Canções do exílio: "Vampiro Doidão"

http://www.youtube.com/watch?v=eepgPWVxeL4
Quando comecei a frequentar as festas da república onde fui morar quando cheguei a São Paulo - que tem o descritivo nome "Um Dia A Casa Cai" - e me passavam o violão, punha-me normalmente a tocar blues. Isso porque gosto, mas também porque o blues toca-se com 3 acordes que dão para tudo. E havia sempre alguém que chegava e, no embalo, tocava o "Vampiro Doidão". Raul Seixas, que eu só conhecia de saber que o Paulo Coelho tinha escrito letras para ele, é uma das lendas mortas do rock brasileiro, a tal ponto que gritar "toca Raul!" a alguém que está a atuar é um dos pilares da interação público/performer do país (uma espécie de "ò Elsa!" dita diretamente ao rabequeiro). E uma letra que dá a maconha como explicação para tudo na vida nunca deixará de espantar o sucesso.

Canção: Vampiro Doidão
Autores (pelo que consegui apurar): Os Impossíveis
Intérprete: Raul Seixas

Letra:
Puta que pariu, meu gato pois um ovo,
Mas gato não põe ovo, puta que pariu de novo.

Eu sou o vampiro doidão,eu sou o vampiro doidão
Passo o dia dormindo e a noite eu fumo um baseadão

Se droga fosse álcool eu morria de cirrose
Se álcool fosse droga eu morria de overdose

Sou vampiro doidão, sou o vampiro doidão
Eu to muito louco, etá baseado do bom!

Estava no escurinho, comemdo a empregada
alguém abriu a porta e eu comi a bunda errada

Eu sou o vampiro doidão, eu sou o vampiro doidão
Só faço sexo dentro do caixão

Gosto das moças virgens e das moças honrradas
Mas o que eu gosto mesmo é me infesta com a putalhada

Sou vampiro doidão, eu sou vampiro doidão,
Só chupo sangue de menstruação.

Quando eu nasci, no bico da cegonha,
Na minha mamadeira foi dois quilos de maconha.

Sou vampiro doidão, eu sou vampiro doidão,
Eu fumo todas, e não abro mão.

Não sei como é que eu posso, não sei como é que eu pude,
Comer caco de vidro e cagar bola de gude.

Sou vampiro doidão, eu sou vampiro doidão,
Eu quero morrer todo peladão.

Marcelo é meu amigo, Marcelo é meu colega,
Eu vou fazer com ele o que o cavalo fez com a égua.

Sou vampiro doidão, eu sou vampiro doidão,
Passo o dia dormindo e a noite eu fumo um baseadão.

Eu vi papai Noel, montado num urubu,
Tomando Coca-cola e arrotando pelo cu.

Sou vampiro doidão, eu sou vampiro doidão,
Eu to muito louco, eita baseado do bão.

Humberto era careta, um cara retardado,
Fumou bosta de vaca e ficou muito pirado.

Sou vampiro doidão, eu sou vampiro doidão,
Só faço sexo dentro do caixão.

Eu fui ao cemitério e sentei na catacumba,
A puta da caveira beliscou a minha bunda.

Sou vampiro doidão, eu sou vampiro doidão,
Só chupo sangue de mestruação.

Pulei de pára-quedas, o pára-quedas não abriu,
Mandei o fabricante para puta que pariu.

Eu sou vampiro doidão, eu sou vampiro doidão,
Eu fumo todas e não abro mão.

Quando eu morrer não joguem flores no caixão,
Podem jogar maconha que é pra eu subir doidão.

Sou vampiro doidão, eu sou vampiro doidão,
Eu quero morrer todo peladão.

Larica não tem hora, também não tem lugar,
Larica ta me dando mais vontade de fumar.

Sou vampiro doidão, eu sou vampiro doidão,
Passo o dia dormindo e de noite eu fumo um baseadão.

Canções do exílio: "Melodia Sentimental"

Hoje, dia 22 de Maio, faz um ano que pus o pé no Brasil. Efemérides devem comemorar-se e, na falta de fundos públicos para construir uma representação fálica de mim mesmo, durante um mês vou pôr aqui algumas das músicas que mais me encheram os ouvidos durante estes tempos.

Esta versão da Melodia Sentimental é - sem exageros - uma das canções mais belas que ouvi. A vulnerabilidade que o quarteto de músicos lhe dá, reduzindo-lhe o corpo com que ela fica com a orquestra na sua versão original de ópera, intensifica a noite que nela há, o escuro do mundo, a lua prateada lá em cima, um homem sozinho cá em baixo esmagado pela beleza de tudo. É perfeitamente possível ver onde estamos. Já o canto do Ney Matogrosso, claro, mas dolente e despojado, acentua aquilo que uma interpretação mais orelhuda esconde: um tema atravessado pela solidão.

http://www.youtube.com/watch?v=AQPddEHfLHs
Canção: Melodia Sentimental
Disco: A Floresta do Amazonas de Villa-Lobos (Assis Brasil)
Músicos: João Carlos Assis Brasil, piano; Ney Matogrosso, voz; Wagner Tiso, piano e sintetizadores; Jaques Morelenbaum, violoncelo; Jurim Moreira, percussão.

Letra:
Acorda, vem ver a lua
Que dorme na noite escura
Que surge tão bela e branca
Derramando doçura
Clara chama silente
Ardendo meu sonhar

As asas da noite que surgem
E correm no espaço profundo
Oh, doce amada, desperta
Vem dar teu calor ao luar

Quisera saber-te minha
Na hora serena e calma
A sombra confia ao vento
O limite da espera
Quando dentro da noite
Reclama o teu amor

Acorda, vem olhar a lua
Que brilha na noite escura
Querida, és linda e meiga
Sentir meu amor e sonhar

Impressões da Vila Madalena



Imagem gentilmente roubada daqui.

Até ontem, estive a morar na Vila Madalena, graças àquilo que se pode chamar uma coincidência feliz. A amiga de uma amiga decidiu viajar pela Europa e precisava de alguém para ficar na casa dela. Como ela partiu precisamente no dia anterior ao da minha re-chegada a São Paulo, eu acabei por ser o corpo presente que substituiu o corpo ausente dela.

A minha mãe não gostou quando lhe disse que ia morar na Vila Madalena. Talvez eu não lhe devesse ter dito, quando ela ouviu esse bairro ser mencionado numa novela, que era uma zona de bares e vida noturna. Como eu nunca tinha saído de casa à noite - nunca, em momento algum da minha vida - ela tinha razão em preocupar-se. Curiosamente, a minha passagem pela Vila prova a bela e contraditória natureza humana: durante o meu mês lá, não saí para os bares que povoam a região uma única vez, a não ser para comer alguma coisa e beber uma cervejinha na Mercearia São Pedro, que é o único boteco no mundo onde é possível comer-se um bauru ao mesmo tempo que se ouve Leonard Cohen. Ou seja, é o único boteco do mundo onde ao mesmo tempo apetece encher o estômago e cortar os pulsos.

Morei na parte alta da Vila, muito próxima da Heitor Penteado. O meu prédio estava rodeado de parquezinhos pequenos e muito verdinhos e casinhas com piscinas e pessoas que faziam as suas corridinhas ao fim da tarde ou no fim de semana com os cãezinhos ao lado levados pelas trelas e que faziam os seus cocozinhos na rua e algumas pegavam os cocozinhos que os cãezinhos cagavam com uns saquinhos e essas pessoas era boas pessoas, mas as outras que não pegavam não eram. Também não foi boa pessoa o motorista de ônibus que uma noite, depois do trabalho, não parou apesar de eu lhe ter acenado, obrigando-me a esperar uns 40 minutos pelo ônibus seguinte e tirando-me a vontade que levava de cozinhar. Graças a ele, experimentei pela primeira vez a sensação do criador romântico/pós-industrial de aquecer uma sopa de tomate Campbell's e comê-la. Considero que a lasanha de peito de peru da Sadia devia ter merecido mais a atenção dos artistas pop.

Tive uma colega de casa, que quase nunca estava lá, o que era espectacular, porque assim podia fazer coisas loucas como ver o Comédia MTV nas alturas e comer sopa de tomate da Campbell's sem que alguém saudável me viesse meter juízo na cabeça e dizer "olha lá que isso vai-te fazer doer a barriga". A sopa, não a Comédia. A Comédia é o melhor programa de humor do Brasil em ex-aequo com as entrevistas da Funérea e, quanto muito, vê-la nas alturas só me faria dor de ouvidos. Mas, voltando, a minha colega era muito boa pessoa e ensinou-me, entre outras coisas, qual a configuração ideal de um pano de prato. Agradecer-lhe-ei para todo o sempre, se bem que continue a não entender muito bem porque é que um trapo limpo não poderia servir para uma emergência.

Enfim, tudo o que é bom tem o seu fim. Tal como a Grécia, a amiga da amiga vai sair da Europa amanhã e reclamar a propriedade do imóvel. No entanto, fica aqui a devida vénia: acho que nunca estive num banheiro tão requintado numa casa particular, nem no Brasil nem em lugar nenhum. Com azulejos vermelhos, uma bancada larga e claridade abundante, foi um regalo tomar banho e fazer tudo o resto lá. Ele era tão bom que toda a gente o devia apreciar. Por isso é que não me importava nada quando os vizinhos se punham à janela a olhar para mim todo pelado. Como se diz na minha terra, o que é bom é para mostrar - e aquele banheiro era realmente ótimo.

Fala de Alberto João Jardim a uma nação chorosa


Não quero saber nem do FMI nem da troika nem de nenhum desses senhores que nos vêm dizer o que temos de fazer. Ninguém me diz o que fazer. Governo esta terra há décadas, sou eleito pelo povo. Quem vai dizer que o povo não tem razão? Ele nunca se engana. Se eu decido pelo povo e ele me reelege em democracia, e se a democracia é o regime em que o povo mais manda, então as minhas decisões são democraticamente corretas e nem eu nem ninguém tem o direito de as censurar. O FMI é que é ditador, porque vem mandar em nós sem ser eleito. Alguém elegeu esta gente? Não. Então porque devemos aceitar que mandem em nós? Se eu quero desviar sete milhões de uma empresa falida para outra para construir um campo de golfe, com que autoridade me vêm dizer que não o posso fazer? Onde é que estavam eles quando a minha ilha foi inundada e tivemos de reconstruir tudo, tudo? O campo vai trazer turistas, que vão trazer dinheiro. Vou construí-lo e trazer fortuna para todos os meus eleitores. Eu próprio cavo os 18 buracos, se for preciso! E na inauguração, quando todos estiverem a olhar para mim, se me apetecer baixar as calças e me cagar no FMI e na troika e no Governo central, me cagarei. Porque, se o povo me reelege continuamente, é porque todas as minhas decisões são democraticamente corretas - e essa também será.

Adiantando-me às teorias de conspiração sobre a morte sem cadáver de Osama Bin Laden


Bin Laden não morreu. Ele foi recolhido pelos Marines e levado para uma instalação americana de alta segurança, onde ficará oculto e anónimo até ao final dos seus dias. Foi a conclusão duma operação secreta que se alargou durante mais de 30 anos, desde que Bin Laden iniciou a sua relação com a CIA durante a guerra soviético-afegã. Enquanto ela apoiava os Mujahedin e os munia de armas e fundos, Bin Laden ia planeando uma trajetória que fundamentaria a política externa americana durante décadas, numa relação cúmplice em que ele se assumiu como um inimigo e a face do Mal, mas que, no fundo, serviu apenas para permitir que o setor do armamento e da guerra crescesse, com injeções de capital recorrentes pelo Governo americano. Após a queda da URSS (que ele, na guerra afegã, ajudou a precipitar), era necessário fabricar uma cenoura que fizesse o burro América andar - e ele foi essa cenoura. Apesar de Clinton não apoiar muito a ideia, a Administração Bush encontrou nela a desculpa perfeita para fazer crescer a sua base de apoio e conseguir garantir um segundo mandato depois de uma assustadora primeira votação em que foi preciso o irmão Jeb Bush dar um empurrãozinho na Florida para que o voto colegial valesse sobre o popular. Foi a própria Administração Bush que fez cair as Torres Gémeas através de um sistema de implosão (que elas tinham já desde a construção, pois esperava-se que no futuro fosse necessária uma ação deste tipo) e, aproveitando-se do milionário saudita como bode expiatório, orientou toda a sua política externa e interna para uma fase restritiva e securitária, que distraiu os ânimos da liberalização económica e permitiu que a bolha do imobiliário crescesse sem que ninguém percebesse, porque estava tudo muito preocupado com a guerra do Iraque, que, ainda assim, valeu pela deposição do ditador anti-xiita Saddam Hussein. Porém, as recentes revoluções democráticas no Médio Oriente e a crise nas finanças públicas americanas fizeram com que Bin Laden estivesse a sair demasiado caro a Obama, que decidiu que ele deveria sair lá da mansão pseudo-secreta e vir para os Estados Unidos, onde lhe serão oferecidos como compensação um cesto de fruta por dia e a Whitney Houston.

