Black Sabbath, a comunhão e a teimosia

Como há tempos vi a Trilogia dos Bichos, do Dario Argento, e fiquei interessado nas raízes do Giallo e do terror italiano, aproveitei para ver o Black Sabbath do Mario Bava.

(E, sim, o nome da banda veio deste filme)

É uma antologia de 3 histórias. Achei a primeira, sobre uma mulher estalqueada por um homem que não pára de ligar (para o telefone fixo, ainda por cima), monótona. A segunda, sobre uma família acossada por vampiros e com Boris Karloff (que também apresenta o filme), uma imitação pouco inspirada dos filmes da Hammer. Já me estava a perder num loop da Wikipedia quando chegou a terceira história, "A Gota de Água".

Uma enfermeira é chamada para preparar o corpo de uma condessa recém-falecida que gostava de fazer sessões de espiritismo. Enquanto arruma o cadáver, rouba-lhe um anel de safira do dedo e leva-o para casa. Durante essa noite, a condessa morta - ou visões dela motivadas pelo remorso, não se sabe - vem atormentar a moça.

A morta, apesar de ter um visual inquietante, também é claramente tão postiça quanto o Chucky, o Brinquedo Assassino. No entanto, os momentos em que ela assombra a enfermeira são bem arrepiantes.
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Gosto de terror barato, com uma mudança de plano brusca e um barulho alto repentino, e, por isso, aprecio muito o gênero"assombrações". Sempre pensei no porquê. Além do "bu!" visual, o fantasma não ameaça: a menos que seja um espectrinho teimoso, à Poltergeist, o máximo que ele consegue fazer é dar uns sustinhos nas pessoas. Foi então que me lembrei de uma fala no primeiro episódio d'O Reino, do Lars Von Trier:
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Eu afirmo que o medo de ser tocado, de se aproximar das pessoas, é o medo da morte. Porquê? Porque é o medo da comunhão. Sempre que vocês trocam de lugar no ônibus para evitar contato, sempre que evitam pôr o dedo na ferida da um paciente, isso é o medo da comunhão, dessa comunhão maior. Todos em que aqui trabalhamos aceitaram o seu lugar na comunhão.... Um cadáver não tem exigências.  Com generosidade sublime, ele entrega o seu corpo à ciência que pertence a todos nós.

As histórias de fantasma representam numa escala essencial um elemento que, percebi então, faz parte de qualquer história de terror: a teimosia. O stalker não deixa de importunar, o vampiro não deixa de querer morder, o demônio não sai do corpo. A assombração leva esta teimosia ao nível básico da vida e da morte: ela insiste em continuar no mundo dos vivos apesar de já não pertencer a ele.

Em qualquer variante do terror, a vítima reflete e devolve essa teimosia, insistindo num erro (não fugir do lugar mal assombrado, não chamar a polícia, não tirar umas férias, etc) até que não consiga mais sair da cilada que lhe é imposta. Num filme de terror, ninguém pensa em oferecer um café à presença incômoda que o visita; quem é vivo tem medo de dar-se, porque dar-se é ser igual aos mortos, e dar-se aos mortos ainda mais.

É por isso que Les Revenants não é um filme de terror. Quando os mortos aparecem, eles não são uma ameaça, porque eles não querem comer, tocar ou importunar ninguém; eles aparecem, e é tudo. As regras que definem o seu acolhimento são as regras do nosso mundo; não há uma insistência incompreensível e sobre-humana em invadir o espaço de alguém.

Quem diria, o terror não é mais do que emanações extremamente chatas.

Fica a reflexão, e fica também o delicioso final anticlimático de Bava, que homenageia os fazedores de cinema ao mesmo tempo que diz "não se assustem, que isto foi só um filme".
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O Oscar e os filmes simpáticos

Li há dias que pensam atribuir um Oscar a filmes populares para aumentar a popularidade do prêmio. Coisa de tontos. O Oscar nunca foi mais ou menos visto porque satisfazia o público televisivo. Nós viamo-lo para espiar figuras inalcançáveis e um mundo proibido aos comuns mortais. Isto inclui os mais cinéfilos, prontos a falar mal de tudo, e às vezes com razão (sinceramente, Gladiador?). Por uma noite, toda a gente via de relance o brilho das estrelas e sonhava.

A pouca popularidade do Oscar é um sinal dos tempos. Porque vou ficar acordado até tarde para ver quem todos os dias divulga a sua privacidade no Instagram?

Já que estamos nessa, quero propor uma categoria também: a dos filmes simpáticos. Ou melhor, a dos filmes que são atos de amor. Há meses, vi um chamado Call Me Lucky, dirigido por Bobcat Goldthwait, de quem muitos se lembrarão como o policial drogado da Loucademia de Polícia. Do início ao fim, o filme é um ato de amor ao seu mentor, o incrível Barry Crimmins. Está aqui, para quem quiser ver.


Outro, que acabei de rever, é um filme desequilibrado e bonito e encantador. Chama-se Che Strano Chiamarsi Federico, é o último que Ettore Scola dirigiu e aborda a sua relação de uma vida inteira com Federico Fellini. Dividido em duas partes que têm pouco a ver uma com a outra, pouco profundo, imperfeito e indulgente com as suas próprias imperfeições, vê-se, ainda assim, com encanto, porque percebe-se que é uma despedida e, ao mesmo tempo, uma homenagem querida de um amigo a outro.

O Atalante, espaço mental e duas masturbações

Já tinha visto O Atalante (L'Atalante, 1934) quando tinha uns 20 anos. Foi bom ter tido mais tempo agora - de vida, de espectador e de coisas pensadas.

Algo que não tinha presente quando o vi pela primeira vez é a ideia do filme enquanto espaço mental, uma ideia que me pareceu fortalecida principalmente após os surrealistas. Falei dela, sem desenvolver, quando escrevi sobre A Concha e o Clérigo, Zero de CondutaGanga Bruta.

Por "espaço mental", não me refiro ao modo como o espectador percepciona o espaço mostrado no filme, mas à forma como o cineasta trabalha o espaço e as personagens da sua história de forma a revelar algo não naturalístico; apesar de vermos formas e pessoas concretas, elas são instrumentos usados pelo autor para revelar uma psique, um sentimento ou uma tensão específica na forma como ele ou uma personagem reagem ao mundo. Estou partindo do raciocínio de Carrière e Bonitzer em Prática do Roteiro Cinematográfico, sintetizado nessa frase que qualquer pessoa entenderá:
No primeiro Rambo, tudo acontecia na cabeça da personagem; nos seguintes, tudo acontecia na cabeça do público.

Porém, estou indo além. Não existem apenas filmes que vemos acontecer na cabeça da personagem e os que vemos acontecer na cabeça do público, mas também os que vemos acontecer na cabeça de quem os fez. O autor deve, sim, deixar-se levar pelo filme, como Carrière e Bonitzer defendem, mas não só no sentido de que, enquanto criador, ele deve ser como um surfista levado pela onda/filme/história, e também no de que, enquanto narradoro filme o leva até ao espectador ao mostrar as suas escolhas sobre o ritmo dos movimentos dos atores, o andamento da edição, os diálogos e os sons, a escolha das situações representadas, a forma de enquadrar os espaços, a perspectiva sobre as cenas, a arquitetura dos cenários, as peculiaridades da direção de arte - em suma, todos os elementos cinemáticos (e não apenas os essencialmente cinemáticos, mas também o texto, a representação, a arte estática) que expressam uma ideia de como mostrar. 

Por isso, também estou indo além dos teóricos da Nouvelle Vague e afirmando o "autor" como não apenas o diretor, mas como a mente coletiva que faz o filme, soma das diferentes individualidades que o constroem, do roteirista ao projecionista, e da qual o diretor será o articulador e talvez principal, mas nunca exclusivo, decisor. Ao enunciar-se no filme, essa mente coletiva manifesta uma autoria coletiva ao construir coletivamente o narrador.

O Atalante fez-me pensar muito nisto, porque, desde o início, sentimos que ele é orientado pela presença de um olhar e de uma voz. Por trás das suas imagens, há alguém que nos quer falar da vida enquanto viagem, do casamento enquanto unidade e, mais profundamente, do espaço privado ao mesmo tempo confortável e apertado em contraste com o espaço público da liberdade, mas também do caos e da agressão.

Tudo começa com um jovem casal fazendo a lua de mel no barco em que o marido Jean é capitão. A esposa Juliette atravessa o convés ainda no seu vestido.
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Aqui, o navio é limite, como no filme brasileiro de 3 anos antes, mas o rio também é a vida, como em Apocalypse Now. Quando, após alguns dias de viagem, Juliette pergunta "Chegaremos em breve?", Jean responde "Aonde?". A sua viagem não tem destino, ou melhor, o destino é a própria viagem.

Dentro do barco, no espaço doméstico, as coisas são apertadas. Há uma luta constante entre os corpos e os espaços, uma tensão permanente entre o desejo de liberdade e a angústia que ela acarreta, assim se antecipando uns anos a O Existencialismo é um Humanismo de Sartre:
Estamos sós, sem desculpas. É o que posso expressar dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si mesmo, e como, no entanto, é livre, uma vez que foi lançado no mundo, é responsável por tudo o que faz.

