Enquanto lucubro, penso:

Há tempos, uma amiga disse-me que esperava que eu não me tornasse cínico. Está muito difícil controlá-lo. Tenho ao mesmo tempo uma confiança muito grande nas pessoas e uma certeza inabalável que elas são incapazes de não errar. Ao longo do tempo, fui trabalhando esse desejo, como vi o David Lynch dizer uma vez que sabe que uma escultura está pronta porque sente-o nas pontas dos dedos. Eu fui trabalhando esse desejo e expetativa até uma condição em que esse erro me aparece carinhoso, do tipo "que carinhosa, esta pessoa, não conseguiu manter a pila dentro das calças e fodeu a cena boa que tinha" ou "que querida, esta pessoa, encheu-se de dívidas e agora vai redescobrir que a natureza humana não é muito melhor do que a da lama" ou "que carinhosa, esta pessoa, fez um casamento e um bebé porque achava que queria ser igual à amiga e agora já olha para o marido e para o filho com ar de quem quer estar longe, longe, longe". Ou seja, não tenho fé nenhuma em ninguém. Ao mesmo tempo, adoro toda a gente. É divertido.

It's funny how things go

Tenho três coisas para fazer, mas não vou citar Pessoa, não vou citar Pessoa, não vou citar Pessoa, não vou citar Pessoa, não v...
Ai que prazer não cumprir um dever.

Foda-se.

Era desnecessário, isto. Até porque não tenho prazer nenhum em não cumprir os deveres. Não os cumprir agora significa ter que os cumprir depois e com menos tempo. Estou velho, está visto.

A razão para adiar é não conseguir tirar da cabeça que não me lembro de nenhum equivalente em inglês para as palavras "escarrar" e "escarro". "Spit" é insuficiente, "sputum" é insatisfatório. Mas "escarro" lembra muito "escara", ou "scar", o que faz sentido, de algum modo, porque "Scar" é o álbum que contém uma canção que tenho ouvido muito.

httpv://www.youtube.com/watch?v=vii5ydVSNec

Isso faz ainda mais sentido, até porque este texto começou com música. Vocês não sabem, não podem saber da minha vida, mas tudo tem a ver com ter visto um filme quando era muito novo. Aos 1m55 deste vídeo, fica explicado.

httpv://www.youtube.com/watch?v=ZS_GagmpfvU

Fico feliz por ter esclarecido tudo.

Poema de ler baixo

entre o que vês e dizes
não existe nada
és simples e sem malícia
não sabes nada
de computadores
não temes pedir
ajuda a estranhos

entre o que vês e dizes
não há teias ou
imundície há só
o que és e aquela
transparência
do que é real
e luz

entre o que vês e dizes
sorris porque
achaste enfim quem
te matasse a fome

fizeste um sanduíche
com minhas palavras

e comeste-me
a vergonha.

Quero subsídios estatais para programas de reality!

Cheguei hoje à conclusão que os programas de reality TV promovem a imagem de um país no estrangeiro e é essencial que eles sejam apoiados pelos Ministérios de Turismo. Sinceramente, que país preferiam visitar?

Portugal...
httpv://www.youtube.com/watch?v=10jnI1DtaOY

...o Brasil...
httpv://www.youtube.com/watch?v=CP64KdHAqBs

...ou a Suécia?
httpv://www.youtube.com/watch?v=ZPKacexvc6s

"Brasileiro não é de confiança": negando ideias, 2

Série de posts sobre coisas que se poderão pensar sobre o Brasil e os Brasileiros e que não são assim bem verdade.