É curioso como...

...o primeiro de Maio teve a primeira justificação nos Estados Unidos (na Revolta de Haymarket, em que a polícia disparou sobre uma manifestação pacífica de trabalhadores na Chicago de 1886), mas os Estados Unidos não fazem feriado nesse dia, preferindo celebrar o Labor Day na primeira segunda-feira de Setembro porque o presidente Grover Celeveland não queria reavivar sentimentos negativos ligados ao fato.

Também é curioso como, ontem, depois da Cidade aTravessa na Casa das Rosas, fui beber cervejas com os amigos cariocas que fiz mais os amigos portugueses que já tinha e, entre uma história e outra, os portugueses lá cantámos os "parabéns a você" português (com mais uma quadra do que o brasileiro) e eu fiz questão, como faço sempre - porque, no fundo, no fundo, serei sempre um socialista utópico - de cantar o "parabéns" com a música da Internacional Socialista, que é aquilo que as boas maneiras mandam que se faça a amigos de esquerda. Sempre me surpreendi com o fato de as pessoas não conhecerem bem esta variante, por isso gravei um vídeo onde exemplifico.
http://www.youtube.com/watch?v=sGLrxcN6dYY
Sempre maravilhado pelo modo como esta música encaixa tão bem na letra, lembrei-me de algo que nunca tinha pensado: será que cantar a letra da Internacional Socialista com a música dos "parabéns" também resulta? Experimentei: resultou.
http://www.youtube.com/watch?v=0hmHtNyrvwo
Bom primeiro de Maio, camaradas, e parabéns.

Acidentes

heitor penteado, ao lado do martelinho de ouro: um anão acende um cigarro.
Poderia ser um poema surrealista ou as palavras de um louco. Mas foi isso que eu vi: na avenida Heitor Penteado, junto a uma oficina chamada Martelinho de Ouro, um anão acendia um cigarro enquanto franqueava o portão de uma casa. Isto me importa porquê? Uma das citações que tenho no meu perfil do Facebook é de uma carta que W.H.Auden escreveu a Frank O'Hara, onde ele o aconselha e ao John Ashberry para terem "atenção àquele que é sempre o grande perigo de qualquer estilo 'surrealista', nomeadamente o de se confundir autênticas relações não-lógicas, que causam espanto, com as acidentais, que causam uma mera surpresa e, no final, cansaço". Mas os acasos como o do anão lembram sempre que o surrealismo é diminutivo de super-realismo - a realidade vista de tão perto que a perspetiva se perde e ficamos apenas com isso mesmo: a realidade em macro, sem foco, bruta e absurda. As cabeças com flores no casamento do rei. O elástico que abraça um lápis. A madeira na perna de Roberto Carlos. Tudo no mundo pode ser revelação de deus ou do diabo. Estas palavras também.

eMorte

Lendo "O Museu Darbot e Outros Mistérios", de Victor Giudice, deparo-me com a frase ‎"Ninguém resolve a vida ou a morte numa quinta-feira". Pelos vistos, a frase também se aplica ao facebook, já que, alguns minutos depois, ele perguntou-me se quero ser amigo do Carlos Pinto Coelho. Afinal, temos 66 amigos em comum e o facebook trata disso mesmo: amigos. Vida e morte não passam por lá.

A última frase que Fernando Pessoa escrevinhou antes de a cirrose o vencer foi "I know not what tomorrow will bring", o que acabou por ser uma das suas citações mais frequentes depois do "primeiro estranha-se e depois entranha-se" com que ele introduziu a Coca Cola em Portugal durante o seu breve período enquanto copywriter. Aliás, se me recordo bem do "Fazer Pela Vida" de Mega Ferreira, esse período terminou devido a esse próprio slogan, que levou a que Ricardo Jorge, diretor de saúde de Lisboa, desconfiasse das propriedades narcóticas da nova bebida e mandasse atirar ao mar todo o stock que tinha chegado a Portugal, proibindo a sua comercialização. Como nenhuma agência quer trabalhar com um copywriter que faz com que o produto anunciado acabe com os peixes (a menos que se trate de coisas para aquários, mas não foi o caso), Pessoa nunca mais conseguiu trabalhar com publicidade. Mas, regressando: Pessoa era um poeta, conhecido, respeitado por um grupo de amigos fiéis, e escreveu uma última frase num papel, que alguém guardou, porque, enquanto poeta, a sua aproximação da morte expressa em palavras era considerada de valor para toda a gente. Mas todos nós temos blogs, facebooks, twitters. Todos hoje podemos ter o nosso "I know not what tomorrow will bring". Aliás, pode até haver plágios de citações post-mortem, o que poderá levar à criação de um tribunal de direitos inteletuais no Além. Basta que, em vez de pedir um papel e um lápis, peçamos um laptop.

Depois de os nossos corpos se extinguirem, o que acontecerá a esses espelhamentos da personalidade que ao longo de anos fomos distribuindo por aí? E-mails, sites, fotografias, coisas de que já nem me lembro, ocultas por pseudónimos atrás de pseudónimos, de passwords e perguntas secretas. Um cadáver, material, duro, pode ser devorado por bichos e destruir-se organicamente a si mesmo. Mas este mesmo texto que estás a ler, leitor, só desaparecerá se alguém souber o meu nick e a minha password e o destruir. Ou, pelo menos, se um grupo organizado de velhas georgianas com machados cortarem estrategicamente linhas de fibra ótica por esse mundo fora. Dos dois fatos, não sei qual será o mais provável. Ou, por outras palavras, I know not what tomorrow will bring.

Cidade aTravessa


Hoje venho aqui só para vos dizer que sábado, dia 30, farei spoken word no Cidade aTravessa. Será na Casa das Rosas, na Avenida Paulista nº37, às 20h.

Os panos dos sexos

Convém dizer que aproveitei a ida duma amiga brasileira para a Europa para ficar um mês no apartamento dela. Estou a dividi-la com uma outra amiga dela, que chegou uns dois dias depois de mim e, durante a mudança, me pergunta
Jorge, você sabe se tem pano de prato?
Como assim, pano de prato? Para enxugar a louça?
Isso.
Havia um em cima da torneira
- e vou andando para lá.
Não, esse é de limpar a pia.
Tens razão. Então, mas... - procurando nos recantos de uma casa ainda meio desconhecida - olha tantos aqui ao lado destas esponjas!
Não, Jorge, esses são panos do chão.
Ok... mas estão lavados e secos. Para uma emergência...
Imagina. Não é complicado, amanhã eu compro um. Custa só uns cinco reais!
Hmmm, mas espera! O fogão estava fechado e tinha uma cafeteira por cima. Ora, sob a cafeteira estava este pano, que poderia perfeitamente...
Jorge, esse pano é decorativo. É de viscose, não absorve.

e esse é o momento em que solto um desanimado
Mulheres!
precisamente ao mesmo tempo que ela solta um sentido
Homens!
e fomos cada um para o nosso respetivo quarto chorar.

Objetos do Brasil: o Programa Sílvio Santos


O Programa Sílvio Santos assenta num pressuposto curioso, que também já justificou coisas em Portugal como o "Agora ou Nunca": toda a gente quer dinheiro e está disposta a tudo para o conseguir. No entanto, ele fá-lo da forma mais despudorada que alguma vez se viu:
SÍLVIO SANTOS - Quem quer dinheirooooo?
AUDIÊNCIA COMPOSTA INTEIRAMENTE POR MULHERES - Eeeeeeeeeeeeeu!
SÍLVIO SANTOS - Quem quer dinheiroooooooooooooooooo?!
AUDIÊNCIA COMPOSTA INTEIRAMENTE POR MULHERES - Eeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeu!
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=FXnGNEnUR5Y&fs=1&hl=pt_PT]
Enquanto grita estas palavras de ordem, Sílvio Santos vai percorrendo à sua vontade um corredor entre duas colunas de espectadoras que parecem mais selvagens do que qualquer audiência que a Oprah consiga angariar. Quando quer perguntar alguma coisa a alguém, ele escolhe a pessoa que mais lhe agrada no momento. Há sempre um microfone a aparecer-lhe miraculosamente na mão, que ele aponta só para a interlocutora - sim, porque ele tem um microfone só para ele, que traz sempre fixo e em riste por baixo do pescoço, preso com uma coisa metálica que, por esta altura, já lhe deve entrar pela pele adentro. Se ELE OPINAR que a resposta da mulher está certa (e basta OPINAR, mas tem que ser ELE), tira um maço de notas do casaco e dá-lho. Sílvio Santos tem os bolsos mais bem recheados de toda a televisão mundal, mas nunca ganhar dinheiro foi tão humilhante em toda a história das atividades económicas. Ele ri-se e troça da ignorância das concorrentes de ocasião e, com requintes de crueldade próprios de um padastro num conto de fadas, ele humilha a Maísa, uma criança que se tornou uma figura televisiva precisamente por ser humilhada por ele e, de vez em quando, replicar (se bem que isso só sirva para que ele a humilhe mais um pouco).
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=wCK7aZmNMjQ&fs=1&hl=pt_PT]
No Programa Sílvio Santos, a audiência aplaude vídeos com homens a assobiar, anúncios de produtos de maquilhagem produzidos pelo próprio Sílvio Santos, travestis a cantar e desfilar, dinheiro, dinheiro e dinheiro. É um momento televisivo em que tudo pode acontecer, porque, desde que cumpra os requisitos de beleza e/ou de riqueza, nada é de tão mau gosto que nele não se possa ver. É pura poesia pop, arte contemporânea trash, um programa "larger than life" que ultrapassará sempre qualquer ficção imaginável. E, além disso, contém um subtexto sexual intrigante: Sílvio Santos, um homem de microfone em riste, a atirar maços de dinheiro ao calhas para uma audiência de mulheres ávidas, que se atropelam e empurram para conseguirem pagar as compras da semana. Ou seja, Sílvio Santos conseguiu o que muita gente sonhou e não alcançou: ele ejacula dinheiro. E, no final, ainda se ri. Com dentes cirurgicamente brancos, evidentemente.

Para o que me deu

Estou a fazer algo que não fazia há muito tempo: ler blogs. Foi uma constante diária desde 2003, quanto entrei no "meio" com A Peste - literalmente no meio; a moda tinha começado uns 2, 3 anos antes, e na silly season desse ano fora notícia, mas eu esperei até novembro para ter a certeza que não ia fazer merda - e depois ainda mais com o PF News, que obrigava a manter-me constantemente atualizado sobre novidades boas e más dos meios culturais, literários, audiovisuais e outros que tais. Em 2010, quando vim para o Brasil e deixei de escrever o PF News, deixei de ler blogs. E, não fosse ele, tê-lo-ia feito antes.

Em 2003-2004, havia uma discussão interessante sobre aquilo que se poderia escrever no blog. Este era o meio natural para se escrever sobre o quê, com que estilo, etc. Mas, uns 5 anos depois, com milhares de pessoas a produzirem diariamente milhares de carateres de forma espontânea numa espécie de esfera paralela a todas as restantes publicações que se faziam no mundo, parecia que os blogs já tinham tocado em tudo de todas as formas. Adolescentes a escreverem sobre política e pastilha elástica, políticos a escreverem sobre adolescentes e pastilha elástica, jovens guionistas a escrever sobre pastilhas elásticas e políticos e adolescentes. As possibilidades foram incontáveis; em 2008 pareceram já esgotadas.

A forma como a partidarização avançou também teve algo a ver com isto perder a graça. Por exemplo, quando o Aspirina B responde a João Galamba com a notícia "Portugal é o país da UE com mais progressos na educação", toda uma série de dúvidas surge: como é que isto surge neste contexto de esgrima política?, como é que a notícia foi criada, quem foi a fonte?, com base em que estatísticas?, que confiança podemos depositar nessas estatísticas, nós, que sabemos que as contas oficiais são alteradas desde clubes de futebol de 3a divisão até aos governos que têm que se haver com os parceiros europeus?