Por isso é que a figura do imediato, Père Jules, é tão importante: velho, mas forte e viril, ele simboliza a pulsão incontrolável e primitiva da vida invadindo o espaço dos recém-casados. Não é à toa que, a certo ponto, eles não conseguem ter uma saída noturna por terem que esperá-lo; Père Jules é um ser livre, anfíbio, tanto da terra quanto do rio, que traz aquela para este. A cena no quarto, em que ele mostra o seu boneco para Juliette, se despe para lhe mostrar suas tatuagens e acaba tocando acordeão, prenuncia o que espera a moça inocente quando ela se aventurar sozinha na cidade.
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O que O Atalante nos mostra é, ao fim e ao cabo, pessoas tentando achar o seu caminho através da escuridão. Aquele plano da noiva atravessando o convés germina a construção de toda uma concepção do mundo. Portanto, o que aqui vemos não é exatamente o que vemos; o que acontece e onde acontece estão para servir a razão porque acontece.




Para terminar, duas curiosidades: O diretor de fotografia, Boris Kaufmann, era irmão de Dziga Vertov. E parece-me que ele, Jean Vigo ou ambos gostavam de pôr os atores a subir coisas.

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Por fim, eu poderia dizer essa é a mais bela montagem paralela de duas masturbações que já vi. Só não digo porque não sei se alguma vez vi outra.
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SPOILER: Terra sem Pão (Las Hurdes, Tierra sin Pan, 1933)

Para alguém que começou a obra destruindo toda e qualquer instituição social, é curioso como Buñuel dependeu tanto da generosidade de oportunos mecenas. Depois de os aristocratas franceses deixarem de financiar filmes de vanguarda para oferecer às esposas no aniversário, ele teve que esperar até que um amigo anarquista vencesse a loteria para produzir o seu filme seguinte.

Há algo fora do lugar em Terra sem Pão. Não Buñuel; ele continua igual a si mesmo. Só este plano de um bebê coberto de ouro durante uma festa religiosa já o prova. Um ser coberto por penduricalhos cujo valor não consegue entender é o símbolo perfeito da hipocrisia de uma Igreja Católica que condena os seus membros à corrupção moral desde a nascença.


A minha questão com o filme é que há muita coisa nele que não é crível. E isso faz-nos questionar todo o resto. Não acredito que a mulher com caxumba tenha 32 anos. Não acredito que a menina com uma simples garganta inflamada estivesse morta quando os cineastas voltaram à aldeia. Não acredito que todas as crianças da aldeia tenham sido adotadas para que as famílias pudessem receber uma pensão estatal.

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Segundo Buñuel, essa é a Miss Juventude de Las Hurdes.[/caption]É que, convenhamos: apesar de já sabermos desde L'Age d'Or que Buñuel não tem muito amor a bichos, se ele é capaz de fingir como acidentais as mortes de uma cabra e de um burro, é bem capaz de fingir muitas mais coisas!
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Eu posso estar sendo injusto, pois ainda estávamos muito longe do cinéma vérité de Jean Rouch. Terra sem Pão é um documentário argumentativo, ou seja, é mais importante aquilo que Buñuel diz do que aquilo que ele mostra. Todos os defeitos humanos cabem à população de Las Hurdes: eles são pobres, doentes, mal alimentados, padecem de toda e qualquer desgraça possível e o mero fato de sobreviverem parece imbuído de uma teimosia miraculosa. Simpatizamos imediatamente com esta gente, seja ela real ou ficcional, e esse é o objetivo do autor: fazer-nos sentir compaixão pelo povo paupérrimo três anos antes do início da guerra civil espanhola. O epílogo da versão de 1936, primeiro ano da guerra, mostra bem os propósitos de Buñuel:
A miséria mostrada nesse filme tem remédio. Em outras regiões da Espanha, os montanheses, camponeses e operários conseguiram melhorar suas condições de vida, associando-se, ajudando-se mutuamente e fazendo reivindicações aos Poderes Públicos. Esta tendência que orientava o Povo para uma vida melhor orientou as últimas eleições e deu lugar ao nascimento de um governo de Frente Popular. A rebelião dos generais, ajudados por Hitler e Mussolini, iria restabelecer o privilégio dos grandes proprietários, mas Operários e Camponeses da Espanha vencerão Franco. Com a ajuda de antifascistas de todo o mundo, a calma, o trabalho e a felicidade ocuparão o lugar da guerra civil e farão desaparecer para sempre os lugares miseráveis que este filme mostrou.

Não deu muito certo, mas uma coisa é certa: Franco já se foi há muito tempo e o filme ainda é visto hoje em dia.

SPOILER: Ganga Bruta (1933)

O diretor de fotografia se chama Afrodísio, nome deveras interessante e cuja revitalização eu defendo.

Se em Limite a gente tinha um piano, aqui temos um órgão de igreja. Não sei porquê, mas o cinema brasileiro do início dos anos 30 adorava um teclado.

O filme foi gravado como mudo, e falas foram adicionadas depois para garantir a sua viabilidade comercial numa época em que o som era a novidade. Gostaria de saber, no entanto, qual foi o critério de seleção para decidir quais as falas merecedoras de gravação. Gostaria mesmo muito.
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Antes de ser recuperado pela geração do Cinema Novo, o filme era conhecido como "o abacaxi da Cinédia", que, fundada 3 anos antes, fora a primeira produtora de cinema brasileira. Foi caro para fazer e o pouco público que o viu não ficou muito agradado. Não entendo o porquê: afinal, o protagonista apenas assassina a própria esposa na noite de núpcias e é absolvido pelo tribunal porque a morte se deveu a ele se descobrir corno involuntário. É uma história que hoje teria certamente muita mais aceitação.

Existem três cinemas em Ganga Bruta: um cinema burguês, de salão, que filma as personagens em planos quietos, em interiores, a uma distância respeitável; um cinema futurista, de máquinas e construções, com travellings feitos a partir de trens e de guindastes, com planos picados em que os personagens viram pormenores no meio da paisagem industrial; e um cinema onírico, como nas cenas de jardim, com foco suave,  oscilações de uma câmera no ombro e que segue as personagens de perto, como se fossem reflexos de suas próprias psiques.

A influência freudiana de Humberto Mauro foi admitida. O filme é cheio de símbolos fálicos, como pedestais e coisas sendo erigidas. A ninfeta Sônia parece extremamente interessada em agradar o engenheiro assassino (aliás, todo mundo esqueceu que o homem é um assassino?!), apesar de estar envolvida com Décio, o colaborador próximo do homem. Então, ela própria está sendo adúltera, como se o filme dissesse que não dá para confiar em mulheres. Hoje em dia, parece piada, mas lembra-me algo que li uma vez sobre como o machismo nem sempre se expressou pelo binômio "homem com libido descontrolada e mulher que o constrange": há muito tempo atrás, numa galáxia distante, era o ventre feminino que deveria ser domado pelo homem como se fosse um animal selvagem. Sabemos que Freud começou a carreira tratando pacientes de histeria (do grego hystéra, ou seja, "útero"): a conexão é clara.

É um filme ótimo para analisar os estereótipos de gênero construídos no início do século 20. Os homens são seres brutos que constroem, destroem, bebem, lutam e são motores e decisores. As mulheres são seres delicados e submissos que seguem as suas vontades volúveis e sentimentos inconstantes. Homem-fogo e mulher-água: Ganga Bruta não se acanha nada para construir esse simbolismo.

O nosso engenheiro assassino envolve-se numa luta com os trabalhadores numa taberna. Vitorioso, sai dela com a camisa rasgada, como uma espécie de Rambo dos anos 30.

Ganga-rambo 
O tema de Ganga Bruta é o ciúme e o desejo ou, mais propriamente, o Intruso: intruso em lugares e intruso em relacionamentos. Isso misturado com símbolos fálicos freudianos e um engenheiro assassino, claro.
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O que seria do cinema se os atores não tivessem costas para fazer um fundido de vez em quando?
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Sempre tive a impressão que o brasileiro é muito melhor fazendo escândalo durante uma briga do que efetivamente brigando. Esse murro não me vai fazer mudar de opinião.
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Ganga Bruta é um filme dos anos 30, um pouco datado e fácil de ridicularizar. É notório que eu próprio não consegui resistir a esse exercício. Porém, ele está cheio de coisas interessantes e tem vários momentos brilhantes. Esta cena da vigília é incrível: a relação fotográfica entre as personagens e o espaço faz-nos entender que estamos em pleno espaço mental, conceito ao qual já aludi falando sobre Zero de Conduta e de que falarei melhor depois.

O filme termina com o casamento da ninfeta e do engenheiro assassino. Auguro um destino incrível para esse casal.

O que eu, homem, português e heterossexual, aprendi com Alan Ball

Lamento não andar com muita vontade de falar sobre as tropelias dos políticos no Brasil ou em Portugal. Não vejo nada de muito novo ou particularmente interessante. Além disso, ando a pensar bastante sobre a nova série do Alan Ball para a HBO, Here and Now.

