que o controlo do filme lhe foi retirado, tendo acabado com um final feliz, que ele não queria e que foi gravado na sua ausência, e com uns 40 minutos a menos. Realmente, o final feliz poderia ser dispensado, mas não digo que está "a mais", porque não há nada neste filme que esteja a mais. Aos 27 anos — 27! —, e mesmo sem querer, Welles alcançava um dos seus maiores triunfos artísticos.

Kira's Reason: ainda o Dogma

Vi En kærlighedshistorie, ou Kira's Reason - A Love Story (2001). Nota-se a influência de Cassavetes, mas também se nota que o filme expôs demais ao puxar para a teatralidade realista e, no caminho, perde-se. Contudo, não deixa de ser um estudo profundo sobre a personagem principal — aproveitando um grande trabalho da atriz Stine Stengade —, o que me deixou a pensar sobre como os Dogma do século XXI ampliaram a paleta de temas do movimento: a comédia do Italiano para Principiantes de Lone Scherfig e o realismo mágico de Åke Sandgren em Verdadeiramente Humano (para só citar os filmes dinamarqueses) já iam além das explorações dos buracos negros sociais e psicológicos por Trier, Vinterberg e os outros fundadores.

O mais curioso é como essa amplitude temática de Kira's ReasonItaliano para Principiantes foi acompanhada pelo aperfeiçoamento tecnológico, trocando as câmeras DV e MiniDV (Sony DCR-VX1000 em Idioterne; Sony DCR-PC3 em Festen; Sony DSR-PD150 em The King is Alive) pela Sony DVW-700WS, que grava em Digital Betacam. Este formato permite uma imagem mais definida e, portanto, uma fotografia mais refinada, ainda que limitada pelos ditames estéticos dos Mandamentos. Resultado: uma edição menos nervosa, sem aqueles pulos típicos do Dogma.

Esta facilidade de ver passa a sensação de que, por esta altura, o movimento se normalizava, como se filmes que correm menos riscos visuais sejam, ao mesmo tempo, menos disruptores, ou seja, mais inofensivos. A forma aperfeiçoa-se, mas, ao fazê-lo, parece construir obras menos marcantes. Ou será que, depois do 11 de Setembro, as rebeldias do séc. XX já cheiravam a coisa antiga?

JVN, futurólogo dos livros

Lembra-me o Facebook uma série de posts que escrevi há exatamente dez anos onde falava sobre o futuro do livro, da publicação e das livrarias. Na altura, ainda pensava bastante no assunto, porque a minha experiência com a Sinapses — a "primeira editora portuguesa de livros online", dizem — estava relativamente fresca.

Previa então que não haveria massificação do mercado de e-books enquanto os e-readers não baixassem até aos 150€ (193 dólares da época). Creio ter acertado: em 2017, venderam-se 266 milhões de e-books só nos EUA, e o grande salto entre 2010 e 2011 (de 69 para 165 milhões) coincidiu com o lançamento do Kindle Keyboard a 139 dólares e do Touch a 99 dólares. A Amazon entendeu que a criação estruturada de um mercado mundial de e-books dependia da disponibilidade da oferta e que o seu verdadeiro produto, mais do que o Kindle, era os próprios livros. Antes do smartphone, era preciso distribuir o Kindle pelo mundo para criar um canal de vendas. Por isso, a empresa nunca lucrou muito com o aparelho, que continua bem barato (na Amazon espanhola, o Kindle mais barato custa 90 euros), mas com os livros que vende para ele.

A segunda parte da minha previsão não se concretizou, ou melhor, concretizou-se ao contrário. Sabendo da dificuldade e custo das livrarias e editoras para administrar o estoque físico, imaginei que estaria por vir uma grande abertura das mesmas às novas possibilidades tecnológicas. As livrarias seriam equipadas com telas, com um catálogo de ebooks disponível para consulta, e impressoras para print-on-demand. O cliente chegaria, escolheria o livro que queria comprar e este seria impresso em alguns minutos. Seria o fim de edições esgotadas, de livros que desaparecem das estantes duas semanas depois do lançamento, do "podemos fazer a encomenda e receber daqui a uns dias".