O mundo onde os blogs eram o meio de comunicação sincero e fora do sistema por excelência voltou a ser aquele onde não temos nada em que acreditar. No 11 de Setembro, foram a solução. Hoje, são só mais uma parte do problema. E, ainda assim, estou a fazer algo que já não fazia há muito tempo: ler blogs. Louco, não?

Chegar

Recém chegado a São Paulo, uma coisa me saltou logo à vista, ou melhor, às glândulas sudoríparas: está calor. Bastante calor. Não tanto como esperavam aqueles que me diziam "mas no Brasil está sempre quente" e não sabiam que eu cheguei a andar com um cachecol amarrado na cabeça em Julho. Ainda assim, está bem quentinho. O que significa que, como eu saí ontem de casa com uma mochila, cheguei ao trabalho com uma mancha de suor muito bonita desenhada nas costas. Felizmente, como estou com jet lag e o meu cérebro está quatro horas adiantado em relação ao horário local, cheguei cedo demais, ainda não estava ninguém no escritório e pude ir para a varanda deixar que as costas me secassem ao sol. Sim, havia sol, até chegar o final da tarde com o seu smog anestésico, mas antes ainda conheci o novo estagiário da produtora, que me disse que em Portugal já não havia dinheiro. Eu ri-me e disse "é verdade", mas tinha percebido mal: ele tinha dito que em Portugal não havia "gelo", e alguém soltou um "porquê?" e ele respondeu "porque a senhora que fazia perdeu a receita". Por isso, como eu sou uma pessoa cruel e sem coração, mandei-o logo fotocopiar-me um livro. Mentira, ele até é bom rapaz. Respondi só com a piada de brasileiros que me contaram ainda em PT, da senhora que quer registar a filha com o nome "Arquibancada do Corinthians" e, perante a recusa do homem do registro, exclama "ué, mas meu vizinho registrou o filho como Geraldo Santos!". Ele não se riu muito, por isso, mandei-o mesmo fotocopiar-me um livro.

Estudo para personagem

Eu não gosto de falar disto. Não é adequado ao momento. Sou fisioterapeuta, mas tenho a minha clínica própria. Sou uma mulher de negócios, uma empresária também. Tenho um sucesso moderado.

Eu não faço publicidade. Os pacientes que falem. Se gostarem, gostam. Têm gostado.

Eu não sou santa. Eu bebo, eu fumo. Porque é que as pessoas julgam que sou santa? Elas depositam esperanças em mim que não deveriam. Eu faço o que é preciso fazer. Às vezes vai resultar mais do que penso, outras menos. Mas eu não sou santa. Porque esperam que seja santa?

Uma vez, tive um paciente que sofrera um erro médico. Quando me chegou, só conseguia estar deitado. E eu pu-lo a andar.

Tenho uma mão XS. É mesmo muito pequena. Pedem-me muitas vezes que ensine coisas sobre massagens. Que conheça pontos milagrosos no corpo. Não sei ensinar nada. Se queres aprender, tira um curso.

Há mulheres que têm dores na nona vértebra. É a que fica no meio das costelas. Quem tem dores na nona vértebra ou não chora ou não tem orgasmos.

Eu choro muito.

O cheiro nocturno

Ontem foi mais um concerto dos Social Smokers, o último que dei em Portugal com a banda completa antes de voltar a São Paulo - o que não quer dizer que possam perder a performance que eu, o Silva o Sentinela e o Biru vamos dar amanhã no Clube da Palavra Ao Vivo, no Teatro São Luiz. Seja como for, como estas coisas cansam (ao contrário do que poderão pensar as minhas amigas que vêm do Brasil com a pica toda de rainhas da noite e que me mandam mensagens às 4h e meia perguntando porque não estou no Musicbox). Portanto, era tranquilamente que subia a rua para o meu prédio quando ouço uma voz atrás de mim dizendo "olhe, por favor!".

Viro-me. Dois polícias subiam a rua a correr. Ao lado, na estrada, um carro com um colega deles subia também. Na rua vazia, a visão daqueles dois latagões a correrem era, no mínimo, caricata. Cordial, perguntei "sim, senhor guarda?" e o polícia que me tinha chamado disse "deixe-me ver uma coisa, por favor". "Com certeza", e abri os braços, pronto para, pela primeira vez na minha vida ser revistado na rua - o que não teria sido problemático, já que sempre que vou aos Smokers não levo o revólver.

Mas ele não me queria revistar. Só me queria cheirar as mãos. Cheirou uma, cheirou a outra, disse "obrigado e desculpe". O carro deu meia volta e ele e o colega também e começaram a descer. E eu, cheirado por um polícia em plena rua às 3h da manhã, senti-me usado como nunca me tinha sentido na vida. No entanto, se algum dia aquele agente quiser ascender à posição de perdigueiro, estou disposto a escrever uma recomendação. Só faltou ele ter adivinhado o que eu tinha jantado. Se o tivesse feito, até o convidava para actuar connosco no Sábado.

Poema contra a crise

Há quem diga que a poesia não resolve nada,
Há quem diga que a poesia não é prática.
Mas eu vou resolver esta crise
Com poesia matemática!

O primeiro verso vai custar-lhe mil euros!
O segundo verso vai custar-lhe dois mil euros!
O terceiro verso vai custar-lhe uma participação numa empresa sediada no off-shore da Madeira!

O quarto verso vai custar-lhe uma citação na revista Ler!
O quinto verso vai custar-lhe uma citação no Jornal de Letras!
O sexto verso vai custar-lhe uma citação pelo Tribunal de Contas para um processo que não terá quaisquer efeitos práticos!

O sétimo verso vai custar-lhe uma casa de banho no Palácio de Belém!
O oitavo verso vai custar-lhe uma casa de banho no palácio de um barão de droga colombiano!
O nono verso vai custar-lhe uma casa de banho no Ministério da Cultura de Manuel Maria Carrilho!

O décimo verso vai custar-lhe o tecido das cuequinhas de Angela Merkel!
O décimo primeiro verso vai custar-lhe a tenda que Muammar Kadhafi usou quando veio a Lisboa!
O décimo segundo verso vai custar-lhe a barraca que o FMI vai armar neste país!

O décimo terceiro verso vai custar-lhe uma linha (de coca) a grande velocidade e um aeroporto que não ota nem desota!
O décimo quarto verso vai custar-lhe o ouro do Brasil!
E o décimo quinto verso vai custar-lhe todas as derrapagens nas obras públicas nos últimos dez anos!

Há quem diga que poeta é pobre,
Há quem diga que poeta é mau,
Mas eu com este poema
Acabei de salvar Portugal!

Lido pela primeira vez no slam da iniciativa Poesia Monumental, no dia 5 de Abril na Galeria Monumental, no Campo dos Mártires da Pátria nº 101. O evento termina hoje às 22h, com o concerto dos Social Smokers.

As pastilhas elásticas portuguesas

Sempre que se regressa à terra natal, presta-se especial atenção a tudo aquilo que há de diferente ou de novo. Porém, é difícil encontrar coisas que juntem as duas características. Por exemplo, a demissão de Governos é sempre diferente - mas já não é novo. O reequilíbrio de poderes na Assembleia da República será novo - mas não diferente.

Na minha busca-expresso pelo novo e diferente da Tugalândia, acabei por encontrar um elemento que reúne as duas características a um ponto no mínimo surpreendente: as novas pastilhas elásticas. A primeira que experimentei foi a Chiclets Ice Citrus Crush.Com esta pastilha, a Cadbury Portugal (dona das marcas Chiclets e Trident) tenta o que provavelmente muitos no reino do pastilhiquismo já tentaram e nunca conseguiram: simular o sabor daqueles limões velhos e bafientos que caem para trás da arca congeladora (talvez daí o "Ice") e só se vão apanhar depois de ganharem uma camada entre o verde e o esbranquiçado e um vívido cheiro a coisa pouco saudável. Chiclets Ice Citrus Crush é diferente, sim, mas será novo? O sabor cítrico tem sido, apesar de tudo, uma constante nas pastilhas elásticas, estando só um patamar abaixo dos clássicos Spearmint e Peppermint. Porém, o elemento "Ice" aqui chama a atenção para uma tendência recente de que a nossa próxima pastilha é um exemplo perfeito.
Adoraria ter estado na reunião de marketing que decidiu o nome desta pastilha. Na generalidade, é "cocktail"; na especificidade, é "daiquiri"; e na pentelhice é "frozen". Das duas uma: ou no laboratório de sabores da Chiclets eles têm um sabor "gelo", o que me parece francamente assustador; ou eles não têm nada disso e o "frozen" é trapaça. Seja como for, não deixa de ser um sabor interessante e que chama a atenção. A ideia, afinal de contas, é meritória: substituindo os verdadeiros daiquiris, a Trident permite que os seus consumidores deixem de gastar tempo a comprar rum, açúcar e limão e o gastem no que realmente importa, como mastigar sem engolir.

Confrontados com as inovações de marketing dos comparsas da Chiclets, os senhores da Trident foram obrigados a deitar a toalha ao chão e reconhecer que chegáramos ao abismo, ao verdadeiro "fim da história" fukuyamaico do pastilhiquismo. A situação era grave: não havia mais sabores. Já tudo fora vendido, já tudo fora anunciado. Nenhum fruto tropical desconhecido teria poder suficiente para vender, nenhuma nova mistura de sabores seduziria um público saturado. Como resolver isto? E então uma mente revoltada e cansada por estar a ter ideias até às 4h da manhã sem poder ir para casa genialmente disse: "passamos a vida a dizer ao consumidor o que vai provar. E se por uma vez, e se só por uma vez não disséssemos nada?!" E toda a gente aplaudiu. Assim se criou a Trident Senses Mega Mystery.

Há quem diga que os sabores são laranja e piña colada. Outros dizem que começa por saber a lima, no meio é morango e no fim é ananás. A mim parece-me haver algo de tangerina por ali. Mas a verdade, a grande verdade, é que isso não importa mesmo muito. As Trident Senses Mega Mystery provam algo que toda a gente sabe, mas tem vergonha de dizer: pastilhas elásticas, refrigerantes, rebuçados, o objectivo de tudo isso é meter o máximo de açúcar possível dentro do consumidor. E, ainda que a Trident o substitua por aspartamo, com este golpe eles enviaram uma mensagem muito directa: "o sabor? Que se lixe o sabor!". Obrigado, Trident. Graças a ti, o mundo é um bocadinho menos hipócrita.

Social Smokers a gostarem deles próprios

http://vimeo.com/22044935
http://vimeo.com/22045093
Ontem, disse dois poemas do universo Social Smokers para o canal A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria. Final de tarde no Parque Eduardo VII: O "Liberdade" não podia ter sido em melhor lugar...

A melhor tentativa de engate falhada de sempre...

...foi a que ouvi hoje, emanada da boca de um rapaz encorpado e moreno, suado apesar da t-shirt e das bermudas, que gritou para as profundezas do grupo de mulheres que andava à frente dele "Ò loira!" e que, vendo como ela olhou de relance, mas as mais trigueiras companheiras também, decidiu acrescentar "Era só para a loira! Era só para a loira! Não era para as morenas!", o que fez com que o grupo de mulheres acelerasse a marcha como quem não quer molhar os pés numa onda de parvoíces. Ele, vendo que já ninguém lhe ligava, não quis deixar que elas se fossem embora sem estarem bem cientes da posição dele sobre o mundo e a vida e todas as coisas e gritou com veemência "A gente só gosta de loiras! Só loiras! Viva as loiras! Viva as loiras!". E, curiosamente, foi poucas horas depois de eu ter ouvido isto junto ao Banco de Portugal que José Sócrates anunciou que o FMI vai voltar a fazer turismo em Portugal, perpetuando uma sina de loiros nos virem dizer o que fazer à vida, como já aconteceu nos anos 80, no tratado de Methuen, no Napoleão, nos romanos e até com os Afonsinhos. Por acaso, as vezes em que tivemos outras pessoas que não loiros a mandar em nós foram os espanhóis e os árabes e, do que se ouve dizer por aí, até não correu assim tão mal. Porquê então, de novo, o FMI e não Bin-Laden, por exemplo? Por enquanto, os loiros venceram de novo. Vivam eles, então.

Estudo para personagem

Eu não moro aqui, eu moro na vila ao lado. Eu sou designer de vidro. Não podia fazer outra coisa. O vidro é transparente, moldável, maleável. É material, sensorial. E frágil.