Em Portugal, é normal pensar-se que a palavra dos brasileiros não é confiável, que não se pode contar com aquilo que eles prometem, que não se deve esperar muito dos seus acordos. Como em muitos outros mal entendidos entre as nossas duas nações, isto surge de um desencontro que é mais semântico do que psicológico. É o mesmo tipo de engano que leva os brasileiros a pensar que português precisa de ter tudo muito bem explicadinho porque é menos provido de capacidade cerebral. Não é por isso (a menos que seja um português pertencente à classe política), mas sim porque não falamos a mesma língua. A palavra "camisola" em Portugal é como falar "blusa". Tipo, não é uma coisa para as senhoras usarem enquanto dormem, significado de "camisola" no BR, mas à qual a gente chamaria "camisa de dormir". Um português que chega aqui e percebe aquilo que tem para jogar tem duas alternativas: ou é chatinho com explicações ou morre soterrado numa avalanche de confusão.

Quando eu cheguei ao Brasil, o amigo com quem morei uma semana antes de ter arranjado casa (ou seja, antes de ele me ter expulsado), disse-me que, se acontecer alguma coisa, se vir que algo está a demorar muito, que não me estão a dar o que preciso, descontrai. Não te enerves, diz ele, e conversa de boa. Conversar é, realmente, o melhor a fazer. O brasileiro é emocional, comunicativo e dá importância às impressões que vão sendo transmitidas. A partir do momento em que entendemos isso, não há razão para que algo dê errado. É só contar com uma diferente forma de agir. Brasileiro não falta aos compromissos, mas é descontraído com eles, e comprometer-se implica uma diferente forma de agir e de falar daquelas que há em PT. Dizer que "temos de jantar", que "marcamos para sair", que "vamos combinar" não significa que se jante, que se saia ou que se combine. Mas ele está sendo sincero. Se alguém fala isso, é porque quer mesmo que isso aconteça. Porém, a vida no Brasil é um eterno devir e dá muitas voltas. Brasileiro sente que é preciso deixar que a vida aconteça e as vontades se encontrem a certo momento. Por isso, calma.

"O Brasil é um caos para viajar": negando ideias, 1

Série de posts sobre coisas que se poderão pensar sobre o Brasil e os Brasileiros e que não são assim bem verdade.

O Brasil é um país que assenta na necessidade de se movimentar e quem oferece esse tipo de serviços sabe-o muito bem. Os transportes no Brasil são ótimos. Nas grandes cidades, então, nem se fala. O Metro de São Paulo é dos mais eficientes que já vi, com um tempo de espera muito reduzido. Tem muita gente, é verdade, e a hora de ponta é à japonesa, com toda a gente espremida dentro das carruagens, mas funciona relativamente bem mesmo nessas horas. Noutras cidades onde estive, como o Rio, Recife ou Belém, os transportes também são bons, a informação sobre eles é de fácil acesso e fiável e os destinos são inúmeros, para além de lugares de mais difícil acesso terem gerado o um setor que não existe na Europa, o moto-táxi.

Isso é reflexo de um país onde durante muito tempo foi impossível para uma grande parte da população - e não só os mais pobres - comprar um carro. A industrialização dos anos 50 foi feita com um grande companheirismo entre classe política e fabricantes de automóveis e a primeira deixou cair as ferrovias. Com muita gente sem carro a morar nas periferias e a precisar de ir para as cidades vizinhas ou para os centros para poder trabalhar, as empresas de ônibus farejaram a oportunidade.

Sem discutir se o que veio primeiro foi o ovo ou o cu da galinha, há também uma propensão, digamos, psico-social. O brasileiro liga e desliga das relações com facilidade. Pode ter uma conversa super animada e esvaziar a alma com alguém que acabou de conhecer enquanto esperava o ônibus, mas, se o ônibus chega e não dá para conversar mais, se a conversa fraqueja, se algo não bate certo, desliga e, sem problemas, parte para outra. Não há tanto apego às pessoas como há àquilo que o próprio sente. O outro importa na medida do que eu sinto por ele - o "eu" está sempre lá. Movimento, movimento, eterno devir. Também era relativamente normal um homem ter a família oficial num estado e outra noutro. Os soldados portugueses em África nos anos 70 escolhiam se ficavam com a família de guerra ou se voltavam à portuguesa. Aqui não: o homem viajava de estado para estado ou de cidade para cidade para poder estar à vez com toda a gente.