A primeira razão é do mundo e do ofício. Six Feet Under (A Sete Palmos/Sete Palmos de Terra) foi a minha série preferida do início da Nova Era Dourada. Li todas as críticas contra Beleza Americana, mas continuo a achá-lo um filme lindo e uma história maravilhosamente contada.

Ver Alan Ball hoje é, de certa forma, ver o anti-Netflix. Here and Now não tem um gancho incrível como as séries da plataforma. "Um rapaz começa a alucinar com o número 11:11 e isso tem implicações para toda a sua família" não é uma premissa high-concept como "um político capaz de tudo para se tornar presidente dos EUA" ou "Really dark Amblin".

Porém, onde cada vez mais séries do Netflix falham - no desenvolvimento da premissa sonante - é onde Alan Ball brilha. As personagens são cheias de contradições, defeitos e, por isso, profundamente humanas. A família, núcleo da série, evolui ou regride como um grupo em que cada um cumpre uma função. Já não temos homens difíceis, temos pessoas difíceis. É difícil recomendar uma série de Alan Ball para um amigo, porque humano é um conceito difícil de recomendar - embora seja ótimo para assistir.

A segunda razão é minha. Here and Now lembra-me de assistir Six Feet Under com 20 e poucos anos e de pensar, por exemplo, que nunca vira uma série com personagens usando drogas sem ter moralismos atrelados. E lembra-me também que, assistindo-a, me tornei uma pessoa melhor.

Explico-me. Cresci numa vila pequena, num Portugal pequeno. Felizmente, fui educado bem o suficiente para reconhecer e matar na base a maioria dos preconceitos que vinham com a cultura em geral (obrigado, família; obrigado, professores). Por isso, nunca achei que afetos íntimos ou públicos fossem coisa a ser ditada por terceiros.

Ainda assim, raramente eu vira dois homens beijarem-se na rua. Não na minha terra, pouco no meu país. E, no íntimo, bem no íntimo, a imagem causava-me estranheza. Não reprovação ou incômodo, reparem, mas era algo que me suscitava reflexões silenciosas e condescendentes, ao estilo "que bom que estas pessoas se estão amando livremente, olha que gesto de coragem, muito bem!".

Eu não gostava disso, porque - eu sabia - enquanto não sentimos algo como banal, não conseguimos senti-lo por inteiro como normal. O normal tem que ser um pouco banal.

Six Feet Under tinha sexo. Muito sexo. Heterossexual, homossexual, entre adultos, jovens adultos, velhos adultos, dentro de relacionamentos, fora de relacionamentos, à missionário ou com fetiches. Como as drogas, o sexo não era apresentado com moralismo; era mostrado assim como ele é, como algo que acontece.

No primeiro episódio, ver David beijar Keith fazia-me pensar "que afirmação, que autor corajoso, muito bem!". No último, David apenas beijava Keith, e nada mais. Lembrei-me disso aqui no Brasil quando a novela mostrou o primeiro beijo gay e todo mundo aplaudiu (mesmo; escutei na minha vizinhança). Gostaria que chegasse o dia em que já se viram tantos que nem dá vontade de aplaudir.

Acho que, para assistir Alan Ball, é preciso gostar de pessoas. Eu gosto de pessoas. Graças a ele, pude gostar um pouco mais de mim também.

A Croácia é nazista?

Há uma coisa que me inquietou durante a Copa, que foi a insistência em dizer que os jogadores e a presidente croata eram fascistas e nazistas. Eu já estive na Croácia. Achei um lugar muito bonito e com pessoas muito simpáticas. Vi muitos sorvetes e nenhuma suástica. Depois de ver o seguinte vídeo, pesquisei o que queria ter pesquisado semanas atrás.

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PRÉVIAS
O lixo do passado caiu forte nalguns lugares.

Uma vez vi um documentário chamado What Our Fathers Did: A Nazi Legacy, sobre dois filhos de criminosos de guerra nazistas.

Há uma sequência que foi particularmente reveladora: um deles vai a uma festa de aldeia na Ucrânia onde o pessoal fazia uma reconstituição das Wafen SS. Tipo Meu Querido Mês de Agosto, mas com suásticas.

Sempre tinha pensado os nazistas como invasores. Foi a primeira vez que percebi que há gente que os associa a libertação e independência, principalmente quando comparados com os comunistas que vieram depois.

Imagino que isso, misturado com os nacionalismos exaltados com a guerra da Jugoslávia, deu uma bela duma salsada.

(aliás, se tiverem estômago, vejam A Serbian Film e curtam a metáfora sobre a insustentabilidade da vida após uma guerra civil)

Uma maravilha, a confusão que o lindo do século XX deixou pelos Balcãs e Leste Europeu, né?

SOBRE O VÍDEO E AS ACUSAÇÕES

O HDZ, partido da presidente, não é exatamente de extrema direita. É um partido de democracia cristã, tipo CDS-PP em Portugal ou - surpresa! - o Democracia Cristã no Brasil. Isso não é grande coisa, mas também não é lá essas coisas (coisas nazistas, bem entendido).

A Croácia é um regime parlamentarista, então, a presidente não terá tido grande responsabilidade no péssimo tratamento dos refugiados. Nem sei se ela ratifica as leis do governo. É verdade que este também é HDZ e que governa em aliança com partidos mais nacionalistas e radicais.

Porém, a Croácia não é de todo um país entregue à direita: a coligação do SPD (o maior partido da oposição, continuação da antiga Liga dos Comunistas e que estava no poder antes) perdeu por uns meros 3 pontos.

Curiosamente, o senhor do SPD, de esquerda, só perdeu porque foram vazados uns áudios dele numa reunião com veteranos de guerra a dizer que a Bósnia não é um país de verdade e que os sérvios são lamentáveis.

(repito: salsada, salsada)

Sobre a bandeira, eu até fui pesquisar quando isso começou a aparecer, mas, parafraseando o Trumpa, acho que é fake news.

A bandeira da Croácia nazista tinha sobreposto o "U" da Ustase.

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Essa da foto parece-me mais a que eles adotaram em 1990, imediatamente após a queda do comunismo e logo antes da independência, e era a bandeira da oposição ao comunismo no exílio. A bandeira atual é uma atualização dessa. É verdade que o brasão é semelhante, mas também é verdade que esse brasão já era croata vários séculos antes de Hitler ser bebê.

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A minha conclusão é que a Croácia é claramente um país com uma série de contradições agudas após guerras e totalitarismos vários, que deram em nacionalismos exacerbados e políticos que se aproveitam deles.

Nazista e fascista, não me parece.

SPOILER: Zero de Conduta (Zéro de conduite, 1933)

Vi este filme depois de ter revisto A Vida de Brian, o que me deixou pensando: o banimento de um filme significa que ele será considerado obra-prima décadas depois? Será esse o destino da peça recentemente banida em Pernambuco?

Zero de Conduta foi uma grande influência de Truffaut em Les quatre cents coups. Vejo-o integrando uma linhagem francesa exímia em filmar e mostrar os dilemas de crianças e adolescentes, onde incluo também NapoleãoEntre les mursÊtre et avoirLes Choristes, Un sac de billes. Filmar com crianças é difícil, mas está cada vez mais claro que os franceses criaram uma tradição e dominaram essa arte.

Jean Vigo era filho de um anarquista espanhol que morreu torturado e talvez isso explique o simbolismo que se monta desde muito cedo: os alunos são bagunceiros, mas espontâneos, solidários e bons, enquanto os professores e diretores já se deixaram corromper pela autoridade da vida adulta.

  •  Um dos alunos tem um ataque de sonambulismo no dormitório. Os outros são solidários com ele, como se eles soubessem quão precioso é manter um sonho no meio de uma realidade dura.

  • Há um adulto que está mais próximo dos alunos do que dos professores: o jovem monitor, que, como diria Capitão Nascimento, ainda não entrou "no sistema". Ele imita Carlitos, brinca, persegue uma paixão no meio de um passeio escolar, faz um desenho de Napoleão que vira uma personagem animada. Tudo é possível para quem não perde a imaginação, parece dizer Vigo.

  • O diretor da escola, a figura de maior autoridade, é um anão. Na sua primeira aparição, vemo-lo guardar o seu próprio chapéu sobre uma redoma de vidro. Ou seja, a autoridade é um adorno que se adquire e se guarda para ser exibido. Há lugar para a ostentação, mas não para o sentimento - por isso, mais tarde, o diretor censura alunos por serem amigos, dizendo que algo assim não pode ser.

  • Um professor gordo e asqueroso, que fica cheirando as coisas sem motivo, toca inapropriadamente nos alunos. Um deles, claramente farto de aguentar o velho, fala que ele é "um monte de merda". Estamos falando sobre abuso infantil em 1933 e mostrando como a consciência de que ele o é existe desde sempre. Nunca mais aceitem o argumento "antigamente era diferente" para nada.