Eu sou como o vidro.

O que eu gosto no vidro é que ele não mente. Se ele está de bem comigo, as coisas correm bem. Se ele está de mal, eu corto-me. Eu posso andar por cima de vidro descalça e não me cortar. Mas também posso fazê-lo e cortar-me toda. Tudo depende de ele estar zangado ou não. Mas às vezes eu ando por cima dele e, a olho, faço peças que ficam magníficas. Tudo depende dele.

Eu penso muita coisa. Mas a pergunta é sempre a mesma: onde é que eu posso divulgar as minhas coisas? Eu moro aqui, trabalho na vila ao lado. Onde é que eu mostro o meu vidro, diz-me?

A semana dos Social Smokers

Se os grevistas da CP tiverem pena de mim, conseguirei chegar a Lisboa para amanhã, 3a feira, estar na Galeria Monumental, no Campo dos Mártires da Pátria 101, às 19h, actuando com os Social Smokers na abertura da exposição de fotografia Magnetic Poetry. João Silveira Ramos, que nos fotografou para o nosso primeiro álbum, expõe aqui as imagens criadas à volta do seu conceito, que inaugura assim o ciclo Poesia Monumental.

Já agora, como moro lá perto, não terei que me preocupar por haver greves nos transportes públicos que me impeçam de chegar ao concerto que os Social Smokers vão dar no mesmo espaço às 21h30 de Sábado, dia 9.

E para os mais impacientes não ficarem tristes (ou os mais tristes não ficarem impacientes), o Clube da Palavra do Canal Q fez-nos o favor de incluir mais uma participação nossa num programa. Começa aos 11m22s do vídeo aqui em baixo. Espero que gostem.
http://rd3.videos.sapo.pt/play?file=http://rd3.videos.sapo.pt/dzfUAnlliNtI8SSiLe64/mov/1

Dos clássicos

Quando Vatsyayana explica no Kama Sutra que há pessoas que já têm um conhecimento prático do Kama Shastra (ou seja, da tradição escrita sobre o prazer sensual), ele escreve as seguintes linhas
Todos sabemos, por experiência própria, que certas mulheres, tais como as filhas dos príncipes e dos seus ministros, assim como as mulheres públicas, são efectivamente versadas na Kama Shastra.
Um país em crise só pode encontrar conforto nelas.

O anúncio do bolinho de bacalhau do Habib's

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=iMp4lVBOHco&w=480&h=390]
Amigos brasileiros, vamos lá a ver se nos entendemos: eu acho que este anúncio está engraçado e, sendo estereotipado, não é preconceituoso. Tudo bem, ri-me e tudo, sim senhor. Mas...

1. Em Portugal, ninguém com menos de 60 anos usa camisas e coletes como este "Manuel", a menos que seja um estudante de Design de Moda com espírito saudosista.

2. Ao longo da minha vida, eu (e só porque cresci no norte de PT, e não em Lisboa, como diz o anúncio) devo ter conhecido meia dúzia de pessoas que diziam "óito" em vez de "ôito" e provavelmente já estarão todas mortas de velhice.

3. O que, eu já percebi, é impossível que vocês entendam é: se querem mesmo imitar o sotaque português, aprendam a modular as vogais. Nós não as fechamos ao ponto de dizer "belinhos", "becalhau", "fela". Definitivamente não as abrimos como vocês, por isso também não dizemos "mais", "restauranti", "piádista". Esta é sempre a grande armadilha em que caem os brasileiros que querem imitar o sotaque português. Aprendam, que eu não duro sempre.

4. Ambos os lugares são muito bonitos. Mas Lisboa não é Olinda, ou Salvador, ou seja lá qual for o centro histórico em que aquelas mulheres estão. Vê-se logo. E, aliás, se elas morassem numa casa daquelas em Lisboa, elas não estariam secando a roupa na varanda, porque teriam um batalhão de domésticos que as secariam com os próprios hálitos.

5. Ninguém ouve vira em Portugal. Para ouvir vira, é preciso ir a um baile de uma aldeia do Norte no Verão e, mesmo assim, ainda vai ser mais fácil ouvirem uma versão de um forró qualquer do que vira. Por isso, parem com o vira. Tipo, acabou. Ok? Ok. Beijos.

O butelo


Um amigo meu, português, mas que passou os últimos meses comigo no Brasil, regressou ao solo luso na semana passada e fez aquilo que, pelos vistos, está inscrito no nosso ADN: comer todas as comidas que, por dificuldade de execução ou por falta de ingredientes, lhes estiveram vedadas na estadia no exterior. Foi o mesmo instinto que me levou a devorar uma chamuça meia hora depois de ter chegado; a comer uma francesinha em cada uma das vezes que parei no Porto; e o levou ontem a perseguir um butelo.

Um butelo é o enchido que se exibe aqui em cima, típico de Bragança e confeccionado com pedaços de carne de porco com osso. Confesso que nunca tinha ouvido falar de tal coisa até que ele me enviou um e-mail dizendo "vou malhar um butelinho com cascas, simplesmente o melhor prato da gastronomia mundial". Disse-lhe que não sabia o que era um butelo. Ele respondeu dizendo que o meu conhecimento da alta culinária tradicional portuguesa era medíocre - eu, que até comia a crista do galo cozida quando a minha avó fazia cozido! audácia! - e anexava a receita. Relatei-a com muito interesse à senhora minha mãe, que reagiu da seguinte forma: "Grande coisa! O butelo dele é o nosso pedro!". Ao que parece, o mesmo enchido era executado aqui no noroeste, também usando o bucho e, como variante, a bexiga do porco, mas o nome diferia. Portanto, um pedro do Minho é um butelo de Trás-os-Montes. Dada a incidência de emigração da região trasmontana para o Brasil, percebe-se porque há tantos nomes estranhos naquela terra.



Do que tenho visto, já não se faz o pedro pelo Minho, mas os trasmontanos não desistem do butelo nem do seu acompanhamento predilecto, as "cascas" ou "casulas", ou seja, vagens de feijão. Parece interessante e revela bem o poder de decisão do povo nordestino. Um minhoto levanta-se à noite com insónia e pensa "o que me apetece é um leitinho e uma fatia de broa com presunto". Um trasmontano levanta-se à noite e pensa "o que me apetece é encher uma barriga de porco com carne e osso, deixá-la a defumar vinte dias, cozê-la duas vezes durante três horas e comê-la com vagens que ficaram um dia de molho antes de serem cozidas e alouradas". Poder-se-ia chamar-lhe teimosia. Eu chamo-lhe resiliência.

Seja como for, um abraço e muita força para o meu amigo. Fico ansioso por provar essa iguaria um dia e espero sinceramente que ninguém lhe chame preguiçoso por decidir comer as cascas com os feijões ainda dentro.

Estudo para personagem

Eu gostaria muito de te ter aqui, mas há uma força que nos obriga a andar.

Dantes, para as vacas ganharem força para puxar pedra e assim, dava-se-lhes vinho por uma garrafa. Mas tinha que se ter cuidado, senão a vaca mordia e partia a garrafa. O meu pai chegava-lhes com o dedo, punha-lho na boca para lhes apartar a pele e punha-se a garrafa de lado enquanto outro lhes agarrava o focinho para elas beberem. Mas o meu pai não lhes dava vinho, dava-lhes urina de homem. E farinha, milha.

Eu tenho uma uma coisa, sonho muito. Sonho que estou nalgum lugar, depois acordo. Mas dantes desesperava, agora não. É o que Deus quer, é assim.

Tinha na Bela e aqui muitos campos, que era uma coisa que gostava muito. Agora não os vejo.

Eu estou a pensar uma coisa, que tenho sonhado muito com eles. Ó Jorge, levas pressa? Quero-te perguntar, tens comido nuns campos lá em cima? Tu e a São... Não? Devem ser sonhos.

Quando fui para a tropa, levei presunto, cozido e lampreia seca fumada. Cozia-se a lampreia com presunto, passava-se em açúcar e enrolava-se. Depois ficámos lá todos a comer.

Fiz a tropa no Porto. Pesava 120 quilos quando me pesei na balança. Estive lá 12 dias. Quando nos mandavam encerar o chão, espalhávamos a cera, pegávamos numa passadeira, um deitava-se no fundo e os outros puxavam. Eu era sempre o que ia para o fundo.

Quando me quis ir embora, o meu tio pagou ao Sargento Vasconcelos, que era de Valença. Como não era tempo de guerra... Tinha de se ir a uma Junta. Na Junta estava um coronel, um tenente-coronel e um major e quem mandava naquilo era o major. Mas o sargento tinha-os na mão. Perguntaram-me "de que se queixa?". Eu respondi "da veia da urina". Fui-me embora ter com o meu tio.

Depois disso é que fui tirar a carta a Lisboa para começar a conduzir camiões. O teste foi na Graça. Eles queriam-me passar a perna e puseram-me num lugar difícil para dar a volta, mas eu fiz a manobra só com um braço.

Quando eu estava em Lisboa, uma vez estava com fome lá pelo Areeiro. Entrei num café, viro-me para o homem que lá estava e digo "dê-me um trigo com presunto, se faz favor". O homem virou-se para mim e disse "você deve ser lá de cima, de Coura, Monção, por aí". E eu "sou de Monção, como soube?". "Porque aqui não se diz 'trigo'. Se falar assim ainda se riem de si". E eu "ai os filhos da puta".

Hoje já vai ser um dia de sonhos.

Objetos do Brasil: o chuveiro elétrico


Ao contrário de alguns visitantes desprevenidos das terras de Vera Cruz, nunca tive nenhum problema com o chuveiro elétrico, que considero até muito eficiente. Na generalidade dos países que conheci (ou seja, em todos menos o Brasil), juntar as ideias de água e eletricidade não era coisa muito recomendável. Isto, reconheço agora, é medíocre e limitador. Afinal, sempre permitiria adiantar algumas tarefas matinais. Enviar um e-mail ao mesmo tempo que nos ensaboamos. Secar o cabelo da nuca enquanto ainda lavamos o da frente. Pôr as torradas a tostar enquanto nos esfoliamos.

No Brasil, ainda não se leva a torradeira para o banho. Porém, um dia alguém ligou o foda-se e disse "porque não?". São as frases que iniciam toda as grandes revoluções da vida moderna. Assim nasceu a democracia grega. Assim nasceu a revolução egípcia. E assim nasceu o chuveiro elétrico.

O chuveiro elétrico, está bom de ver, é um chuveiro que aquece a água através de uma resistência elétrica, não precisando de gás. Foi uma solução inteligente para aquecer a água a multidões e multidões que não podiam pagar a instalação de outros sistemas mais dispendiosos, incluindo esquentadores. Ou seja, uma espécie de Bolsa Família só para o momento do banho. As implicações políticas são óbvias: o chuveiro elétrico permitiu que o pobre se começasse a sentir classe média logo no quentinho do duche. Hoje, o chuveiro elétrico é transversal à sociedade brasileira. O seu uso é como comer rissóis: por muito rico e chique que se seja, de vez em quando passa-se por ele.

Lembro-me da primeira vez que usei um chuveiro elétrico como se fosse hoje. Imaginem a situação. Jorge Vaz Nande pendura a toalha na porta e, nu, fica a olhar para aquele estranho e volumoso objecto branco sobre a sua cabeça, preso à parede por um tubo e dois parafusos, do qual sai um grosso cabo elétrico que parece rir-se para ele como quem diz "ahah vou-te foder". Ele estica a mão com medo, já sentindo o frio da manhã no corpo, mas com receio de que a água demore tanto a aquecer na geringonça e o atinja com tanta crueza que ele não consiga reprimir um grito efeminado. Enche-se de coragem e roda a torneira. A água cai, de início fria... mas, em segundos, bem mais depressa do que com qualquer esquentador fajuto, ela fica quente. Nobremente quente. Regiamente quente. Jorge Vaz Nande põe-se por baixo da torrente e leva com ela na cara, logo experimentando a excitação das suas terminações nervosas. Enquanto ele pensa, rindo, em todas as vezes que um esquentador mau o deixou agarradinho a um fraquejante fiapo de mornura, ele repara que a água está a ficar demasiado quente. Ele olha para a parede, procura a torneira de água fria - mas ela não existe! Isto é um chuveiro elétrico, só tem uma torneira! O que fazer? O que fazer?! Sentindo a cara a ficar queimada, chegando-se já ligeiramente para o lado, Jorge Vaz Nande tem uma ideia- abrir ainda mais a torneira. É a única ação possível, a única que faz sentido - e funciona! A água fica, de repente, no seu ponto certo e Jorge Vaz Nande pode-se lavar, pensando que só falta inventarem chuveiros elétricos para as torneiras da cozinha, para assim ele não precisar de levar a louça suja para o banho.