O maior viajante que já conheci na vida é o Claudio Vitor Vaz, que conheci ainda em Coimbra e que já viajou por meio mundo. Ele não precisa de razões: ele vai. E os brasileiros são assim: eles vão correr o mundo, conhecer outros lugares, e voltam. Ou não. Mas a vida é assim mesmo.

Rafinha Bastos faz o que um comediante faz

Rafinha Bastos respondeu à polêmica de que falei no meu texto anterior. E respondeu como só um comediante pode responder. Lamentando-se? Não. Inventando desculpas? Nem por sombras. Zangado? Talvez, mas não importa. Rafinha fez o que é suposto que um comediante faça: comédia. Afinal, é simples assim.
httpv://www.youtube.com/watch?v=zCQHDXe3ENk

Gisele, Rafinha, o humor e o medo

O meu trabalho assenta na liberdade de expressão. Eu ganho a vida a escrever. Se eu não puder escrever o que quero, não posso ganhar a vida. É assim simples. Uma expressão limitada limita-me no meu direito a trabalhar. Por isso, é sempre com alguma aflição e violência que reajo a opiniões que me dizem que não posso escrever ou dizer algo, porque não é "politicamente correto" ou algo parecido. E isso também me acontece sempre que vejo notícias semelhantes sobre pessoas que ganham a vida da mesma forma.

Na semana passada, a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SEPM) pediu a suspensão de uma campanha com Gisele Bündchen, considerando que ela continha conteúdo discriminatório. Vejamos um dos anúncios dessa campanha.
httpv://www.youtube.com/watch?v=nk5H_BdxMz8
Vejamos agora um anúncio anterior da mesma marca, também com Gisele Bündchen.
httpv://www.youtube.com/watch?v=W_i6Kf-8C2c
O copy do anúncio antigo é "ela é brasileira. Sexy. Leve. Natural. Ela é Hope". Parece-me que dizer que a mulher brasileira é necessariamente "sexy, leve, natural" é mais tipificador do que dizer "você é brasileira, use seu charme". Também me parece que o corpo de Bündchen no anúncio mais antigo é mais objeto do que no mais recente, que ao menos lhe dá uma personalidade e voz. Porém, foi esse anúncio o que ofendeu a SEPM. A Secretaria divulgou mesmo um artigo que diz que “as agências publicitárias precisam crescer e aprender com os exemplos de maturidade e de cidadania que as mulheres brasileiras vêm oferecendo ao país. E tudo isso sem precisar tirar a roupa".

Podemos sempre discutir como é que uma marca de lingerie feminina faz um anúncio em que uma mulher não tire a roupa. Pode ser genial, quem sabe. Mas não consigo deixar de pensar no que poderá ter levado a SEPM - e grande parte da opinião pública - a ter reações tão diferentes em relação a dois anúncios com um conteúdo tão parecido. Só consigo chegar a uma conclusão: o tom. O anúncio antigo é sensual, fashion, choque q.b. O recente é cômico. Então, na verdade, não é o que o anúncio afirma sobre a Mulher que causou essa reação, mas o tom com que essa afirmação foi feita. O humor é um meio familiar ao público, que comunica instantaneamente. Pode ser corrosivo, provocador e tudo o mais, mas, acima de tudo, é eficaz, porque vai atrás do espetador. No anúncio antigo, olhamos para Gisele, mas, no mais recente, é ela que nos olha e nos aborda, de uma forma anormal e desconcertante em comerciais de lingerie. Assim, na base, a reação não foi contra a mensagem do anúncio; foi contra o seu tom humorístico, única diferença relativamente ao anúncio anterior com a mesmo conteúdo. E isso leva-nos a Rafinha Bastos.
A primeira parte do caso Rafinha Bastos começou há uns meses com a abertura de um inquérito que lhe foi movido por suspeita de apologia ao crime por ter dito num dos seus shows de stand-up que "toda mulher que eu vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia pra caralho. Tá reclamando do quê? Deveria dar graças a Deus" e “o homem que cometeu o ato merecia um abraço, e não cadeia". Isto foi considerado uma possível incitação ao estupro.