O setor poderia ter aproveitado para matar dois coelhos de uma cajadada — acompanhar os tempos e diminuir os custos do armazenamento físico —, mas isso não aconteceu. Se tivesse sido diferente, talvez hoje as livrarias vendessem tanto livros físicos quanto ebooks  com um custo menor e talvez não tivéssemos visto a decadência da Barnes & Noble, da Fnac ou da Cultura.

Quatro filmes (anotações)

As Regras do Jogo (1939, Jean Renoir). Tudo nele nos leva até à festa, ao caos de um teatro em que tudo parece possível e em que a moralidade está suspensa nos jogos da alta burguesia. Ninguém é amigo de ninguém e os comportamentos são uma estranha mistura entre obediência às paixões e impulsos íntimos e a manutenção das convenções segundo regras não ditas, mas que todos parecem conhecer. Renoir disse querer que o filme mostrasse que na época as pessoas estavam "a dançar sobre um vulcão". Quase dois meses depois da estreia, a Alemanha invadia a Polônia e começava a Segunda Guerra Mundial.

O Grande Ditador (1940, Charles Chaplin). É um dos filmes que mais vezes vi na vida e também um dos que mais vezes verei. Nele sempre descubro imagens e sentidos novos. Desta vez, o monólogo final, tão visto e discutido, deixou-me inquieto e, por acaso, vi um vídeo (não lembro qual, infelizmente) que propunha o viés que me inquietou: o Barbeiro emociona-se porque percebe que o seu discurso humanista representará uma mudança na condução das civilizações, porque entende a força destrutiva do populismo totalitarista — ou porque subitamente é corrompido pela força do poder absoluto que descobre ter conquistado?

Era uma vez um Pai (Chichi Ariki, 1942, Yasujiro Ozu). Há algo de neorrealismo aqui, mesmo sem o neorrealismo ter sido ainda inventado. Chama-me a atenção a contenção de Ozu. Comparemo-lo com o cinema feito à altura das personagens de Renoir, que parecia apaixonado por elas, ou pelo de Chaplin, em que ele é o epicentro físico em volta do qual todo o movimento gravita. Em Ozu, a câmara está quase sempre  fixa, os atores também — e quase nunca se tocando. As pessoas de Ozu são gigantes e, ao mesmo tempo, minúsculas. Fumiko chora no final porque tudo é triste ou porque ela própria se apercebe de que as nossas alegrias nunca conseguirão extrapolar a nossa pequenez? Note-se também o tempo, principalmente no primeiro ato, com elipses separadas por anos que, contudo, passam suavemente. É um filme de contenção: como as vidas estão contidas no seu tempo, os corpos estão-no no espaço físico e os comportamentos nos intervalos definidos pelo dever.

Crônica de um Verão (Chronique d'un été, 1961, Jean Rouch e Edgar Morin). Terá sido com esse filme que a expressão "cinéma vérité" foi usada pela primeira vez? De fato, o co-diretor Edgar Morin usa-a logo no início para definir o programa do documentário. Poderíamos argumentar que é, no fundo, um filme doméstico, mas um feito por amigos que representam com precisão a luta de classes da época e a "malaise" que se estaria a instalar sobre a esquerda francesa durante a era gaullista e que explodiria 8 anos depois. Fui vê-lo porque vi por acaso no Facebook o vídeo de uma das cenas iniciais: Marceline na rua, perguntando para os transeuntes se eles são felizes. No entanto, isso não me preparou para ver o seu braço. No fim, o filme praticamente assume o seu fracasso em concretizar as suas intenções, mas poucas vezes um filme terá fracassado tão brilhantemente assim.

Amerikana

Um Dogma 95 americano que, apesar de ser de 2001, parece bem pré-11 de Setembro com o seu cheirinho slacker (e talvez seja). Muito agradável de assistir, com todos os erros certos.