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O que é essa câmera lenta, meu Deus? As penas voando como flocos de neve. Os alunos marchando como soldados em plena campanha militar. Que coisa bela.
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Durante a comemoração, eu penso em Fellini. Eu sei, eu sei: penso em Fellini muitas vezes. Mas é sério: só falta uma multidão ruidosa fazendo uma procissão para ser uma cena do mestre italiano. Repararam que a audiência é composta por bonecos? Este é só mais um dos momentos em que o filme nos diz que não estamos num espaço naturalístico ou concreto, mas mental, uma mistura assumida das memórias de Jean Vigo do colégio interno com as fantasias de como poderia ter sido. Depois dos filmes franceses desta época que já vi, parece-me claro que a influência surrealista e o seu tom onírico pesado foram marcantes, ainda que aqui o sonho venha filtrado pela memória.

No final, os alunos revoltosos são vitoriosos. Mas será que são mesmo? Enquanto eles escalam um telhado-montanha e festejam a sua vitória, os adultos observam-nos, protegidos no conforto de uma sala e com um certo orgulho paternalista. Parece que, a qualquer momento, eles podem sair para interromper a festa. Parece que eles pensam "oh, como nós também já fomos assim" e que o que espera os jovens do outro lado é transformar-se no que eles mais odeiam. No entanto, esse momento posterior já não entra no filme: ele é um recorte e a lembrança boa daquele dia em que tudo parecia poder ser diferente

SPOILER: O Vampiro (Vampyr, 1932)

Carl T. Dreyer já provara que sabia fazer imagens com força, mas em 1932 o jogo tinha mudado. Para os diretores desta época, considerar o som parece ter sido tão melindroso quanto considerar a televisão 30 anos depois ou a internet hoje em dia. Vampyr até pode ter som, mas os intertítulos frequentes e a forma de filmar fazem-nos pensar que estamos vendo algo que, formalmente, está ainda no reino do mudo.

Dá para entender o porquê. A dublagem ainda não era uma solução tecnicamente perfeita, e os atores tinham que dizer as suas falas em duas ou três línguas diferentes para encaixar direitinho as vozes que vinham depois. Aqui, Dreier filmou em francês, inglês e alemão - e talvez por isso reduziu ao mínimo o número de diálogos.

Não sei se Dreyer confiou que o público já conhecesse os contos de Sheridan Le Fanu aqui adaptados ou se nem quis se incomodar com isso, mas a verdade é que este filme é muito menos uma história e muito mais uma coleção de inquietações visuais assentes no ritmo, tanto da edição quanto do movimento.

O ator protagonista é creditado como Julian West. Na verdade, ele é Nicolas de Gunzburg, um riquinho de ascendência russa, brasileira, portuguesa e polonesa. Na época, era moda entre os aristocratas financiar curtas de diretores de vanguarda (já tivemos aqui outro exemplo, no profundamente antiaristocrata L'Age d'Or). No seu entendimento particular de lei Rouanet, Gunzburg, que queria muito convencer a família de sua vocação para representar, prometeu financiamento a Dreyer com a condição de ser o ator principal do filme. O diretor acedeu e soube aproveitar as capacidades limitadas de Gunzburg para o papel de um homem que não faz muito mais além de observar coisas estranhas com uma expressão nula.

Estamos vendo aqui o início do cinema de terror (não por acaso, a estreia do filme foi atrasada para não competir com o Dracula de Tod Browning e o Frankenstein de James Whale, ambos de 1931). O suspense ainda não é bem construído: momentos que esperaríamos lentos são rápidos demais, como uma porta misteriosa se abrindo; e momentos que esperaríamos rápidos, como a leitura de um texto escrito, são lentos demais.  Mas vamoquevamo. A direção e o ritmo são hipnóticos, lembrando o paralelismo entre cinema e hipnose que Lars von Trier (admirador confesso de Dreyer, que até dirigiu um roteiro que o este deixou incompleto) fez nos seus primeiros filmes. Os planos são cheios de sombra, movimentos sinuosos, imagens misteriosas, e fascinam tanto que até nos permitem ultrapassar a falta de empatia com o protagonista. Vejam esse trabalho com a sombra, por exemplo. Boa sorte para os filmes da Marvel em fazer em alguma coisa que deixe você mais inquieto.
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A primeira vez que vemos alguém sorrir é quando uma mulher se torna vampira na nossa frente, como se o sorriso fosse coisa do demônio e a melancolia e a tristeza a condição natural do ser humano. Um sorriso na mão de Dreyer é tão ou mais inquietante do que uma dentadura na mão de Coppola.
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Mais do que um filme de terror, Vampyr parece uma exploração da psique de um homem que perdeu a noção de limites entre a realidade e imaginário, uma espécie de Dom Quixote das trevas. Dreyer constrói o filme como um mistério surrealista, onde o protagonista anda por um mundo desconhecido e ninguém questiona a sua presença. Mas, quando um livro relata que os vampiros andam por um reino de sombras, percebemos que é precisamente isso o que ele está fazendo. E, então, apercebo-me: é também isso que eu, espectador, estou fazendo. Então, o filme é a fantasia tanto do protagonista quanto a minha; e somos, tanto eu quanto ele, vampiros dessa fantasia que observamos.

Eu disse "fantasia"? Leiam "pesadelo".

SPOILER: Limite (1931)

A princípio, temia falar sobre cinema brasileiro, porque isso significa admitir o meu desconhecimento de grande parte da cinematografia do meio onde trabalho. Mudei de ideias. Primeiro, porque esta é uma viagem de conhecimento - que não deve ser confundido com o autoconhecimento da moda; esse é circunscrito a nós mesmos, o que me parece um campo bastante limitado. Segundo, porque imagino que muito boa gente (excluindo os meus bons amigos bacharéis da ECA-USP) também não viu as obras de que vou falar aqui.

A pergunta surgiu-me: devo assistir estes filmes antigos como um espectador da época em que eles saíram ou como eu, JV Nande, vivo décadas depois e com uma cultura visual completamente diferente? A primeira hipótese seria impossível para mim. A segunda, injusta para os filmes. Então, tento fazer as duas coisas: contextualizá-los no tempo do mundo e da arte, sim, mas sendo fiel ao meu gosto. Afinal, sou cinéfilo, não professor.

Li um pouco sobre Limite antes de o ver, mas expressões como "proto-imagem", "estado amorfo fluido" ou "cérebro-câmera" não me entusiasmaram por aí além.

À primeira vista, ele me lembra muito A Concha e o Clérigo: plástico, cheio de fundidos, enquadramentos fora do comum, o espectador sendo convidado a construir o significado do filme. O ritmo é lento, bem mais lento do que o dos filmes mudos sobre que escrevi até agora. Nota-se a sua intenção de fazer arte pela arte e os poucos recursos com que foi filmado. Talvez o título seja uma piada com o tamanho da produção.

Em todos os sentidos, este é um filme experimental, porque faz experiências com a linguagem cinematográfica, mas também porque Mário Peixoto experimenta o cinema. O fotógrafo Edgar Brasil parece livre para fazer o que quer, e os seus travellings e planos picados e enviesados lembram o que, menos de uma década depois, Orson Welles, suposto admirador, faria no cinema americano. Porém, às vezes, parece que o filme nos diz "olha eu filmando isso aqui, que legal!", ou porque nos quer fazer ter a noção da câmera ou porque o câmera padecia de TDAH.  Veja-se este plano, por exemplo, a que gosto de chamar "mas que linda florzinha!".
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Limite tem 87 anos, a mesma idade de Fernando Henrique Cardoso e de Paulo Maluf. Todas as pessoas que nele aparecem e que o fizeram estão mortas.  Porém, digam lá se esta rapaziada não parece os vosso amigos hipsters com um belo filtro Moon por cima.

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O cinema é uma arte de fantasmas. Ou, como melhor diria André Bazin:
Essas sombras cinzentas ou sépias, fantasmagóricas, quase ilegíveis, já deixaram de ser tradicionais retratos de família para se tornarem inquietante presença de vidas paralisadas em suas durações, libertas de seus destinos, não pelo sortilégio da arte, mas em virtude de uma mecânica impassível; pois a fotografia não cria, como a arte, eternidade, ela embalsama o tempo, simplesmente o subtrai à sua própria corrupção.

Pergunto-me se, surgido em plena ditadura Vargas, Limite não terá um viés político. De qualquer forma, o sentimento que nele domina parece-me endêmico no Brasil: neste país gigante, as pessoas sentem-se presas e sem escolhas perante um destino do qual não conseguem escapar. Será que os amigos de Mário Peixoto entenderam isso na primeira sessão do filme? Ou será que saíram sem terem entendido absolutamente nada e falando para o diretor Nossa, muito bom, que filme maravilhoso você fez?

Se há um defeito que se poderá apontar a Limite é que ele é visualmente repetitivo. Um nadica de nada, assim. Não precisamos ver o mesmo plano duas, três, quatro vezes para entender o que ele quer dizer. Não precisamos de tantos cactos para espicaçar nossa curiosidade. Não precisamos de planos intermináveis das ondas do mar para sacar que está sendo tratada a transitoriedade do humano em contraste com a violência perene da Natureza (quem falar que Mangaratiba, onde o filme foi gravado, é uma das suas personagens principais não vai ganhar o prêmio de Frase Mais Original e/ou Menos Óbvia do Ano).  Limite é como um amigo teimoso que suportamos para ouvir a novidade interessante que ele tem para nos contar.