Não assisti a esse número de stand-up, mas o Rafinha é um cultor do humor negro. A sua comédia é toda agressiva, confrontacional e controversa. Ora, ninguém é obrigado a gostar de Rafinha Bastos e qualquer um o pode criticar. Pela natureza do seu espetáculo, ele sujeita-se a isso. Mas a pergunta é: goste-se ou não dele, faz sentido o Estado intrometer-se desta forma naquilo que claramente faz parte de um número de comédia, especialmente um que inclui frases tão inconcebíveis como "desde que sou pai, concordo com o aborto"? Por outras palavras, Rafinha Bastos é um comediante que lida CLARAMENTE no terreno do absurdo da violência e da ironia. Quem o vê sabe CLARAMENTE que está a ver um show de comédia, não uma missa ou um discurso político (apesar de haver muitos discursos e missas que parecem piada). Um mecanismo de suspensão dramática funciona nesse caso, da mesma forma que um espetador do filme A Queda sabe que as palavras que Hitler fala nele não são do ator ou do roteirista, mas da personagem Hitler. Um humorista apresenta-se sozinho com o seu nome e, portanto, arrisca-se mais. Mas É um discurso artístico, É uma expressão que deve ser protegida pelo direito ao abrigo da qual é dita. E se um Estado utiliza um instrumento legal, a abertura de um inquérito judicial, como meio de intimidação a um espetáculo que CLARAMENTE não é uma incitação ao estupro, mas um exagero do que se pode falar sobre ele, o que garante que não a usará para intimidar peças de teatro que considera controversas, filmes que considera desconfortáveis, livros que considera imorais? Quem define o limite e garante que não teremos uma censura encapotada que, sem instrumentos diretos para maneirar alguém, age pela amolação, pelo desconforto, pela pressão?

A revista Veja chamou a Rafinha Bastos "o novo rei da baixaria", mas isso é errado. Baixaria não ofende. Baixaria reduz-se ao que é, todo mundo a reconhece como tal e, por isso, não liga. No Brasil, funk é baixaria. Em Portugal, os Malucos do Riso eram baixaria. Mas Rafinha Bastos é mais do que baixaria: é incômodo. Faz humor perturbante e, goste-se ou não do que ele faz, a comédia deve ser uma forma de expressão livre num estado democrático.

Compreendam-me: não se trata de negar o direito do Estado de atuar contra uma apologia ao crime ou de toda e qualquer expressão ser ilimitada. Eu aceito que o Estado atue contra ações ou palavras que perturbam a ordem democrática - mas não contra ações ou palavras que são meramente malcriadas. O exagero é parte necessária da comédia, a suspensão dramática também. Um comediante tem direito a ser malcriado e ofensivo e a submeter-se ao arbítrio do público, que pode ou não gostar dele. Mas agir legalmente contra más educações é coisa de ditadura religiosa.

É preciso dizer-se que há uma tendência para a educação no Brasil. Há uma espécie de consenso silencioso que diz até onde se pode ir nos comportamentos, na exposição do corpo, no sexo, e um temor, silencioso também, de ultrapassar esse limite. Na praia, não há qualquer problema em usar um bikini de fio dental que expõe completamente a bunda, mas é muito incorreto uma mulher fazer topless. O jogo de casino é ilegal, mas o jogo do bicho (uma espécie de loteria clandestina com figuras de animais) é geral e feito às abertas, apesar de continuar ilegal, ao que se diz porque essa ilegalidade beneficia muita gente, incluindo membros da classe política. Cada país tem as suas hipocrisias, nenhum é melhor do que o outro. No entanto, estejamos onde estivermos, não podemos deixar de chamar as hipocrisias pelo nome.