Ansari e Dogma

Acho que foi há uns 10 ou 12 anos a última vez que vira stand-up do Aziz Ansari, mais ou menos pela época em que ele tinha entrado na série dos Flight of the Conchords. Na época, não lhe achei grande graça; pareceu-me forçado, como se se esforçasse demais para chegar à piada. Porém, como gostei muito de Master of None, fui à Netflix ver Right Now, o seu novo especial. A direção do Spike Jonze (pelo que percebi, é ele próprio que opera aquela beleza de câmera 16mm) é ótima, realçando o diálogo entre comediante e seu público, e o Ansari de hoje pareceu-me magistral. Começa devagar, soltando umas piadolas bobas, mas, depois de abordar a acusação de assédio de que foi alvo, não solta mais o osso dos nossos tempos e das nossas contradições e dilemas enquanto os vivemos. Reparei que ele evita o tópico Trump, que já estará mais do que gasto, e que prefere focar no cotidiano das próprias pessoas, usando os seus espectadores como cobaias. Adorei ver como Ansari se tornou um excelente manipulador da tensão do público.

Depois vi Et Rigtigt menneske, ou Truly Human, o Dogma 95 nº18, de 2001. Um enredo muito fora do comum para o Dogma: o amigo imaginário de uma menina ganha vida e tenta aprender a tornar-se humano. Fantasioso e queridinho, mostra que os Dogma do séc. XXI expandiram muito o horizonte do género definido por Trier e Vinterberg.

Italiano para principiantes

De todos os Dogma 95 que conheço, é o mais simpático. Lone Scherfig não nos dá ruturas; mostra-nos pequenas coisas da vida, sem grandes revelações. É um filme que conforta. Entreguei os trabalhos do mestrado e vi -o: dia bom.

Nós e Bozo

Quem me lê por aqui sabe que eu nunca fui entusiasta deste governo. Arriscaria dizer que a grande maioria de vocês, meus amigos, também não é. Não gosto de bloquear ninguém (quem sou eu para bloquear alguém?), mas acho que quem não tem razoabilidade suficiente para conviver com opiniões que não concorda fique por aqui muito tempo. Como se devem lembrar, tive um ou outro desaguisado durante estes meses, com tanto de escandaloso quanto de divertido. Deixei de seguir algumas pessoas que apoiavam Bolsonaro, não por conta do seu apoio, mas porque o que diziam e divulgavam ultrapassava limites de bom senso e eu não tinha paciência (e, sim, também fiz isso com alguns apoiantes da atual oposição). Há algumas coisas de que não gosto na vida; aguentar loucuras alheias é uma delas. Ainda assim, de vez em quando, viajo pelos seus perfis, para ver o que contam dos últimos acontecimentos. Na maior parte das vezes, não contam nada. Como não acredito que estejam muito satisfeitas - não acredito que ninguém esteja muito satisfeito -, isso revela ou uma grande hipocrisia ou, pelo contrário, a serenidade de quem acredita estar em boas mãos e não tem que se preocupar com mais nada. Tenho a sensação que sei qual é a resposta, mas não a vou revelar já.

Diziam que estávamos torcendo para que desse errado, mas a incompetência, a loucura e o egocentrismo de Bolsonaro já eram notórias desde a campanha. Ou melhor, eram notórias desde os seus dias de deputado inconsequente. Eram notórias desde o momento em que ingressou na vida política, entrando para a reserva do Exército após a sua prisão no Rio de Janeiro. Então, não é tanto que nós torçamos para que isto tudo dê errado quanto estarmos bastante certos que vai dar errado. Todas as evidências apontam nesse sentido. É como se, vendo as nuvens negras no horizonte, disséssemos “vem chuva” e alguém reclamasse que estávamos pedindo chuva.