Não sei se é devido à Depressão americana ou ao avanço dos fascismos, mas sinto nas obras deste período um pessimismo enorme. Em Limite, uma mulher que foge da prisão e uma esposa que abandona o marido abusador ganham o prêmio de ficarem presas num barco com um homem cuja amante morreu. Já ouvi histórias mais alegres. Aliás, um dos livros que mais me fez rir na vida chama-se Três Homens e Uma Canoa.

Dá para entender a importância de Limite, uma obra tão sensível, pessoal e delicada, para o cinema brasileiro, principalmente pelos caminhos que abriu. Glauber Rocha e o Cinema Novo não teriam sido o que foram sem ele. Faz todo o sentido que a Abraccine o tenha colocado em primeiro lugar na sua lista dos 100 melhores filmes brasileiros.

Ainda assim, gostava que alguém me dissesse que, na época em que foi gravado, já havia protetor solar, porque, se não havia, coitadinhos desses atores...

SPOILER: Luzes da Cidade (City Lights, 1931)

O filme é definido na abertura como um romance cômico em pantomina. Chaplin, pantomineiro incorrigível, resistiu por uns 10 anos a integrar diálogos falados nos seus filmes. Havia um lado de sobrevivência: a figura de Carlitos/Charlot fez dele uma estrela global, uma das primeiras, precisamente porque Carlitos não falava uma língua específica. A sua magia é que ele poderia ser qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo.

Ora, isto é sabido e repetido. O que não é tão sabido e repetido é que, ainda que resistisse a usar diálogos, Chaplin usou muito bem os recursos do som! A trilha, pela primeira vez escrita por ele e pensada para não ser tocada ao vivo por uma orquestra, acompanha as inflexões e movimentos dos atores. Se alguém bate num piano em cena, o som de um piano sendo batido entra na trilha. Mais do que alguém que nega um recurso, parece que vemos um perfeccionista aprendendo a usá-lo. Veja-se a cena em que ele engole o apito para entender.
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Neste filme, Chaplin já não faz de si o centro de todos os enquadramentos ou de todas as cenas. 10 anos antes, em The Kid, ele olhava diretamente para a câmera para enfatizar piadas; agora, ele é cada vez menos performer e cada vez mais diretor/autor. Três sequências me chamam a atenção.

O filme abre na inauguração de uma estátua pelas autoridades da cidade. Quando elas dão os seus discursos, as suas vozes são cornetas desafinadas (a professora dos Peanuts claramente foi inspirada neles) e, quando levantam o lençol da estátua, descobrem que Carlitos/Charlot está lá dormindo. Enquanto ele tenta descer da estátua, a sua atrapalhação quebra ainda mais a solenidade e a convenção do momento. Eu diria que é uma das cenas mais subversivas que alguma vez se filmou.

A mise-en-scène desta sequência no restaurante é - não há outra palavra - perfeita.

Já ouvi dizer muito que Chaplin é um bailarino. É verdade, mas só meia verdade: ele é um diretor bailarino, porque a dança é dele com a câmera. A famosa cena do ringue de boxe é um claro exemplo disso.

Começa-se a notar a curva descendente da personagem de Carlitos/Charlot. Quanto mais poderia render esta figura, inspirada nos bêbedos e no vaudeville londrinos da virada do século XIX para o XX, quando o seu cenário da cidade americana estava em plena transformação e a Grande Depressão criava todo um novo e cruel tipo de miséria? Por enquanto, ele retém o encanto de quem parece, simultaneamente, estrangeiro de país e estrangeiro de tempo.

Mascarada sob uma história romântica, Chaplin dá-nos uma moral que, embora cheia de sentimento, é, na verdade, bem pesada: se o valor de um homem é medido pelo bem que ele faz aos outros, mas a lei, a justiça e os poderes não querem nem saber disso, porque devemos então considerar esses poderes?

Ainda assim, é a terceira vez que chorei no final deste filme - mesmo número de vezes que o vi.

SPOILER: O Anjo Azul (Der Blaue Engel, 1930)

Confesso que estava pronto para não gostar de O Anjo Azul. Sempre pensei que o filme fosse pouco mais do que um veículo meio bobo para lançar Dietrich. Além disso, acho que apenas vira um filme de Sternberg, num momento particularmente ensonado de um workshop. Ou será que era Lubitsch? Bem, já entenderam.

O ator principal chama-se Emil Jannings e, ao que parece, foi o primeiro vencedor de um Oscar de representação (se bem que há quem diga que ele perdeu a votação para um cão). A carreira do homem tinha esfriado e ele esperava que O Anjo Azul fosse o seu regresso glorioso. Talvez por isso, Jannings não gostava de Dietrich, que lhe roubou o filme. Acho injusto dizer isto, pois o ator está ótimo. Também dizem que Dietrich roubou à mulher de Sternberg os afetos do diretor, mas isto parece-me publicidade do estúdio para atrelarem a imagem de femme fatale à atriz.


Depois da série de filmes mudos que vi para este caderno, com edições e fotografia primorosas, O Anjo Azul começa parecendo extremamente careta. Apesar de uns telhados tortos bem expressionistas - afinal, isto é a UFA - a primeira cena na casa do Professor, em plano geral,  com a empregada descrevendo o que vê ("livros empoeirados, bitucas de cigarros...") lembrou-me os enquadramentos frontais dos primeiros filmes mudos e fez-me gritar aquela primeira regra que qualquer roteirista aprende: "show, don't tell!". O que eu não sabia era que Sternberg, cineasta criado na América que foi à Europa gravar este filme durante um período de trabalho tépido, está nos segredando que o seu estilo serve para mostrar as personagens e os atores, não para se mostrar. O trabalho será bem sucedido.

Há alunos rebeldes e hormonais; uma lição sobre Hamlet logo no início; e um submisso assistente de professor chamado Angst. Tudo isto fez-me pensar que talvez o filme não fosse o divertimento musical tontinho que esperava.

O Anjo Azul é um cabaré/ semiprostíbulo onde Dietrich/Lola Lola é uma estrela em pelo menos uma das áreas. O professor descobre que os seus alunos passam a noite lá e decide ir espreitar o show de Lola. Afinal, um homem não é de ferro, e o pássaro dele tinha morrido nesse dia, então é preciso afogar as mágoas. Mas, chegado lá, o professor prefere perseguir os seus alunos à bengalada. Então, professor?!

Lembrei-me de uma frase de Alberto Seixas Santos, um dos fundadores do cinema novo português: "o cinema é mulheres bonitas fazendo coisas". Pelo menos aqui a frase faz sentido. Enquanto Lola se troca, o professor espreita-a. O aluno, escondido, espreita-a. Sternberg, fascinado por Dietrich, espreita-a. E o público, claro, espreita-a. Isto revela a chave para entender este filme: um jogo voyeurístico e fetichista e um vaivém entre o que é espetáculo/palco/público e o que é privado/íntimo.

Entendam que, sim, Dietrich claramente está aqui para ser olhada. Porém, a sua personagem Lola sabe do seu poder e usa-o em seu favor. Dona de si mesma do início até ao fim, ela é sujeito sexual, não um objeto.

As personagens são tipos saídos do teatro popular: o professor, a cantora, o mágico, o palhaço, os alunos, o policial. Mas o professor é a figura com mais dimensões. A morte do seu pássaro marca a morte de sua antiga vida. O seu idílio com Lola acaba com a sua caretice; o homem do intelecto deixa-se tomar pelo sentimento. Mas também o faz perder o respeito de seus alunos e colegas e a sua posição na escola. O plano em que ele percebe que seu futuro é diferente do que se adivinhava, em que a câmera recua para mostrar as cadeiras desertas de alunos, é revelador: escolhendo a sua liberdade íntima, perdeu a sua posição pública.

A momentos, vai aparecendo a figura silenciosa e lazarenta de um palhaço. Ninguém fala com ele, ele não fala com ninguém; é invisível, insignificante, quase fantasmagórico. Pensei talvez represente o público, ou Deus, ou um anjo, ou o destino. Mas estava enganado. O professor casa com a cantora e perde tudo. Rapidamente, começa a ganhar a vida vendendo os postais dela, os mesmo que, no início do filme, ele pegara os seus alunos vendo. Passa as meias dela, veste-a, ajuda-a com a chapinha do cabelo. Numa sequência brilhante, Sternberg mostra como o tempo passa, com as folhas de calendário ardendo; e, no plano seguinte, vemos o professor transformado num novo palhaço. Será que o palhaço anterior era um antigo marido ou amante de Lola? Não é explicado (o primeiro palhaço some de um momento para o outro), mas também não precisa ser explicado, porque está claro: este filme não é convencional ou careta; ele é, sim, uma bela obra sobre o fetiche de dominação e submissão.

A trupe volta à cidade natal do professor e ao Anjo Azul. Entretanto, Lola enrola-se com um Homem Forte e leva-o para o seu quarto. O professor palhaço recusa-se a atuar, mas basta uma ordem dela para o fazer mudar de ideias. Porque não deveria, afinal? Aquela humilhação é tudo o que lhe resta.