A segunda parte do caso Rafinha Bastos aconteceu há uns dias, quando ele foi afastado do programa que co-apresentava, o CQC, por ter respondido "comeria ela - e o bebê!" à notícia de que a cantora Wanessa Camargo está grávida..
httpv://www.youtube.com/watch?v=_iRScEQU9p0
Agora vejamos o refrão do último êxito da cantora, que trilha uma carreira internacional:
"You gotta zoom zoom zoom, get in my room room room, you gotta boom boom boom, rock me like vrum vrum vrum".
Sejamos sinceros: a carreira de Wanessa assenta largamente na sua representação sexual. Quando Rafinha Bastos exclama que "comeria ela - e o bebê!", ele está a evidenciar esse fato claro. Por muito que se queira, ainda não se pode ser sexual sem sexo. Uma atriz não pode fazer capas de revista evidenciando o decote e esperar que não se fale sobre isso. Um ator de filmes pornos não pode esperar que o considerem pelo seu conhecimento de Shakespeare. Se Rafinha Bastos se coloca a jeito para que não gostem dele e do seu humor, Wanessa Camargo coloca-se a jeito para ouvir piadas sobre a persona sexual que representa na sua imagem pública. Rafinha Bastos foi malcriado, mas não foi gratuito. Foi duro e agressivo como sempre é, como já se espera que seja, e a piada funcionou - a plateia riu, tal como riu Marco Luque, o colega de apresentação, cuja retratação mostra fraqueza de espírito e um desejo de consenso que é contrário ao que deve ser o instinto disruptivo de um humorista.

Uma amiga fez-me um reparo: Rafinha Bastos não estava a falar num teatro cheio do seu público, que pagou R$100 para o ver, mas na televisão aberta. Ela tem razão. Podemos acusá-lo de falta de bom senso. Mas isto leva-nos a outra pergunta: porque o discurso de uma TV aberta tem que ser normalizador e não expor esses choques sociais? Porque a comunicação que toda a gente pode ver tem que fingir que o mundo é um lugar sem conflitos, sem opiniões, onde nada tem implicações em coisa nenhuma? De certa forma, a televisão esvazia o sentido do que diz para poder sobreviver enquanto entidade comunicativa no mundo. Parece que o ideal televisivo implica que as pessoas se respeitem umas às outras fazendo com que o que dizem seja inconsequente, como naqueles concursos de 3 horas na late night tv em que o espetador telefona para ganhar dinheiro: um discurso que não afirma, se oferece ao consenso, evita todo e qualquer tipo de conflito e em que perder e ganhar não importa, porque tudo é nivelado pela planura da transmissão.

Repito: o Brasil não é diferente de qualquer outro país. Portugal não está isento disto (o caso Rui Sinel de Cordes ainda é recente), nenhuma sociedade moderna o está. Mas as democracias constroem-se com os conflitos acontecendo no aberto e discutidos no espaço público. Estas reações, ao contrário, são reflexo de uma sociedade regida pelo medo. Eu não gosto de medo. Metade do meu esforço de sobrevivência consiste em enfrentá-lo, e não consigo aceitar quem se rende a ele. Deita-me abaixo. Só gostaria que mais pessoas pensassem assim.

Coisas do Brasil: a lei do psiu

No cardápio do Papo, Pinga e Petisco, na Praça Roosevelt, vem uma "curiosidade" entre as cervejas e as caipirinhas:
Aqui, neste local, foi realizado o primeiro show de Elis Regina em São Paulo, no ano de 1964.

Era meia noite e o White Album dos Beatles tocava a altos berros. Na verdade, parecia uma versão condensada do White Album, porque as canções soavam mais rápidas do que o costume. E, talvez, não seja o White Album, porque, no preciso momento em que escrevo isto, está a tocar a Let It Be, que é do álbum homónimo. Enfim. O fato ainda mais curioso do que a "curiosidade" é que, logo por baixo da info sobre a mãe da Maria Rita, vem o aviso a bold:
Nosso Bar respeita a "Lei do Psiu", pedimos que não excedam no barulho.