Porém, eu não gostaria, e acho que ninguém gostaria, que tudo desse errado. Esta é, então, a minha, a nossa ambivalência: exceto naqueles momentos de confronto desesperado com o absurdo total (em que dizemos “eu quero é que tudo expluda”), eu acho que todos torcemos um pouco para que Bolsonaro tente elevar-se acima do seu passado. Eu estou muito certo que Bolsonaro vai continuar a piorar a vida das pessoas, mas eu torço para que ele não destrua por completo o tecido socioeconómico do Brasil. Estou muito certo que ele e Araújo vão manchar a imagem internacional do Brasil, mas torço para que não o façam indelevelmente. Estou muito certo que ele vai diminuir a instituição da Presidência, mas torço para que isso não corresponda a uma simples transferência não sancionada dos seus poderes para outros lugares onde vigora a mesma escola de oportunismo e aproveitamento que o formou.

A evidência, constante e repetida, de que Bolsonaro é um político incompetente dá-nos, em segredo, o contentamento de vermos certezas confirmarem-se. Nós não estávamos errados antes e continuamos a não estar, pensamos. Porém, também nos frustra, porque percebemos que tudo pode piorar além daqueles limites temidos. Por isso compartilhamos tanto meme, por isso fazemos tanta piada. A tensão entre essas duas pulsões contraditórias tem que ir para algum lugar: ou ficamos loucos ou rimos. Bolsonaro não sabe construir bases de apoio e mantém relações suspeitíssimas com o crime organizado. A despeito da sua crítica ao PT, pratica um governo altamente ideológico e sem qualquer efeito prático a não ser atolar o funcionamento das instituições e o progresso do país. Efetivamente perdeu o controle da Reforma da Previdência, que hoje é uma lei do Congresso. Se se sente Rainha da Inglaterra, só pode culpar a si mesmo: Bolsonaro, que sempre pareceu estar na política sem outro intuito que não fosse estar nela, claramente não entende o seu poder. Ele não entende os limites do seu poder, ele não entende como funciona o seu poder, ele não entende para que serve o seu poder. Pelo menos - e isto é “wishful thinking” - ele finge não entender para, no meio do caos, ir seguindo em frente, surfando na onda das suas próprias idiotices. No início, desculpava-se dizendo que os seus falhanços eram fruto da sua inexperiência como presidente, mas eu nunca vi um presidente tão despreparado ao ponto de ter que dar essa desculpa. Bolsonaro é muito competente a empurrar problemas com a barriga enquanto garante a sobrevivência política, a sua e a dos seus filhos. Sim, porque nos esquecemos às vezes (ou tentamos esquecer) que há três ou quatro Bolsonaros mais jovens por aí que assombrarão a política brasileira por mais 30 ou 40 anos.

Muito se falou de Bolsonaro como um último estertor dos defensores do poder do homem branco heterossexual. Eu gostaria de propor uma teoria adicional: a de que grande parte dos que o aclamaram tinha total consciência de que aclamava um homem de palha. Essas pessoas não acreditaram por um segundo no rótulo de “fora do sistema”, sabiam que o indivíduo que chamavam de “mito” era o tiozão do pavê inconveniente que assombra as festas e os grupos de família no Whatsapp e simplesmente votaram com vontade de ver o circo pegar fogo. A grande perda de popularidade de Bolsonaro deve-se tanto à sua nulidade do seu governo quanto ao fato de parte de seu eleitorado ter votado rindo dele. Hoje, mais do que nunca, o apelido “Bozonaro” faz todo o sentido.

Years and Years

Esta série vai estrear na HBO Brasil no dia 28, mas eu não consegui esperar. Fui assistir o 1º episódio e, quando percebi, já estava a acabar o 3º. Em duas noites, já a tinha terminado.

É uma série de ficção científica, de política e de família. Deve muito a Black Mirror, a House of Cards e a Alan Ball e, ao mesmo tempo, ultrapassa todos eles.

As cartas foram embaralhadas, a jogada é nova, o paradigma mudou.

Years and Years é algo radicalmente novo, uma história tão intensamente do presente que vê-la hoje tem tanto de milagroso quanto de doloroso. Algumas das feridas em que ela mexe estão abertas ainda, outras ainda nem acabaram de se abrir. Não me espantaria se ela estivesse para o futuro como a Odisseia ou o Gilgamesh estão para nós.