O professor palhaço sobe ao palco e todos riem dele: os seus antigos alunos, colegas, vizinhos. Louco, ele abandona o palco, ataca Lola, é imobilizado. Desfigurado, cambaleante, ele sai do teatro. Ainda vê Lola, que aparece pela primeira vez vestida de preto, como uma viúva. O professor vai até à escola, entra na sala onde dava aulas e desfalece na sua antiga cadeira. Ouvimos o sino da torre do relógio, que já tocara antes, mas nunca pareceu tão fúnebre. De novo, a câmera recua para mostrar as cadeiras, mas, desta vez, elas não estão vazias para uma aula: estão vazias para um funeral.

A última refeição de Anthony Bourdain

Acordei no dia de folga com a notícia de que Bourdain tinha morrido. Os meus grupos de trabalho no Whatsapp estavam cheios de lamentos, talvez porque qualquer pessoa que faz programas de gastronomia hoje em dia sabe que, em grande parte, devemos o nosso sustento a ele. No nosso caso, que fazemos a versão brasileira do programa The Taste, em que ele foi jurado, a conexão é mais forte ainda.

Daqui a uns anos, vai ser difícil explicar o que Bourdain fazia ou porque ele era famoso. Ele não era conhecido por ser um grande chef; quando ainda trabalhava em cozinhas profissionais, a sua especialidade era salvar lugares que estavam prestes a fechar ou, então, ajudar a fechá-los de uma vez por todas. Ele também não era exatamente um crítico de gastronomia, apesar de ter comido e divulgado a comida de dezenas de países.

É difícil explicar o que Bourdain fazia porque, de certa forma, ele inventou o que ele fazia. Desde que publicou o artigo Don't Eat Before Reading This, que depois transformaria no seu primeiro grande livro, Cozinha Confidencial,  ele foi um cronista gastronômico. Começou falando sobre o que acontecia dentro das cozinhas de restaurantes e rapidamente evoluiu para um divulgador da comida como espelho fiel do lugar onde ela acontece, do povo que a produz, da sua cultura, política e economia. Desde a nouvelle cuisine que conhecemos a importância do terroir, mas Bourdain expandiu e divulgou essa ideia, ao ponto de hoje sabermos que comer num lugar que visitamos significa, não só matar a fome, mas principalmente experimentar esse lugar através do paladar.

Bourdain suicidou-se enquanto visitava a França. É triste e é simbólico também. A sua carreira e vida gastronômicas sempre estiveram ligadas ao país. A sua família é de origem francesa, ele ficou popular quando comandava a brasserie Les Halles, em Nova Iorque, e foi também o país onde ele teve a experiência que começou a sua relação com comida, quando, ainda criança, acompanhou a família numa pescaria de ostras. Como ele relata em Cozinha Confidencial:
O senhor Saint-Jour, como que querendo desafiar os seus passageiros americanos, perguntou, com o seu forte sotaque da Gironda, se algum de nós queria experimentar uma ostra.
Os meus pais hesitaram. Duvido que eles tivessem pensado comer uma das coisas cruas e viscosas sobre as quais flutuávamos. O meu irmão mais novo recuou, horrorizado.
Mas, no momento mais orgulhoso da minha jovem vida, eu me levantei, sorrindo, desafiador, e me voluntariei para ser o primeiro.
E, nesse inesquecível e doce momento da minha história, que ainda é mais vivo para mim do que tantos outros "primeiros momentos" que se seguiram - primeira buceta, primeiro baseado, primeiro dia no colégio, primeiro livro publicado, tantas coisas - eu conquistei a glória. O senhor Saint-Jour fez-me ir até à amurada, onde ele se inclinou e debruçou até que a sua cabeça quase desaparecesse por baixo de água, e emergiu segurando, no seu pulso bruto e em forma de garra, uma única ostra, coberta de lodo, enorme e irregular.
(...)
Eu segurei-a, inclinei a concha na minha boca como me instruíra o agora radiante senhor Saint-Jour, e, com uma mordida e uma sorvida, engoli-a. Tinha sabor de água do mar... de salmoura e carne viva... e, de alguma forma, de futuro.
Tudo era diferente agora. Tudo.
Eu não tinha só sobrevivido - eu tinha apreciado.
Esta, eu sabia, era a magia da qual, até agora, só tinha uma noção vaga e despeitosa. Estava viciado. Os arrepios dos meus pais e a expressão de repulsa e surpresa ilimitadas do meu irmão só reforçaram a noção de que, de alguma forma, eu me tornara um homem. Tivera uma aventura, provado o fruto proibido, e tudo o que se seguiria na minha vida - a comida, a corrida longa e tantas vezes estúpida e autodestrutiva pela próxima coisa grande, fosse drogas, sexo ou qualquer outra nova sensação - teria a sua raiz nesse momento.

Hoje eu penso em Bourdain. Pergunto-me qual terá sido a sua última refeição e se ele lembrou dessa ostra primordial momentos antes do fim. Amanhã eu vou acordar e seguir para o estúdio, para fazer um programa sobre comida. Também por isso, obrigado a ele.

SPOILER: La Coquille et le Clergyman (A Concha e o Clérigo, 1928)

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  • Estava pronto pra entrar nos anos 30 e nos filmes sonoros, mas uma leitura sobre as possíveis influências de Buñuel para Un Chien Andalou L'Age d'Or levaram-me a retroceder a 1928, a um filme tão intrigante que a sua exibição terá sido proibida na Grã-Bretanha depois de uma avaliação tão odiosa quanto hilariante do censor: "se ele tem um sentido, com certeza é reprovável!".

  • A Concha e o Clérigo trata das alucinações eróticas deste último, que disputa uma mulher com um militar. A certo momento, o clérigo arranca a roupa da mulher, descobrindo-lhe os seios, que, num fundido, são cobertos por conchas. Fica assim também descoberto o título: a concha como símbolo da sexualidade feminina; o clérigo como o homem que, apesar das vestes eclesiásticas, não resiste aos ímpetos sexuais e persegue a mulher sem parar, recebendo recusas e mais recusas. Se expandirmos a nossa visão, veremos a metáfora da Igreja e do Estado como atacantes implacáveis do corpo e da sexualidade femininas.

  • Entende-se então porque ele é apontado, não só como o primeiro filme surrealista, mas também como um dos primeiros filmes com uma mensagem feminista, com os avanços do protagonista masculino e objetificador sendo constantemente frustrados.

  • 90 anos depois, poderá ser injusta a observação de que, se a intenção era essa, talvez fosse mais interessante se a figura feminina fosse protagonista e atuante, em vez de uma musa quieta e enjoada que apenas reage ao protagonista masculino. Ainda assim, certamente essa observação não é tão injusta quanto aquilo que os surrealistas fizeram à diretora na estreia.

  • As versões sobre o que aconteceu variam. Há quem diga que os surrealistas não gostaram que a diretora tivesse tomado muitas liberdades com o roteiro do comparsa Antonin Artaud. Outros especificam: os surrealistas, esse Clube do Bolinha de vanguarda, eram misóginos e reprovaram o empoderamento feminino mostrado no filme. Há até quem diga que Artaud, descontente por não ter ficado com o crédito de "consultor técnico privilegiado", chamou os amigos para o defenderem. O fato é que os surrealistas foram em alcateia até à estreia e, mal o filme começou, começaram a gritar impropérios, xingando a diretora de "vache" para baixo.

  • É um filme cheio de fundidos e de imagens sobrepostas sem fronteiras claras, como as de um sonho. Um ano anterior a Un Chien Andalou, é talvez uma injustiça que este tenha superado A Concha e o Clérigo como o filme surrealista por excelência. A dificuldade para o espectador é que ele é apenas, e todo, metáfora visual: ele não dá nos dá chão, uma referência de onde observar. O trabalho nele é essencialmente visual e plástico.

  • Se Buñuel e Dalí eram cômicos, farsescos, escrachados, escandalosos, abertamente sexuais e anticlericais e trabalhavam em cima de símbolos universais e poderosos (a lua, o corpo, o escorpião), Artaud e Dulac são melancólicos, plásticos, subtis e meticulosos. Aqueles são mais teatro e estes são mais pintura. Dê-se o significado que se quiser a ela, há uma história em Un Chien Andalou e em L'Age d'Or. Aqui não. Aqui há colagem de vinhetas visuais, maravilhosas, mas que aparecem mais como se fossem palavras vertidas num poema do que um raccord de imagens.
    Um exemplo disso é o modo como Buñuel constrói as suas sequências pensando numa edição diegética e não apenas visual, como a de Dulac. En Un Chien Andalou, um homem começa caindo num apartamento, mas acaba caindo numa floresta. Dulac não faz esse tipo de brincadeiras. Se eles fossem clipes do Radiohead, Buñuel seria o de DayDreaming  e Dulac o de Street Spirit (Fade Out).

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[youtube https://www.youtube.com/watch?v=LCJblaUkkfc&w=560&h=315]





    • Ou seja, há algo no surrealismo de Buñuel que o faz ter um apelo maior do que o de Dulac. Os seus primeiros filmes atraem-nos, não porque sintamos que qualquer coisa possa acontecer nos seus mundos, mas precisamente porque talvez nem tudo possa acontecer. São mundos com regras estranhas que não entendemos, mas que, intuimos, têm regras que queremos descobrir. A Concha e o Clérigo acontece principalmente dentro da cabeça dos seus criadores, o que imediatamente levanta uma muralha mais alta. Buñel parece oferecer-nos todo um mundo; Dulac parece oferecer-nos apenas ela mesma.