Já agora, se procurarmos "chuveiro elétrico wikipedia" no Google, este remete-nos para a história dele logo no primeiro link. O segundo link é a definição de "lavagem vaginal". Apesar de o Brasil ser um país onde a higiene pessoal é muito valorizada, ainda não consideramos este um objeto do Brasil. Porém, quem sabe, talvez um dia falaremos sobre o tema.

Vida atribulada

O bom de vir a casa é que podemos encontrar revistas Maria de 1988 que contêm cartas como esta:
VIDA ATRIBULADA
Somos três amigas que vivem juntas e as nossas idades estão compreendidas entre os 15 e os 18 anos. Temos três problemas que gostaríamos que nos ajudassem a resolver. Arriscámos a fazer fotografias nuas e o fotógrafo tentou violar-nos. Estamos cheias de medo e sem saber o que fazer. Há rapazes que têm a mania que nós somos a Ninon e a Rosaly do 'Roque Santeiro', e então tentam agredir-nos. Finalmente, o último problema diz respeito à droga. Uma vez ofereceram-nos e como nós recusámos assaltaram o nosso apartamento.
Carla, M.S. - Porto

Nocturno

em são paulo olho à noite para o cruzamento da pacaembu com o minhocão enquanto ouço a paranoid android do brad mehldau e lembro-me que

em lisboa há dois anos distraía-me com o pátio quieto da academia militar a ouvir a summertime da jesca hoop e

há sete anos em coimbra olhava o ponto em que a praça da república se encontra com a sá da bandeira enquanto no bar do tagv se ouvia algo como a by this river do brian eno mas

há catorze anos olhava para uma esquina de um caminho de terra em troviscoso com a fonte mais abaixo casas em toda a volta todos se conhecendo

a tocar

eram os radiohead

a paranoid android

Objetos do Brasil: o Nextel

Ah, Brasil, Brasil. Terra de tantos e tão agradáveis sons. Os grasnares de tucanos. O zunido da moriçoca. E os "piris" dos nexteis. Um passeio pela Avenida Paulista chega para comprovar: os dois primeiros podem não ter muita expressão na selva urbana de São Paulo, mas o terceiro domina. "Piri". "Piri". Se estivéssemos em Portugal, até picava na língua.

Eu adivinho porque é que o Nextel nunca chegou à Tugalândia. Imaginem um telemóvel com a função de não pagar chamadas. Não é pagar pouco. Não é pagar mais ou menos dependendo de onde estiver a outra pessoa. É mesmo não pagar chamadas. Nunca. Mesmo que a pessoa que chamamos esteja nos Estados Unidos ou no Japão. Sim, jovens meninas adolescentes, os milagres existem. Mas nenhum operador de telecomunicações português vai querer abrir esta caixa de Pandora. Até porque, em Portugal, a expressão é "boceta de Pandora", o que chamaria as atenções indevidas de muito brasileiro. Por outro lado, como com o Nextel é fácil fazer chamadas para Tóquio, tudo fica certo.

Para além do encanto que os trocadilhos infames sempre trazem consigo, o Nextel tem para um homem o apelo de tornar qualquer um numa espécie de Schwarzenneger em pleno "O Predador". É que a função gratuita não funciona com base na rede normal de telemóvel, mas num sistema de radiotransmissão. De modo muito semelhante - ou melhor, exactamente como um walkie talkie. Daí o "piri" que se ouve quando o nosso interlocutor acaba de falar e que só faz apetecer responder coisas como copy, over, charlie, delta, tango. Como um walkie talkie, ele inclui-nos num grupo, numa quadrilha, numa irmandade. Podemos combinar negócios, planear reuniões, mas também, quem sabe, tomar o poder. Ou, pelo menos, brincar a tomar o poder. Ou seja, o Nextel permite ser profissional e imaturo ao mesmo tempo, adulto e criança. Não é por acaso que a actual presidente é uma ex-combatente: ao que parece, cada brasileiro tem em si um pequeno guerrilheiro, sempre à espera de vir ao de cima. E o Nextel apazigua-o. Roger.

Objetos do Brasil: a comanda


No Brasil, os portugueses são conhecidos como os donos de padarias. É um daqueles preconceitos que acabam por se revelar verdadeiros, como o de que as mulheres falam e pensam demais ou o de que os homens falam pouco e pensam menos ainda. Mas, é preciso que alguém o diga, uma padaria no Brasil não é só um pequeno estabelecimento com estantes que ostentam pães. Na verdade, elas estão mais próximas de um híbrido mutante de café, snack-bar e minimercado. Dependendo do estabelecimento, pode haver um balcão e uma zona com cadeiras para se provarem as iguarias requintadas que são feitas na hora e que podem ir desde meras sanduíches até refeições elaboradas. Ou um balcão com a comida que se paga a peso. Ou uma zona de estantes que exibe desde batatas fritas até vinhos importados. Ou uma prateleira refrigerada com iogurtes, bolinhos e bebidas energéticas. Assim, não é que as padarias só vendam pão - mas essa é a única coisa que todas elas parecem ter em comum. Isso, e o dono português, é claro.

Já que este tipo de espaços permite vários tipos de experiência - podemos tirar um suco da geladeira, mas também podemos pedir um ao empregado; podemos fazer o prato a nosso gosto, mas também podemos pedir uma refeição - e o Brasil é especialista em facilitar a vida ao cliente, foi por aqui inventado um poderoso auxiliar de consumo: a comanda. A comanda é uma ajuda metafísica à experiência de consumo. Cada pessoa tem uma alma, um espírito, uma personalidade. Ora, num ambiente comercial, esta precisa de se traduzir comercialmente. E daí nasce a comanda. A comanda é a personalidade de cada um aplicada à experiência de consumir.

A comanda varia em forma e estilo. Há-as em papel. Há as que são a face visível de um maquiavélico sistema de tecnologia sem fios. Há as que incluem uma listagem do que se consumiu e as que se compõem só de um número. Há-as coloridas, a preto e branco, quadriculadas, redondas, para escrever, para furar. Já me deparei com uma que era apenas um pedaço de papel com um número escrito. E, não, não importa nada que se chegue à caixa, o empregado não tenha apontado nada daquilo que consumimos ou o sistema não funcione e se acabe com a moça da caixa a perguntar quem nos serviu e o quê. Isso de nenhuma forma põe em causa a existência da comanda. A comanda comanda.

Esse é o momento em que nos perguntamos: então, para que serve a comanda? Porque não vão registando o consumo da mesa e no final pagamos a conta ao empregado ou na caixa? Porque a comanda coisifica-nos com ela. No final, somos todos democraticamente só um número, independentemente de sermos brancos, morenos, índios, japoneses, baixos, altos, gordos, magros. Só se formos bolivianos é que não, até porque, se formos bolivianos, passamos o dia a trabalhar numa sweat shop e depois nem dinheiro temos para cigarros, quanto mais para ir à padaria de um sovina de um português que nem o chorinho vai oferecer. Não é?

Augusta, graças a Deus, entre você e a Angélica eu encontrei o Décio Pignatari

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=WvWBvAiGReU&w=500&h=195]
Aconteceu que no Sábado eu estive na festa do Santo Forte e, logo na primeira vez que ia sair para refrescar a cara daquele lugar diabólico sem ar condicionado e com falta de bebidas, começou a tocar a "Angélica, Augusta e Consolação" do Tom Zé e não consegui sair enquanto não acabou. No Domingo, enquanto procurava uma pulseira de couro na Paulista, dei um salto à Cultura e descobri um livro que até parece uma justificação teórica do que fazemos nos Smokers, "o que é comunicação poética", de um senhor chamado Décio Pignatari. Hoje, no trabalho, apeteceu-me ouvir de novo a canção e comecei a ler sobre a "Angélica, Augusta e Consolação", principalmente sobre o álbum onde apareceu, "Todos os Olhos". Este álbum tem uma capa bem famosa, com uma fotografia do que seria um cu com um berlinde enfiado lá dentro, simulando um olho. E, fuçando, fuçando, descobri que a ideia para essa capa foi do próprio Décio Pignatari, que com certeza já estaria a executar as ideias sobre as quais mais tarde escreveria. É que se isso não é comunicação poética não sei o que é.

Canção do Asilo (a partir de Gonçalves Dias)

Minha terra não tem palmeiras
Lá não canta o sabiá
Não tem esfiha nem coxinha
Maniçoba ou vatapá

"É assim" é nosso "então"
O "OK" é "entendi"
A saudade que lá existe
É a mesma que existe aqui

Não encontro prazer lá
E não sei se o há aqui
Minha terra é um sonho em pó
Acordei, logo esqueci

Se esta terra tem primores,
Parabéns, mostrem-mos lá.
Não me falem "ora pois"
Nem me falem do que não há
Não sabemos o que é viver
Não aqui e nunca lá

Não tem Deus que traga a conta
Do consumo de maná
Não tem pai que nos corrija
Do erro que a gente fará
Não sabemos o que é viver
Não aqui e nunca lá

NOTA: Disse este poema no dia 21 de Novembro no espectáculo dos Social Smokers no SESC Pompéia. É a (in)versão possível de um português a viver em São Paulo no século XXI da famosa "Canção do Exílio" de Gonçalves Dias, um brasileiro que estudava Direito em Coimbra no século XIX.

Objetos do Brasil: a raquete elétrica


Fazer uma viagem é como levar um pobre num rodízio: não abdica de nada. Uma das coisas de que não abdiquei foi as vacinas. Não fui ao costumeiro centro de saúde, mas ao próprio Instituto de Higiene e Medicina Tropical, talvez porque tenho um fraquinho por qualquer instituição médica que já teve o seu boletim citado na série "House".

A Medicina Tropical é engraçada, porque é a única que não existiria sem medo. Não medo à doença ou à morte, mas ao próprio ser humano, desde que seja exótico. Sim, porque a Medicina Tropical olha para os trópicos com um medo que se pela. A comida pode ser perigosa, os insetos podem ser pestilentos, a doença pode sempre chegar - e, não tenha dúvidas, mais cedo ou mais tarde ela vai chegar. Por isso tudo, é sempre razoável tomar muitas mais vacinas do que aquelas de que precisaríamos, como que justificando na receita que nos passam a receita que lhes damos. Dentro desta paranóia toda, um pequeno actor surge: o mosquito, transmissor de tantas e tão boas doenças como o dengue ou a malária. Para quem não sabe, os mosquitos que pegam o dengue voam de dia e os que pegam a malária de noite. Ou seja, se se for um sujeito com muito azar, pode-se pegar o dengue e a malária no mesmo dia. Também pode ser que o mosquito do dengue goste tanto do que chupou que diga ao da malária onde é que a pessoa se encontra para este ir lá chupar também. Neste caso, o sujeito é na mesma azarado, mas, pelo menos, tem o conforto de ser muito apetitoso.

Para resolver este problema, o brasileiro adoptou um objecto muito peculiar, que junta o útil ao agradável e transforma em jogo a actividade de se manter saudável e livre de chupões de muriçocas: a raquete elétrica. A raquete elétrica torna portáteis aquelas armadilhas, presentes em todo o restaurante com pelo menos um prato na ementa a custar menos de 5€, que chamam os insectos com a sua cor arroxeada e os electrocutam mal eles pousam nelas. Mesmo que sejam borboletas. Doces e inocentes borboletas. Por isso é que, apesar de ela também ser vendida em Portugal, foi no Brasil que ela arrancou: porque, sendo o brasileiro sensível e atento às belezas do mundo, ele acha que a matança de animais voadores não deve ser indiscriminada, mas antes ficar ao critério do próprio sujeito matador. Assim, muniu este de uma raquete com a qual, qual Federer dos infernos, pode aplicar uma descarga eléctrica que fulmina o desgraçado e potencialmente letal bicho. É o mais próximo que uma pessoa normal pode chegar do serial-killer sem arriscar prisão: a raquete elétrica garante a repetição da alegria da matança. Por outras palavras, uma versão adulta do famoso jogo infantil "queimar moscas".