É uma série cheia de lições, como o detalhe sutil de colocar palavras que seriam do autor na boca de personagens menos óbvias. O monólogo da avó no último episódio é um desses casos. Outra lição é a forma de projetar o presente no futuro próximo, mostrando como as pessoas simples respondem às grandes notícias, com pequenas ações cotidianas em vez de grandes atos de coragem. Reparem como o dinheiro é uma preocupação permanente para as personagens: quanto tenho para me aguentar, quanto ganhei, quanto perdi. Como nós, estas pessoas têm tanto de força quanto de vulnerabilidade, tanto de heróico quanto de manipulável.

Por muito que goste de Black Mirror, a verdade é que ele se perdeu um pouco nas suas próprias referências, principalmente depois do episódio "White Christmas". É um problema criado pela própria mecânica da série: os temas são limitados, mas as personagens, tramas e ambientes têm que ser mudados em todos os episódios. Isso leva, por um lado, à repetição e ao esgotamento das premissas e, por outro, à circunstância de nunca conseguirmos explorar a fundo as personagens. Quando não sabíamos o que esperar, cada episódio era uma bofetada na cara. Depois, vemo-los na esperança de reencontrar aquele lampejo que nos entusiasmou no início e que demora cada vez mais a chegar, o que ainda é mais amolecido pelos finais felizes da era Netflix. Years and Years, sendo só uma história do início ao fim, não tem este problema e consegue levar até ao fim todas as implicações que suscita.

Se Years and Years explodir, vai influenciar os formatos e os temas de toda a ficção televisiva que está por vir. Se permanecer como fenômeno “cult”, vai marcar o imaginário de todos os que a virem e, portanto, terá um resultado sensivelmente próximo. É um impressionante marco criativo na História da televisão.

Se acham que estou apenas me deleitando em exagero, vejam-na. O importante é isso: pelo amor de Deus, vejam-na.

Diamantino

Vi Diamantino.


Acho que o maior pecado do filme é propor-se como um monumento de exuberância, de "kitsch" e de barroco e nunca chegar a atingi-lo, porque não se atreve a ficar tempo demais com os pés fora do chão. O sub-enredo policial, principalmente, impede o filme de decolar e introduz uma perspectiva intrusa. Não precisávamos de Aisha para entrar no mundo de Diamantino, porque ela tira-nos de dentro do espaço mental dele, que é, afinal, o espaço mais fascinante de todos que vemos. O olhar toldado do jogador e o olhar material de Aisha chocam e apetece pedir para nos concentrarmos ou num ou no outro.

Diamantino padece de um excesso de ideias que o vira contra ele próprio, porque deixa à mostra defeitos que não se veriam se assumisse até ao fim o tom feérico e delirante, como a bidimensionalidade dolorosa das irmãs, dos vilões e, na verdade, de toda e qualquer personagem que não o próprio Diamantino. O Royale With Cheese diz-nos que a dispersão "faz com que o filme se vá perdendo [até que abrace] o absurdo por completo, começando a perder interesse". Sem querer ser picuinhas, eu diria outra coisa: é precisamente porque Diamantino não abraça o absurdo por completo que ele parece ficar aquém.

Ainda assim, é um filme que me parece muito importante. Não apenas pela grandiosidade visual, que a tem, ou pela forma como capta elementos da cultura popular e da atualidade e os baralha (Cristiano Ronaldo, o nacionalismo europeu, os refugiados), mas principalmente pelo simples fato de existir. Aponta um caminho de emancipação de ritmo e tema do cinema português que já vem de trás, com a inclusão da cultura verdadeiramente popular (Aquele querido mês de agosto de Miguel Gomes, Sapatos Pretos de João Canijo) ou com a reconfiguração da mitologia lusitana (Pedro e Inês de António Ferreira), e introduz um elemento de descontração, de "vamos pirar aqui um bocado e ver o que dá". No fundo, o grande trunfo de Diamantino é provar que um país de brandos costumes também pode ser o de um cinema bem louco.