SPOILER: L'Age d'Or (1929)

  1. Este é o primeiro filme sonoro deste caderno. Como falas eram coisa recente no cinema, os poucos diálogos parecem ter sido pensados mais como intertítulos que, por acaso, acabaram ditos.

  2. De qualquer forma, o filme parece menos inspirado e mais lento nos momentos com mais falas. Com o som, não é preciso agarrar a atenção do espectador com uma velocidade maior, com efeitos especiais, com uma edição inventiva. Ou seja, houve algo na imagem do cinema que morreu quando o som chegou. Chaplin sabia-o, e por isso resistiu mais 10 anos até ter um filme inteiramente falado.

  3. Bispos tornam-se esqueletos e toda uma sociedade vem venerá-los. No lugar da veneração, é fundada Roma, onde, no Vaticano, toda uma sociedade venera outro tipo de cadáveres.

  4. Durante a veneração, um homem é capturado por estar dando uns amassos com uma mulher. Transportado por seus captores através da cidade, vê sexo em tudo e maltrata animais e cegos. Não entendo bem porquê, mas ver alguém chutando criaturas indefesas tem sempre muita graça.
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  5. A mulher que antes víramos dando uns amassos entra no seu quarto e tem que enxotar uma vaca deitada sobre a cama, o que, como todos sabem, é uma tarefa muito chata.

  6. Invariavelmente, as pessoas neste filme querem fazer mal umas às outras ou, pelo menos, não se importam muito com o sofrimento do vizinho. Não sei de onde Buñuel e Dalí foram tirar essa ideia de que a humanidade pode ser assim, mas explica a abertura do filme com um minidocumentário sobre escorpiões.

  7. Há uma ideia de eternos retornos pairando por aqui. Uma orquestra começa a tocar, mas a música é a mesma que ouvíramos momentos antes. Enquanto isso, o casal que víramos na praia se beijando e rebolando no chão começa a se beijar e a rebolar no chão. A ideia será a do sonho que volta?

  8. O casal continua a sua dança de amor, que pressentimos como a única coisa verdadeira no meio das convenções e fachadas de uma festa de alta sociedade. A mulher chega a dizer "que alegria termos matado as nossas crianças". Ao mesmo tempo que é verdadeiro, é um amor extremamente frágil. Estamos sempre à espera que ele seja interrompido por intrusos ou pelos próprios amantes.

  9. A mulher começa a beijar o maestro da orquestra. Enfurecido, o homem vai até o quarto dela e joga pela janela um bispo e uma girafa. Quem nunca, hein?

  10. A mistura nonsense de tempos históricos, o jogo com as expectativas do espectador, a insignificância cômica do sofrimento humano tiveram um claro descendente. Com uma ou outra adaptação, L'Age d'Or facilmente seria um episódio do Monty Python's Flying Circus.

SPOILER: Un Chien Andalou (1929)

  1. Traduzido, o título é "Um Cão Andaluz". Segundo relatos da época, os roteiristas, Buñuel e Salvador Dalí, inspiraram-se no apelido que, décadas mais tarde, o governo madrileno daria a Carles Puigdemont.

  2. Buñuel aparece na primeira cena do seu primeiro filme amolando uma faca e cortando o olho da sua atriz principal. Poucos diretores poderão se gabar do mesmo.
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  3. Agora a sério, o que podemos entender do famoso olho cortado, montado em paralelo com uma nuvem afiada passando na frente da Lua? Que tudo o que se segue é o sonho da mulher? É que sonhar não vai ser a primeira coisa que farei se me cortarem um olho.

  4. Um homem é recusado por uma mulher e persegue-a, mas, para o fazer, tem que arrastar dois pianos, dois burros mortos e quatro clérigos. Foi exatamente assim que eu conquistei a minha namorada.

  5. O homem é ameaçado por um outro, cujo rosto não vemos, e que o obriga a levantar-se da cama e encarar a parede. O homem que ameaça vira-se, e vemos então que ele também o homem que é ameaçado. Buñuel cria assim uma das primeiras obras com doppelgängers, ajudando a espalhar uma praga que infetará para todo o sempre as curtas-metragens feitas por universitários.

  6. Depois, o homem mata a tiro o doppelgänger, castigo merecido para qualquer pessoa que obriga outra a levantar-se da cama.

  7. O homem olha a mulher. Tapa a própria boca e, quando a destapa, não tem boca. A mulher, como seria de esperar, reage retocando o batom. Então, o pêlo do sovaco dela aparece na boca do homem.
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    O significado é claro: este homem é o par ideal para qualquer pessoa de pele sensível que aprecia o silêncio e truques de magia.

SPOILER: Chelovek s kinoapparatom (O Homem com uma Câmera, 1929)

1. Como um espectador moderno vê O Homem com uma Câmera? Todas as técnicas que ele fez revolucionárias são hoje corriqueiras. O seu objetivo confesso de fazer um cinema pelo cinema, sem roteiro, personagens ou intertítulos, dir-se-ia ultrapassado, porque, nalguns segmentos, ele venceu: se tantas bandas fizeram trilhas para este filme é porque principalmente os clipes musicais acabaram absorvendo a sua estética.

2. Digo estética, porque é uma batalha estética que ele trava, e uma específica do cinema. Filma-se e mostra-se o espaço, mas a matéria que realmente se trabalha é a do tempo real através do tempo diegético. Sim, porque há diegese aqui, apesar de Vertov reclamar que quer uma linguagem pura independente da literatura e do teatro e blá blá blá. Há um prelúdio numa sala de cinema, começamos de manhã, vamos até à noite. Do que ele tanto se queixa? Não ter drama não significa que não haja um início, meio e fim.

3. É um filme que, como The Greatest Movie Ever Sold, de Morgan Spurlock, é making of de si mesmo: o homem da câmera filma, mas também é filmado. Não é só cinema puro, é também cinema exibicionista. Acho que o mesmo pensamento gerou muito filme presunçoso ao longo dos anos, mas desculpa-se em 1929.

4. Ainda não havia câmeras de vigilância nesta época (apesar de Metropolis já as ter imaginado). De qualquer forma, é um dos conceitos inerentes do filme e é bem atual: o Homem e sua Câmera tudo captam, tudo registram. Nós não podemos presenciar toda a vida que existe, mas podemos iludir-nos que a presenciamos olhando a sua imagem. João Lopes falava sobre isto a propósito do stunt de Godard fazendo FaceTime com os jornalistas no último festival de Cannes - Godard, o mesmo que começou Le Mépris mostrando as câmeras que o filmam e nomeando o elenco e a equipe quase como se fizesse uma denúncia.
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=i1iOFRZnKBo?rel=0&w=560&h=315]

5. Nunca gostei da expressão "a cidade é personagem", então não a vou dizer; mas a cidade e as vidas que nela acontecem, com os seus contrastes de tempo, movimento e respiração, é o material bruto trabalhado aqui. E é trabalhado todinho na sala de edição, que nos leva, em rápida sucessão, de um casamento a um funeral a um parto a um acidente, e assim por diante. Para ser exato, o filme dever-se-ia chamar "O Homem com uma Câmera e Também o Outro Homem com uma Tesoura".

6. Este filme, com o seu fascínio por pistões e motores, marca, ainda mais do que Metropolis, a concretização no cinema do Manifesto Futurista de Marinetti, escrito exatos 20 anos antes.

7. De vez em quando, vem um cheirinho de Riefenstahl, com corpos gloriosos fazendo esporte, retratos de Lenine e bustos de Marx, clubes proletários e outras propagandas. Pergunto-me se será para ajudar a engolir o comprimido de um filme de estilo nada realista-socialista. Imagino Daniil Kharms, que por este ano estava no seu período de maior sucesso, saindo de uma sessão do filme e chamando Vertov de medrosinho. A coisa não acabaria bem para nenhum deles.