O modelo na imagem é o de uma raquete corrente. Reparem no centro da mesma: tem um raio, igual aos raios que Zeus atirava aos mortais. Ou seja, a raquete aproxima quem a usa das divindades gregas, o que faz todo o sentido, pois, como toda a gente sabe, Deus é brasileiro. E, tal como Deus, a raquete elétrica é omnipresente - pelo menos no Brasil.

Objetos do Brasil: a catraca


Uma das coisas mais fáceis de acontecer no Brasil é multidões. Pois se há coisa que o Brasil tem são pessoas, 190 milhões delas, sempre prontas a juntar-se e fazer coisas disparatadas, como eleger palhaços para altos cargos de governação. Mas deixemos de falar da Dilma e do Serra e falemos do que realmente importa aqui. Mesmo para o observador mais desprevenido, não deixa de surpreender o magnífico sentido de ordem que os brasileiros têm, principalmente os paulistas, que se colocam em fila seja lá para o que for. Mesmo que estejam a apanhar um avião em Frankfurt. E não seja preciso fazer fila. Mas eles fazem, e isso só é de louvar. A menos, é claro, que se seja de Goiânia, como um amigo meu, que tem vontade de dar um tiro a alguém sempre que vai no supermercado. Isso para não falar que, sempre que percebem que sou português, uma das primeiras coisas que qualquer pessoa me pergunta é se em PT usamos mesmo a palavra "bicha" para dizer "fila". Nesse momento, procuro o meu amigo de Goiânia e começo a carregar a carabina.

Para que essas filas não saiam fora do controlo, há um objeto conhecido muito singelamente por "catraca". A função da catraca é tornar lenta uma fila que sem catraca seria rápida. Encontram-se nos ônibus, no metrô e em qualquer outro tipo de transportes, com a vantagem que, se se apanhar o ônibus num terminal, é preciso passar por uma catraca para entrar no terminal e outra dentro do ônibus. Sim, cada ônibus tem uma catraca, para além de um cobrador, que tem como função garantir que o número de voltas à catraca coincide com o dinheiro em caixa no final do dia. Ou seja, nos ônibus não só se paga como ainda é preciso passar por uma máquina que impede que se chegue àquilo por que se paga. Claro que muita gente tem o Cartão Único, o que significa que não precisam de dinheiro, passam o cartão numa máquina e giram elas próprias a catraca. Nesses casos, o cobrador não tem nada para fazer e, por isso, pode adormecer tranquilamente no seu banquinho no embalo do ônibus. Cobrador de ônibus é, aliás, a segunda profissão que conheço onde é aceitável que se durma durante a jornada de trabalho, mas os deputados da Assembleia da República Portuguesa sempre têm a desculpa de não terem uma catraca por que olhar.

Já passei por catracas para ir a concertos, casas nocturnas, para ver jogos de futebol na praia, para ir ao teatro. No meio disto tudo, porém, tem uma coisa boa: ao contrário do Metro lisboeta, em que é preciso passar o passe novamente no leitor da catraca para se poder sair, o Metrô paulista só requer que se empurre a catraca do lado de dentro. Isso realmente ajuda a que a fila, que sem catraca seria rápida, não seja tão lenta como poderia ser - a menos, é claro, que se seja homem, se vá com pressa e se esbarre com as jóias da família na porra da catraca. Nesse caso, a fila fica lenta de novo.

A tartaruga tuga

Uma tartaruga chamada Calantha, que não via o mar há 30 anos, saiu do Aquário Vasco da Gama e nadou durante 332 dias até chegar às Caraíbas. Os biólogos dizem que é "uma das maiores migrações" de tartarugas de que têm conhecimento.

É preciso tecer algumas considerações sobre isto. Primeiro, se é só uma tartaruga a nadar, não é uma migração, é uma viagem. Em 2003 eu viajei pela Europa toda com a mochila às costas e fazia interrail; porque é que uma tartaruga de carapaça é logo migrante? Tem visto de trabalho, é? Vai aguentar uns anos para mandar vir a família também? Por favor.

Segundo, eu posso estar longe, mas tenho acompanhado as notícias, e não me espanta nada que qualquer ser que seja solto em Portugal por estes dias se queira pôr a milhas o mais depressa possível. Aliás, quem é que o Aquário Vasco da Gama quer enganar? Mantiveram a tartaruga com eles durante 30 anos e agora deixam-na ir embora? Podem chamar-lhe "migração" à vontade - eu chamo-lhe despedimento sem justa causa. A tartaruga não precisa de atenção, ela precisa é de um subsídio.

Terceiro, analisemos bem as ações da Calantha. Chegou ao Vasco da Gama nos anos 70, tem à volta de 40 anos, esteve cinco anos em recuperação para reaprender a "capturar o seu alimento" e que "os humanos não são amigos". 40 anos, acha que os humanos não são amigos e à primeira oportunidade raspa-se para as Caraíbas? Não nos enganemos, meus amigos - esta tartaruga é uma divorciada. Arranjem-lhe um mulatinho e uma margarita e não se preocupem mais com ela.

Pau e brasil

Não deixa de ser curioso que a primeira vez que ouvi o hino brasileiro tenha sido no início da parada gay - momento, aliás, devidamente documentado para a posteridade. Em Portugal, o brasileiro é visto como animado, divertido e irremediavelmente liberal e folgado. No Brasil compreende-se, no entanto, que, se em Portugal a lei anda à frente da sociedade, no Brasil a sociedade está à frente da lei. Não é possível abortar, não é possível andar na rua com drogas leves ou pesadas (ainda que em doses para consumo individual), os homossexuais não se podem casar. Ao mesmo tempo, basta um passeio normal pela Avenida Paulista ou uma saída nocturna sem grandes espalhafato para encontrar casais homossexuais beijando-se sem vergonha, as prostitutas da Consolação - curiosa coincidência toponímica - esperam os clientes sem se esconderem na sombra ou no anonimato da estrada, a cocaína circula aos montes e a maconha aos fardos. Uma ressalva no afirmado anteriormente: a sociedade está à frente da lei no comportamento, porque a mentalidade, estranha, masoquista, mantém-se apertada, mesmo no seio de grupos que se imaginava serem mais progressistas. Apesar de tudo, o brasileiro é bem comportado e de um estranho conservadorismo relaxado: não gosta de ruptura e leva a mal que se aponte falhas. A ditadura militar será explicação para parte deste comportamento, o comportamento será parte da explicação da ditadura militar. Enfim, "o brasileiro", "basta um passeio" e "a sociedade" são sempre aquelas generalizações bacocas e com quota-parte de perigo. Ainda assim, confesso que senti algum orgulho quando, assistindo à parada gay, me lembrei que o meu país acabara de promulgar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Nesse momento, o hino do Brasil cantado de modo bem divertido por um travesti começou a enfraquecer nos meus ouvidos. E, contente, ouvi, claro e distinto, como se estivesse ao meu lado e não a um oceano de distância, o som ainda mais divertido de Cavaco Silva a engolir um enorme, indiscreto e liberalíssimo sapo.

Tenho uma casa para olhar

Ao que parece, Vinicius de Moraes fez o seu apontamento na guerra Sampa-Rio quando disse que o samba vinha a São Paulo para morrer. Até certo ponto, dá para entender. O brasileiro tão musical que é tão conhecido em Portugal é, na verdade, o carioca. Com as vogais ainda mais abertas do que o costume e o "jeitinho" a borbulhar, o Rio é terra de samba e lugar onde personagens como Wilson Simonal ou Leon Eliachar são naturais. Voltaremos a eles noutro dia. São Paulo, por outro lado, cidade de ética de trabalho férrea, sem praia, sem calor, terra de garoa, de lazer e dor, não tem muito a ver com garotas de Ipanema. Dizia uma das últimas Piauí que a afirmação de Vinicius era contradita por um homem, um italiano de nome original João Rubinato e que acabaria por se tornar conhecido como ator, personalidade propagandística (da Antártica) e sambista melancólico sob o nome de Adoniran Barbosa. Com uma voz rouca, das profundezas, o homem, que às vezes parece deixar o coro cantar os agudos para depois lhe vir contramarcar o desvairo, é, mais do que um letrista, um verdadeiro cronista. "Trem das Onze" é uma canção certeira num lugar onde a especulação imobiliária leva a que vários filhos continuem a viver com os pais até uma idade adulta, "Tiro ao Álvaro" é uma canção de amor em sotaque dos italianos do Brás, "Despejo na Favela" é uma melopeia de pobres. A melancolia profunda de Adoniran marca bem a diferença entre as duas cidades. Nela estão os paulistas a acusarem os cariocas de preguiçosos e os cariocas a acusarem os paulistas de obsessão com trabalho e dinheiro, os meus amigos atores a queixarem-se de que no Rio se fazem intervalos de 30 minutos no teatro e no fim é preciso ir buscar o público ao bar da esquina, os meus amigos cariocas a rirem-se do modo como em SP se continua a trabalhar depois dos jogos da Copa mesmo que o jogo seja de manhã. O samba alegre encontra a cidade triste de Adoniran e fica mais alegre, a cidade mais triste fica.

O “POLITIQUÊS” E O PODER DA AUTO-CLASSIFICAÇÃO, ou As Variações Pachecoldberg

(a partir de PP)

Olhando para os encontros dos políticos que venceram os cidadãos, encontramos um dos mundos menos conhecidos e escrutinados da vida pública portuguesa. Porém, existe uma relação directa entre a ausência de escrutínio do seu trabalho e a capacidade que têm de influenciar os media a favor das suas causas, quer porque o seu lugar é central em certas "indústrias da comunicação", a que os media estão associados, quer pelo preconceito da intangibilidade da "administração", da "governação", da "política".

Este mundo funciona em circuito fechado, e desconhece-se que critérios presidem ao seu funcionamento e como são verificados os resultados dessa aplicação do dinheiro dos contribuintes. Sabe-se que não é pelo interesse dos cidadãos, visto que estes ramos de "administração" e "política" abominam tal critério vulgar, de serem avaliados, entre outras coisas, pelo interesse que suscita o seu trabalho pelo comum dos portugueses.

É verdade que a verba que gastam do erário público é elevada e é dinheiro dos contribuintes que têm direito de saber onde e com quem é gasta. Os grupos de "políticos", principalmente na área autárquica e da administração autónoma, empregam um número significativo de pessoas, cuja trabalho individual é desconhecido e não avaliado. São "políticos" e como se auto-classificam como tal, quase tudo lhes é permitido, e respondem com enorme arrogância a qualquer avaliação.

Organizados em vários "partidos", PCP, PS, PSD, a que se juntaram o CDS e o Bloco de Esquerda, representam uma miríade de grupos cuja existência pública é quase ignorada se exceptuarmos alguns comentadores, personalidades televisivas, arguidos judiciais e o Alberto João Jardim. O Bloco "reúne 3 partidos políticos anteriores" e o CDS "agrega cerca de alguns milhares de velhinhos, betinhos e pessoas suburbanas que já se assustaram com uma sombra na rua, maioritariamente de Cascais e das áreas das feiras". Só o PSD inclui a comunidade de filiados mais sequiosa por uma mudança de poder no país, um ou dois Governos-sombra, o Pacheco Pereira e o Pedro Santana Lopes, a Zita Seabra e a Maria José Nogueira Pinto.

Tanto"político", tanto "governante", que nós temos por metro quadrado! O modo como se apresentam tem toda a prosápia burocrática e institucional. O PS quer com ousadia "defender inequivocamente a democracia e procurar no socialismo democrático a solução dos problemas nacionais e a resposta às exigências sociopolíticas do mundo contemporâneo" para o que defende "uma economia de bem-estar, aberta à pluralidade das iniciativas e das formas económicas privadas, públicas e sociais, e regulada pelo mercado e por instituições públicas adequadas"O PCP explica-nos que na sua festa na Atalaia"pavilhões dos países socialistas, de jornais de Partidos irmãos, pavilhões dos novos países africanos com exposições sobre as conquistas dos povos que avançam decididamente na construção do socialismo, sobre a luta das forças progressistas de todo o mundo - e também bancas onde poderão ser compradas recordações e produtos de todo o mundo!". Uma coisa chamada JSD explica-nos que a dita é "uma estrutura autónoma do PSD, apresentando um posicionamento programático claramente mais à esquerda, uma voz crítica e sem tabus, mas que, com o tempo, passou a alinhar mais com a base programática do partido. Mais ao centro e abandonando a ‘irreverência esquerdista’ que a caracterizou inicialmente". E por aí adiante.