Erving Goffman

Perhaps the real crime of the confidence man is not that he takes money from his victims, but that he robs all of us of the belief that middle-class manners and appearance can be sustained only by middle-class people.
The Presentation of Self in Everyday Life (1956).

Quatro coisas sobre "Chernobyl"

"Breaking the Waves" é um dos meus filmes do coração. Deliciei-me vendo Stellan Skarsgård e Emily Watson contracenando de novo, tantos anos depois.


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Craig Mazin escreveu "Chernobyl". No início dos anos 2000, durante os meus primeiros anos de profissão, ele tinha um blog com conselhos e observações sobre escrita que eu acompanhava muito. Mazin não é conhecido como autor de dramas políticos. Ele ganhou fama escrevendo sequências de comédias ("Scary Movie", "The Hangover"), o que só prova que quem sabe contar uma história fá-lo bem em mais de um género. Lembrou-me o casal André e Maria Jacquemetton, que, nos seus currículos, juntam tanto "Mad Men" quanto "Baywatch".

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Quando viajei pela Europa em 2003, estive em lugares como o hotel que se vê em "Chernobyl". No bloco de Leste não havia hostels baratos e improvisados em casas antigas nem hotéis moderninhos ou com luxo simulado. Eram edifícios esmagadores, feios e tinham nomes como "Grande Hotel dos Trabalhadores de Kiev" ou algo parecido. Como em muitas outras coisas, serviam para funcionar, oferecendo algo mínimo, mas para todos.

É muito difícil explicar às pessoas do Brasil o fascínio que a União Soviética e o Bloco de Leste no geral causam em mim, e julgo que em grande parte da minha geração, crescida na Europa durante os anos 80. Eu era criança, mas entendia que de um lado do mundo havia abertura, dinheiro, fartura e maravilhas pop e que o outro lado era o lugar do frio, da sisudez, de filas gigantescas em lojas e do silêncio. Que mistérios estavam do outro lado da Cortina de Ferro? É como se, no fundo da minha rua, houvesse uma casa grande e escura habitada por pessoas muito caladas e reservadas. Não queria morar lá, mas também não conseguia deixar de pensar em como seria lá dentro. Em 1986, tinha 5 anos, mas já conseguia entender que, de repente, uma nuvem podia vir daqueles confins e derramar veneno sobre as nossas cabeças.

Batalho para explicar este saudosismo "good bye, lenin" que em Praga vi assumir a forma de recordação para turistas vendidas na rua (estrelas vermelhas, itens militares). Poderia dizer que é a nostalgia por um tempo em que as divisões do mundo eram mais claras e fundamentais, mas não me parece que seja mesmo isso. Acho que é saber que, um dia, pressentíamos que havia todo um continente de pessoas com objetivos e ideais de vida diferentes dos nossos. A nostalgia não é por um mundo mais inocente, mas por um em que a globalização ainda não estava terminada.

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Porém, que fique clara uma coisa: a URSS de "Chernobyl" é bem criada, mas é uma URSS mitológica. A série é sobre a nossa relação do Estado e sobre a responsabilidade individual dos cidadãos com a verdade, ou seja, é sobre nós e sobre o mundo de hoje, pejado de democracias iliberais, gente insana que desconfia da ciência e tudo o resto.

Neymar e a inocência

Sou um apreciador muito moderado de futebol. Talvez por isso me custe entender a necessidade da exposição, no jornal mais assistido do país, das mensagens trocadas entre Neymar e a mulher que o acusou de estupro. É possível que Neymar seja culpado, é possível que a mulher esteja tentando se aproveitar dele e é possível que ambas as coisas sejam verdade. Seja o que for, é absolutamente terrível que a mídia promova uma absolvição popular - tão grave quanto uma condenação - do pobrezinho menino astro dos relvados. É o juiz, não o público de TV, quem tem de analisar as provas produzidas e decidir se Neymar constrangeu "alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou (...) outro ato libidinoso". E, não, não é porque o próprio Neymar fez essa exposição despudorada da sua intimidade que os telejornais devem ser transformados numa latrina onde se faz a exploração reles de um assunto que merece tratamento sério.