Como Desenhar o Corpo Humano

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No domingo, dia 10 de Junho, vai ser lançada na Feira do Livro de Lisboa a antologia "Como Desenhar o Corpo Humano", organizada pelo Tiago Patrício e o José Trigueiros e editada pela Companhia das Letras. Reúne vencedores do prémio Jovens Criadores e inclui um conto meu.
Venci o concurso duas vezes, em 2005 e 2006, e o convite do Tiago fez-me reler esses textos.
Enquanto lia, perguntava-me quem era aquela pessoa longínqua que escrevia, o que lhe interessava, que coisas o rodeavam. Pensava no quanto mudei, e se mudei bem.
Quando o pdf chegou para revisão, vi nele os nomes de muita gente conhecida e fui visitado por memórias da minha vida em Portugal, nos blogs, em Lisboa. Tanta gente.
O André Murraças, que nunca conheci pessoalmente, mas que convidei como amigo aqui porque via-o fazer tanta coisa no teatro que me perguntava como era possível.
A Joana Bértholo, que conheci na mostra dos Jovens Criadores em Amarante e que já tinha no olhar a autora inteira em que se acabou por se tornar.
O bom José Mário Silva, que um dia enfiou um livro por baixo da porta da casa onde eu morava na Vila Berta mesmo sem nunca nos termos falado (só o fizemos anos depois, na Casa Fernando Pessoa).
O Miguel Marques, secreto, silencioso, que acompanhava em blog e em papel e que escrevia tão bem que o invejava com a inveja boa de quem queria escrever igualmente bem.
A Margarida Vale de Gato, que tantas vezes encontrava no metro ou pela Graça e que não sei se alguma vez reparou o quanto eu tentava parecer inteligente quando conversava com ela (e certamente falhando, imagino).
Reparo que a Sandra Silva fez parte do júri que, na época selecionou o meu texto. A Sandra, companheira do Alex, que me convidou depois para os Social Smokers. E está também por lá um texto do João Tordo, que, uma noite, depois de um espetáculo dos Social Smokers no Cais do Sodré, me disse que deveria tirar os óculos para atuar (adoraria, João, mas seria prenúncio de acidente grave).
E o livro ainda é prefaciado pelo Jorge Barreto Xavier, o diretor da DGArtes que me deu a bolsa INOV-Art que me trouxe para o Brasil e que por cá me deixou.
Ainda há mais autores, muitos mais, e imagino que esta antologia tenha feito todos pensarem no passado. Quando aceitei o convite, não pensava que ela estaria tão cheia das vidas dos outros e da minha. E como está.
A distância impede-me de ir a este lançamento, mas adoraria que vocês fossem, meus amigos.

SPOILER: La Passion de Jeanne d'Arc (A Paixão de Joana d'Arc, 1928)

  1. Eu já vira La Passion de Jeanne d'Arc, há muitos anos atrás. Gravei-a no 5 noites, 5 filmes, antigo espaço de cinema na RTP2 onde vi muitas coisas que explicam muito do que sou e do que gosto hoje. O que eu não sabia era toda a saga por que o filme passou para que hoje o consigamos ver em toda a sua glória. Escutem essa história:
    Por pressões de grupos nacionalistas franceses e de católicos, incluindo o Arcebispo de Paris, o corte original do diretor dinamarquês e protestante Carl Th. Dreyer foi para os porcos ainda antes da estreia. O negativo foi enviado para os estúdios da UFA em Berlim, onde foi destruído num incêndio, e só sobraram umas cópias perdidas aí pelo mundo. Dreyer conseguiu fazer um segundo director's cut utilizando planos alternativos, mas também ele ardeu, como Joana d'Arc, num outro incêndio.
    O filme ganhou fama de amaldiçoado, mas os cinéfilos nunca se assustaram com coisas de Deus e o Diabo, e lá iam encontrando e remontando uma ou outra cópia que achavam por aí. Estas versões incompletas só foram ultrapassadas em 1981, quando um faxineiro - sempre os faxineiros! - encontrou as bobinas da versão original, anterior a toda a censura, no armário... de um manicômio na Noruega! Como ela lá chegou, não se sabe - não há registros de alguma vez ela ter sido enviada para Oslo -, mas presume-se que o diretor do manicômio na época da estreia, que era historiador, a tenha pedido por especial favor e guardado cuidadosamente.(Neste momento, desejo pedir aplausos para o anônimo herói norueguês que uma hora pensou "ei, isto não parece coisa pra jogar fora". Obrigado, senhor!)

  2. Curioso que, apenas um ano depois de Napoléon, apareça outro filme sobre uma grande figura da história francesa. Não esqueçamos, estávamos entre duas guerras e os nacionalismos andavam exacerbados, o que pode ter levado tanto ao reatar dos conflitos como ao seu fim. Será que a Resistência teria sido o que foi sem também este cinema?

  3. Mas este não é o épico de Gance. Este é um filme sobre psicologias e os rostos como tradutores imediatos da alma e experiência humanas. E é um filme de Dreyer, um dinamarquês luterano, que não se incomoda com tratar o tema reformista da comunicação direta com Deus. Os clérigos menosprezam Joana quando ela descreve seu encontro com o Arcanjo Gabriel e bombardeiam-na com perguntas do estilo "você acha mesmo que Deus iria conversar com você?". Fica claro que o seu encontro com o divino tem que ser feito além da Igreja. Por isso, a morte de Joana representa, ao mesmo tempo, o fracasso do Catolicismo organizado: quem a mata dá-lhe aquilo que ela mais deseja, o bilhete de ida para junto do Criador.

  4. Uma mulher, julgada por um comitê de homens, que reprovam as suas roupas, humilham, roubam, maltratam, degradam, manipulam, torturam, sangram. Para todos os efeitos, é um filme atualíssimo.

  5. Renée Jeanne Falconetti interpreta uma Joana D'arc em estado de graça, como se estivesse em constante diálogo com Deus. Porém, ela não está serena. O seu rosto e aqueles olhos onde cabem todas as dores do mundo são fascinantes como lembrava: esta não é a calma de quem pensa que dali a pouco estará no Paraíso, mas a angústia, transe e puro terror de quem encara a morte para cumprir um destino maior do que ela.
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  6. Os cortes são rápidos, o estilo é ascético. A verdade histórica é garantida pelo registro do texto do processo, que Dreyer apresenta como sua base logo no início, assim se desembaraçando para se ocupar com a criação de pura arte visual, uma dança de rostos sem sujeiras. O rosto de Joana/Renée ocupa quase sempre o centro da tela, dominante, retratistico, e seus perseguidores aparecem no fundo do enquadramento ou enviesados, tortos ou insignificantes como suas almas.
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  7. O absurdo do circo do mundo paralelo à dor íntima. Enquanto a fé é aprisionada, os homens divertem-se sem pensar em consequências. O medievalismo de Bergman está por aqui, o surrealismo de Fellini também.
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  8. A virada de Joana, ao negar a sua remissão, é estratégica. A grande vitória, diz ela a seu captor (de novo Antonin Artaud), é o seu martírio; a sua entrega é a morte. Deus dissera-lhe que a sua missão é salvar a França, e ela entende que a fogueira a tornará a mártir que une um país, assim como Cristo entendeu que a cruz era necessária para completar a sua missão.

  9. Joana arde, grita por Jesus e morre. O povo chora, protesta e é oprimido pela guarda. Enquanto ela encontra Deus, os franceses unem-se sob a repressão. Assim termina o filme que logo seria retalhado para melhor se adequar ao gosto do ofendido público francês e católico.

Pequenas derrotas

Há uns anos, dei um par de cursos de iniciação à fotografia.
Tentava preparar-me bem e sempre evitei prometer mais do que poderia oferecer.
Ontem sonhei que estava a dar um intensivão desse mesmo curso, começando na manhã de um sábado e terminando na noite do domingo.
Porém, fora pego de surpresa e não preparara nada.
Tinha pela frente meia dúzia de alunos entediados e com as taxas de admissão pagas.
Um deles, mais velho, tinha aquela cara bem brasileira de quem pensa "que absurdo!".
Desesperado, achei no computador a pasta com as fotos que acompanhavam a introdução, mas não as conseguia ordenar com coerência.
Ao contrário do que fizera no passado, não estava a oferecer o que tinha sido prometido.
Comecei a dispensar os alunos mais cedo para eles almoçarem e eu ganhar tempo.

Não me perguntem como, mas cada vez mais eu sonho sabendo que sonho, como se estivesse vendo um filme que consigo mais ou menos controlar.
Tentei então tomar conta do sonho.
Pensei Vamos, isto tem de acabar bem; faz um PPT com essas fotos logo, bora!
Às vezes funciona, mas não desta vez: os alunos voltaram, mas, vendo que a minha atrapalhação continuava, saíram da sala, certamente para pedir o seu dinheiro de volta.
Havia pessoas do outro lado do pátio dizendo Olha, parece que o Jorge não se deu bem.
Derrotado para mim e para os outros, fiz um esforço mental para encerrar esse sonho chato e voltei ao adorável e escuro silêncio.
***

Comprei a cama sob a qual sonhei há mais ou menos um ano.
Quando chegou, vi que as instruções recomendavam virar o colchão, o lado de baixo para cima, a cada dois meses.
Porém,  a Cyntia sempre reclamou que um dos lados era diferente e sentia que não nos deveríamos deitar nele.
Ontem à noite, decidi que iria resolver essa dúvida.
Vasculhei o dossier onde guardo manuais de instruções (sim, eu faço isso) e achei as da cama, que, sinceramente, pensava perdidas.
Eu tinha razão: a indicação para virar o colchão estava lá.
Eu só não tinha reparado que havia uma especificação por baixo: "não vire o seu colchão se ele for das linhas X, Y e Z".
Pesquisei os e-mails da compra, mas nada de encontrar o nome da linha.
Hoje à tarde, a Cyntia perguntou se eu não queria abrir a capa protetora do colchão e ver se a linha estaria descrita na etiqueta.
Fizemos isso mesmo e lá estava: "linha Z".
O cuidado que tive durante um ano fora, afinal, desnecessário e precipitado.
***

A moral da história é: se não pudermos passar sem derrotas, pelo menos que sejam pequenas.