Este bla-bla do "politiquês" é como o "culturalês" e o "eduquês", mas ninguém lhe toca. Só faltava tratar os "políticos" como gente vulgar!

Insuficiências

Conheci um dono de padaria português. Na verdade, conheci vários. Confirmam-se os rumores, eles são muitos e estão por todo o lado, suprindo as necessidades do café da manhã de toda uma nação - sim, porque também conheci um que vendia o seu pão francês lá mesmo no amazónico Pará. Diz-se "pão francês", curiosamente, e não bijou, trigo, de Mafra ou de Avintes. Por Sampa, o máximo que encontrei foi um pão bem gostoso que parecia broa, assim consistente, cheiinho, mas chamavam-lhe pão italiano. Adiante.

No Rio Grande do Sul, o pão francês é o "cacetinho", ou seja, um pequeno cacete, o que em São Paulo é o mesmo que uma pilha eléctrica é em Espanha. Isso mesmo, uma pila. Ou, mais precisamente, uma pilinha. Portanto, o que não falta por aí são hordas de gaúchos a pedirem pilas em padarias. O Brasil, definitivamente, é um país divertido.

É muito normal que os portugueses das padarias tenham bigode, para além de imagens católicas (não do candomblé, não espíritas) hasteadas nos estabelecimentos. Curiosamente, o dono de padaria que conheci ontem não tinha bigode, não tinha imagens nas paredes e também não tinha um dedo, o médio direito, provavelmente porque lho exigiram na Polícia Federal para estender o visto de residência.

Sem brincadeira, a insuficiência deste senhor, jovem, bom gestor, passava bem despercebida. Ele era de Fafe, e, curiosamente, tive na Faculdade um colega de Fafe que era conhecido também por uma insuficiência que passava despercebida. Digamos só que um habitante do Rio Grande do Sul chamar-lhe-ia um pão. Seja como for, lembrei-me do homem hidrocéfalo que vi na Feira Nordestina do fim de semana que passei no Rio. Imaginem o ambiente: Alceu Valença tocando, um público apertando-se em amálgama de cores, protuberâncias e pernas, o forró rolando para uma audiência que passou o dia em praias munidas de estruturas metálicas para fazer exercícios abdominais e inchar os músculos dos braços - e um homem hidrocéfalo, com a camisa suja, passeia-se pelo meio, fumando e com cara de poucos amigos. Realmente, amigos não devia ser uma coisa fácil para ele fazer.

O Brasil é um país de gente bonita, gente feia, gente de todas as lindezas. Alguns são donos de padaria. E alguns são portugueses. E pronto.

No Fórum

O dia amanheceu cedo na Frei Caneca. Era quinta-feira, dia 17, mas estamos a falar de um dos pontos nocturnos mais mexidos de São Paulo, ali mesmo perpendicular à Paulista, e os sinais dos baladeiros das horas anteriores ainda se viam pela rua. São Paulo tem estado frio, surpreendentemente frio. Trouxe um cachecol pensando que nunca o usaria, mas bem que podia processar a TAM por publicidade enganosa nos ecrãs individuais, porque posso já ter visto garotas bonitas, mas praias quentes e sol brilhante é que têm faltado (até pode ser que em Pernambuco seja diferente, mas o avião não me trouxe para Pernambuco). Descendo a rua, cheguei ao Centro de Convenções, onde recorria o Fórum Brasil, também conhecido como Mercado Internacional de Televisão.

Eu devia ter ido no dia anterior, mas caíram-me em cima um deadline e uma viagem no fim-de-semana e tive de fazer uma directa, sempre a pensar que duas horas depois conseguiria acabar o trabalho e seguir directo. O optimismo é uma das qualidades mais admiráveis do ser humano, mas deve ser administrado em doses moderadas. Não foi o meu caso. Mas foi impossível faltar ao segundo dia. O Newton ia falar.

Newton Cannito é roteirista (guionista, em Portugal) e é graças a ele que estou no Brasil. Quando me candidatei ao Inov-Art, era o país que parecia a escolha natural para quem escreve em português e quer passar por um sistema de produção grande. E havia uma empresa chamada FICs - Fábrica de Ideias Cinemáticas que me atraía acima de tudo, principalmente porque ela surgira na sequência de um método desenvolvido num livro chamado, muito simplesmente, "Manual do Roteiro, ou Manuel, o Primo Pobre dos Manuais de Cinema e TV". Só o título  já justificaria o interesse; o conteúdo reforçá-lo-ia; mas o facto de uma empresa ter nascido com base nele, coisa que nunca conheci em mais lado algum, foi o empurrão definitivo. Newton é um dos autores do livro e fundadores da empresa. O contacto foi feito de forma muito modernaça: pelo Facebook, para o que contribuiu a maravilhosa capacidade do Brasil para gerar nomes que mais nenhuma pessoa em mais lado nenhum do mundo tem (pelo menos, com conta no Facebook).

O Newton foi extremamente receptivo e seria hoje o meu orientador de estágio se não tivesse sido convidado para ser o novo Secretário do Audiovisual em Brasília. Enquanto roteirista, ele conhece melhor do que ninguém o sector e, como tal, está na melhor posição para ter uma visão própria desenvolvida e perceber as necessidades do meio. O que ele falou no Fórum não foi diferente do que já tinha afirmado na sua apresentação oficial no início do mês na Cinemateca Brasileira, do que escrevera no seu livro "A televisão na era digital" ou do que foi repetindo ao longo da sua carreira, até na própria índole dos projectos por que deu a cara: por um lado, a ideia de que os meios já não estão numa relação vertical, com a TV no topo, mas horizontal, sem secundarizações de uns quanto aos outros; por outro, uma defesa da posição do autor. O lançamento próximo do Fundo de Inovação Audiovisual e de um edital específico para o desenvolvimento de projectos respondem precisamente a essas duas urgências.

No entanto, a intervenção mais surpreendente acabaria por ser, para mim, a de Marcelo Gluz. O gerente de novos media da Globosat falou sobretudo da ideia do transmediático: da expansão de uma obra através de diferentes dispositivos  que convergem, não num só, mas no usuário e na história. Documentação caótica, universo e personagens fortes, storylines múltiplas em vários gadgets, todas as histórias a contribuírem para a storyline central: é o conceito de story dwelling, em que a perspectiva do espectador é elevada ao máximo de importância, a tal ponto que é a partir da sua entidade que as histórias são contadas. Estas palavras concentram o que sempre senti ao trabalhar com Net, que estava a lidar com o nível estrutural mais próximo do que pode ser a imprevisibilidade da vida real. E isso ainda se evidenciou mais com o "abrir de olhos" que Gluz forçou no final: num mundo em que sabemos da vida dos nossos amigos por portais sociais, em que enviamos fotos por e-mail e postamos vídeos no YouTube, em que conversamos por telemóvel e fazemos vídeochamadas por Skype, em que lançamos snacks de vida no Twitter, no Flickr, no MySpace - nesse mundo, os nossos amigos são já produtos de media e a nossa vida real é transmedia em si mesma.

E felizmente o é, senão eu não estaria no Brasil.

18h15

Eu espero um ônibus. Já faz noite. O primeiro aparece com uma caixa na mão. "Moço, compra uma bala". Dentro da caixa, embalagens de rebuçados coloridos. Digo que não. Reparo então: ele tem os olhos marejados de lágrimas. Vira-se para trás. "Anda, Henrique". O irmão aproxima-se. Pequenino, quatro anos no máximo. Eles afastam-se, o maior claramente liderando. Está frio em São Paulo, eles não estão mal agasalhados. Têm camisolas, o mais novo tem um casaco vermelho, estão bem lavados. Se são moleques de rua, alguém toma bem conta deles, ainda que seja só eles mesmos. O maior vê algo no chão, aponta, o mais novo apanha. O que é? Não se vê, mas o maior faz que sim com a cabeça. É coisa boa, alguém jogou fora, alguém perdeu, não interessa, agora é deles. Penso que lhe devia ter perguntado porque chorava e dado uns trocos, mas agora é tarde. Eles estão lá longe, entre a estação de serviço e a cafetaria com as paredes cobertas de revistas finas,  e eu penso que estes são dias que o Henrique nunca mais vai esquecer: os dias em que, bem abrigado, andava pela rua a vender balas com o irmão mais velho.

As pequenas diferenças

Parece mentira, mas já estou em São Paulo há 21 dias. O primeiro mês do meu visto está quase a esgotar-se, o que parece justo, já que uma parte substancial dele foi passada a tentar registrar esse mesmo visto na Polícia Federal - ou PF, para os amigos. Por outro lado, PF é também um sistema de restaurante (Prato Feito, diferente da comida a peso), para além, é claro, das Produções Fictícias. A Ana hoje percebeu um padrão nas minhas ocupações: Cabra, Bode Expiatório; Produções Fictícias, FICs. Estou mortinho por descobrir o que vai emparelhar com a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro.

Tenho-me lembrado muito desta conversa durante estes 21 dias. É tudo um bocadinho diferente em São Paulo, apesar de ter tudo o que Portugal tem menos a língua. Um x-acto é um estilete, uma rotunda é uma rotatória, um rissol é um risoli. Pastéis de bacalhau rareiam, mas há coxinhas. Ninguém pergunta se queremos factura, mas nota fiscal paulista. Não há c's e p's nas palavras. As vogais são abertas como uma fronteira sem PF. Há cromos do Mundial, mas chamam-lhes "figurinhas" e aos Sábados centenas de pessoas vão para baixo do MASP trocar zagueiros por goleiros. Bebe-se muita cerveja, mas nos cafés, que se chamam lanchonetes, é preferível comprar uma garrafa grande e dividir. E nas caixas automáticas, que não servem para todos os cartões, não dá para carregar o telemóvel, que se chama celular,  mas nas caixas de supermercado e nas bombas de gasolina já dá.

Na 3ª feira da semana passada, cansado de ser estrangeiro, apeteceu-me ir jantar a um lugar (e não digo "sítio" porque sítio aqui é fazenda) onde não tivessse que aprender nada. Um lugar onde não tivesse de me confrontar com termos como bauru, virada, açaí, catupiry. Um lugar que fosse um vazio cultural, onde comer fosse quase intuitivo, mecânico e sem prazer. Mas onde encontrá-lo? Felizmente, perto de nós, há-de sempre haver um McDonald's.

Fui no da Rua Augusta e entrei. Tudo muito normal e calmo: os vermelhos, os amarelos, os brinquedinhos e as coisinhas todas para atrair crianças para os poliinsaturados desde o berço. Há Big Tasty? Há, e chama-se mesmo assim: não preciso de dizer "le Big Tasty". Pego no meu hambúrguer, pego na minha cola (que cá é mais "coca"), pelo nas minhas batatas (que cá são mais" fritas") e sento-me. Ah, o prazer de comer comida igual em todo o mundo, com aquele inconfundível sabor a fritonguice a jorrar de todos os poros, das pontas afiadas das batatas, dos molhos enfiados no pão, e empurrar tudo com um grande golo de...

Falta-me a palhinha.

Tudo bem, não há-de haver problema, há mais no balcão. Levanto-me, ando até lá e pergunto à menina Olhe, por favor, queria uma palhinha. Ela não percebe. Não faz mal, é do barulho, há mais gente a ser servida nas caixas ao lado. Quero uma palhinha, por favor, e neste momento já puxo pelo sotaque brasileiro. Ela continua a não entender. Então, fecho uma mão, estico o mínimo e o polegar, mínimo para baixo e boca no polegar, e digo, com as vogais todas abertas e sem c's nem p's pelo meio, Uma palhinha! Para beber! e a moça exclama Ah! Um canudo! Aqui tem!

Um canudo. Um canudo. Um canudo. E aí eu lembrei-me do "mostrar" e de como o PT-BR do Consulado de Lisboa é ainda mais diferente do PT-PT. Quando em PT-BR consular vos dizem que é necessário "mostrar" o protocolo na PF depois de chegar, isso significa preencher uma GRU na Internet, pagá-la num banco ou casa lotérica, tirar duas fotos 3x4, preencher um formulário chato, tirar fotocópias ao passaporte, chegar na fila pelas 7 da manhã, entrar e entregar tudo para depois ter que esperar até às 15h com uma senha que não se pode perder para tirar impressões digitais, reaver o passaporte e um talão que comprova que já se está legal. Isso, claro, se não houver um problema nos documentos com o nome da mãe, porque, nesse caso, é preciso ir ao consulado português pedir uma nota consular e perder mais uns dias de trabalho numa sala com o único atractivo de se poder conversar com uma data de bolivianos que por cá andam a tentar a sorte.

Saí do McDonald's com as mãos sujas de gordura. Saí da Polícia Federal com as mãos sujas de tinta. Essa é a conclusão possível: isto deixa marca.

Lula para todos

Uma refeição completa e bem saborosa (frango guisado, feijão, arroz, jardineira, salada, sumo de kiwi e, para sobremesa, um fruto que é um diospiro, seja lá qual for a palavra acabada em i, u ou ã que por cá se inventou) num Bom Prato, um dos restaurantes sociais criados pelo senhor Lula para acabar com a fome, incluindo a de portugueses que vão à Lapa registrar o visto: 1 real.

Um café expresso na Casa do Pão de Queijo ao lado: 2 reais e 40 centavos.

Ir ao Bom Prato da Rua Afonso Sardinha é como ir à cantina em Coimbra. Aliás, a fila estava cheia de gente de todas as carteiras, desde vagabundos a antropólogas em doutoramento, passando por estudantes universitários, aposentados, lojistas, os motoboys que estacionam por ali, os empregados das lojas das redondezas... isso ajudou-me a ultrapassar o remorso prévio que me atacou. É que um Bom Prato não tem hora certa para fechar - abre às 10h45 e fecha quando as 1500 refeições que disponíveis acabarem. E eu lá pensava "se calhar, vou estar a tirar a refeição a alguém que precisa mais". Afinal, não. Aquilo é mesmo de todos.

Sobre a minha participação como guionista no filme "Um funeral à chuva"

As notícias sobre o filme Um Funeral à Chuva, que estreia hoje em Portugal, e principalmente uma entrevista publicada ontem no blog do João Nunes onde o meu nome é mencionado, levaram a que eu e o guionista Luís Campos fôssemos questionados  sobre a possível existência de atritos entre nós e sobre a minha posição neste processo. Para esclarecer os mal-entendidos, fica aqui uma explicação breve.

Em 2006, logo após ter escrito a curta Utensílios do Amor para o realizador Telmo Martins, produzida por aquilo que viria a ser as Lobby Productions, foi-me passada uma história original sobre o reencontro de estudantes universitários na Covilhã com a missão de a transformar em guião. Na altura, fui pago com uma soma justa e, ao longo de dois anos, escrevi mais dois drafts enquanto a produção tentava conseguir fundos pelas vias normais dos subsídios públicos, a fundo perdido ou não. Em 2009, após uma aprovação com reservas pelo FICA, eu desliguei-me do processo e a Lobby decidiu passar o guião ao Luís Campos para uma reescrita. O Luís foi mais longe e transformou o guião em algo novo, algo dele e, naturalmente, mais próximo da visão da produção, já que todos eles foram estudantes na Covilhã e partilhavam um património comum. Após uma rejeição desse guião pelo FICA, a Lobby decidiu avançar para a produção da maneira heróica que é conhecida, e agora o filme está aí a estrear em 20 salas por esse Portugal fora.

Não tenho qualquer tipo de conflito com o Luís Campos, com quem troco guiões e opiniões frequentemente e que considero um excelente profissional. Enquanto excelente profissional que também penso ser, acredito que, num mercado audiovisual maduro e saudável, a reescrita deveria acontecer mais vezes e, arrisco, de forma bem mais conflituosa (quando se justificar um departamento de arbitragem na APAD semelhante ao da WGA, o negócio vai estar bem). De resto, o assunto resume-se a isto: eu fui compensado e a minha contribuição criativa creditada; o Luís escreveu o guião de uma longa-metragem com resultados felicíssimos, tão eficaz que foi o empurrão final para a concretização do projecto; e a Lobby, depois de muitos sacrifícios durante 4 anos, produziu a primeira longa-metragem independente de qualidade em Portugal, estreando em 20 salas da Zon/Lusomundo. Acredito que o futuro da produção audiovisual portuguesa passa necessariamente pelo modo como se trabalhou em Um Funeral à Chuva e, aqui do meio da selva de pedra paulista, espero que o público o veja e aprecie.

Tou ficando atoladinho

Um autocarro de São Paulo não passa em muitas ruas. Primeiro, porque se é autocarro em São Paulo é ônibus. Depois, porque as avenidas são tão longas que é mais fácil fazer piscinas do que começar o corta-mato. Subir e descer a Paulista à procura da minha paragem foi um passatempo muito agradável para a minha manhã.

Por falar em Paulista, depois de me ter sentido como um alcoólico no meio da maior adega do mundo, prometi a mim mesmo que não voltava à Livraria Cultura. Mas aquela autobiografia do Tom Zé estava mesmo com cara de quem não se ia ler sozinha.

Um tecnólogo é um técnico, pereba é um atleta mau, não tem choro nem vela é não ter alternativa, um dia pode ser pipi se for problemático e isso é massa véio se for bom, porque se for mau é paia - assim parece que os traficantes de droga definiram. Os polícias andam com rojões, mas quem comem são os outros.

Felizmente, encontrei café numa lanchonete - muito insípido e muito doce, mas já estava prevenido. O senhor era simpático, principalmente porque lhe comprei pão de queijo, uma linguiça, um pastel de carne dentro do que sabia a pão de leite e uma paçoquinha. O jet-lag vai melhorando dia após dia. Hoje o meu cérebro já só estava três horas adiantado.

Brasil via Alemanha

A ver a fila que se fazia para o avião em Frankfurt, percebi: isto é outra gente. Todas as cores, tamanhos e expressões e todos a falarem a mesma língua, a partilharem o mesmo país. Num guia que li há dias, dizia-se que o passaporte brasileiro é dos mais cobiçados no mercado negro, porque qualquer um passa por brasileiro. É algo que eles têm em comum com os habitantes do Vaticano, tirando o facto de estes usarem hábitos e não treparem com adultos. É algo que não têm em comum com os habitantes de Frankfurt, que são invariavelmente mulheres, mal-dispostas e trabalhadoras em estações e aeroportos. Nunca vi gente com tão má vontade de dar indicações, esclarecer, ser simpático. E gostava que acabassem já com o mito de que os alemães são um povo muito organizado. Eles não são organizados, eles organizam é tudo segundo uma lógica que está muito clara na cabeça deles, tão clara que questioná-la é questioná-los a eles. Mas os homens não são tão maus. Enquanto esperava a ligação, comi um gulash, umas salsichas (frankfurter, evidentemente) com salada de batata, uma cerveja e um expresso, tudo servido por um homem tão simpático que não hesitou em trazer-me tudo ao mesmo tempo. Talvez sejam assim os frankfurtianos: prestáveis, mas toscos. Isso, claro deve ser chato para as mulheres. Assim fica tudo explicado.

Em trânsito

Tu gostas da viagem. Sempre gostaste de aeroportos e estações, porque um aeroporto é sempre um local onde alguma coisa começa, seja a viagem ou tudo aquilo que vem a seguir. Quando vais levar alguém, gostas de ficar sempre mais um bocadinho, antes ou depois, só para ver as pessoas passar, notar-lhes as expressões e pensar no que estará a começar para elas. O problema, portanto, não é a viagem, mas o facto de a cabeça não parar e de te estar constantemente a anotar os fins. Esta é a última viagem de Metro. Este é o último jantar no restaurante aonde costumas ir quando estás sozinho. Esta é a última vez que passas a esfregona no chão de casa. A última coisa que entra nas malas, a última coisa a imprimir, a última mensagem. Esvazias a carteira, tiras tudo aquilo que não te vai fazer falta ou já estava a mais e ia continuando lá por inércia, e pensas "Metade das coisas que trago comigo só servem para deitar fora" e tu pensas "O que mais poderia caber nesta divisão?". Trabalho? Afectos? Memórias? Mas depois há o momento em que paras de pensar e as coisas deixam de acabar. É quando a viagem começa. E por isso mesmo esta é a última palavra deste texto.

O criado brasileiro

Naquela fase de me ir orientando, deparo-me com o seguinte anúncio: O quarto é bem iluminado, tem uma cama box casal, uma mesa para tv e um criado mudo. Luz e mesa para tv é claro; cama box casal também se percebe; mas criado mudo?

Saber que é uma mesa de cabeceira é muito menos excitante do que  a perspectiva de, no escuro, ir depositando porcarias na mão de um desgraçado que não consegue dizer "que merda do trabalho".

Papa

Um grupo de católicos espanhóis teve um acidente. O autocarro que os trazia a Fátima e ao Papa Bento XVI ia entrar numa estação de serviço, falharam-lhe os travões e espetou-se contra o rail de protecção. Aparentemente, iam todos a rezar e o meu comentário irónico foi logo se calhar, não estavam a rezar bem, mas o líder do grupo apareceu então a dar a perspectiva também razoável de que foi graças à Senhora de Fátima que não houve consequências de maior, para além de uma rapariga com um hematoma nas costas e outra que teve uma quebra de açúcar. Assim, só essas duas raparigas estariam a rezar mal. A Senhora de Fátima não os livrou de serem espanhóis, mas isso já é outra conversa. Ironias à parte, não se pode ter senão respeito por quem é capaz de fazer centenas de quilómetros, castigando corpo e alma, para se despojar, para suplicar algo com toda a força possível. Os putos dos Tokio Hotel têm muito a aprender.

Monção

Esta terra é três cores: verde, castanho e cinzento. Vêm das árvores, da vinha, da terra e do céu. Se fecho os olhos e me quero lembrar, a imagem é a de encostas cheias de pinheiros e fasco, atravessadas por caminhos de terra batida que, do que devem ter custado a conquistar, bem podiam ser feridas abertas no chão. O som da televisão ao meu lado ou do rádio na cozinha a atravessarem o silêncio enorme, aquele em que aprendi a pensar, a inventar histórias na minha cabeça, a fechar-me. Sabemos que estamos todos sozinhos no meio deste silêncio, somos desconfiados. As ligações com os outros são acidentais, corpos que se encontram ao calhas no meio de percursos aleatórios. Uma vez disseram-me que Torga chamou ao Minho o inferno verde, mas isso não está certo. O Inferno deve estar cheio de ruído. Em Monção não pára de chover.

A vigília

Quem escreve online há já uns anos sabe que esta coisa de se justificar silêncios é desculpa de mau postador. Em blog recente, então, é como não dar de comer a um bebé, a versão Internet da incubadora de Santana Lopes. Mas não tive outra hipótese. Nas últimas três semanas, o meu mundo tem sido uma sucessão de contratos, marcações, cartões, assinaturas, filas, senhas, vistos, passaportes, seguros, malas, cerimónias, e-mails, bilhetes, pagamentos, vacinas, viagens, talões, recibos e facturas. Aparecem-me flutuando, como se eu estivesse num sonho, sem conseguir prever a ordem com que preparar as placagens. E, ainda assim, vou ouvindo os anos dizer-me na cabeça não te canses com a preparação, porque vais precisar de força depois ou aguenta-te, fofo, tens de ganhar o céu de alguma forma. Nos momentos mais baixos, em que o stress e o cansaço me fazem doer os olhos se os viro muito para os lados, olho para o que aqui está e pergunto vale a pena só para poder responder logo que não tenho outra opção, porque, se queres entrar no jogo, tens de saber que podes chegar ou não ao outro lado e, se tiveres sorte, chegas esmurrado e a sangrar dos pés à cabeça, mas com a quantidade de língua suficiente para poderes dizer consegui. Não tinha de ser assim, talvez, mas se não for a doer não sentias nada. Não vou estar aqui com merdas, podia dizer que o melhor que faço é escrever, mas o que quero dizer não é bem isso, é que, do que fiz, o melhor foi a escrever. A Estrada Curva, A Peste, o João Ícaro, A Chorona, As Portas, a Agenda, o Cidadão, a Passagem, o 13 de Março. Algumas tu conheces, outras não, nenhuma é perfeita, mas em todas houve sempre pelo menos uma coincidência entre o meu gosto e o de outra pessoa qualquer. E esse apreço é uma coisa tão rara, um modo tão profundo de conseguires comunicar com outrem que nem conheces e nem vais conhecer, que tu sabes que não queres procurar mais do que isso: mais oportunidades de perceber que o caminho que os outros fazem também passou pelo que fizeste dentro de ti. É por isso que vou. Se parar, não valho a pena para ninguém. Pelo menos, não a valho para mim.