O que me leva a duas perguntas. A primeira: será que a Elis poderia ter tocado aqui em 1964 se já houvesse lei do "psiu"? A segunda: quem batizou ela de lei do "psiu"? É que "psiu" pode ser "silêncio", mas também pode ser "psiu, ó para mim aqui te chamando...". Porque não lei do "chut"? Ou lei do "calou!"? Ou lei do "eu quero dormir, poha!"? Ou lei da "coña marinera"? Definitivamente, houve falta de imaginação.

Sleep Now In The Fire

Os tempos em que pensava que excessos policiais estão sempre errados já passaram e, felizmente, nunca pensei que eles estivessem sempre certos. Mas olhem o que a polícia fez durante a manifestação Occupy Wall Street.
httpv://www.youtube.com/watch?v=Zgr3DiqWYCI
Lawrence O'Donnell é um homem sem medo, e o fato de se assumir "socialista" nos EUA comprova-o. O principal aqui é: a polícia controlou uma manifestação pacífica com particulares e desnecessários requintes de crueldade, abusando da sua força com gritante mal senso e contra os próprios cidadãos que a legitimam. Ou seja, em vez de defender a paz e ordem democráticas contra os seus inimigos, ela perturbou o povo no exercício de um direito democrático elementar. Pode-se dizer que O'Donnell tem um estilo que puxa para o sensacional, mas as suas palavras são verdades cruas e duras. Parece que, em Wall Street, não fazer absolutamente nada pode justificar uma prisão ou uma descarga direta de gás pimenta no rosto. Só para que, como dizem os RATM no vídeo de Sleep Now In The Fire - gravado em Wall Street e que levou à suspensão da atividade da Bolsa por uns minutos -, nenhum dinheiro seja ferido.

Mr. Guache vende!


Anderson Almeida, aka Mr. Guache, foi das primeiras pessoas que conheci no Brasil. Acho-o muito má pessoa e fraco no que faz [super modo de ironia ligado]. Ele pôs à venda no site Artflakes este FABULOSO portfolio inspirado em cartas de tarot, do qual a imagem em cima é só um exemplo. Vamos todos comprar como se não houvesse amanhã, minha gente?

O poeta é um chocolate


É sabido que o Brasil tem um caso de amor com um funcionário administrativo bigodudo, cegueta e alcoólico chamado Fernando Pessoa. Independentemente da qualidade do tiozinho, tanto amor parecia suspeito: alguma coisa mais profunda tinha que explicar identificação tão próxima. Relendo a Tabacaria, percebi tudo.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Se ele tivesse escrito sobre catupiry, então, tinha a vida feita.

Quero uma canção brasileira de 1983 elevada a novo hino de Portugal!

httpv://www.youtube.com/watch?v=9aHoWTs6xE0
A gente não sabemos escolher presidente.
A gente não sabemos tomar conta da gente.
A gente não sabemos nem escovar os dente.
Tem gringo pensando que nóis é indigente...
A gente faz carro e não sabe guiar.
A gente faz trilho e não tem trem prá botar.
A gente faz filho e não consegue criar.
A gente pede grana e não consegue pagar...
A gente faz música e não consegue cantar.
A gente escreve livro e não consegue publicar.
A gente escreve peça e não consegue encenar.
A gente joga bola e não consegue ganhar...

Uma das coisas de que me orgulho mais de ter feito no Brasil

Uma das perguntas que me fazem mais aqui começa por "lá fala...?" ou "sabe o que é...?". Normalmente, não me importo e até gosto. Conheci muitas expressões tupiniquins assim e, se às vezes me perguntam uma coisa que obviamente existe em Portugal, é, presumo, porque não será tão óbvio para estrangeiros. Foi uma das formas por que fui conhecendo esta língua que, como diz o meu amigo Raphael, é a mesma que se fala em PT, mas não é a mesma que se fala em PT. E serviu-me também para concluir da total inutilidade de discutir o acordo ortográfico. Se alguém acha que é isso que vai fazer com que todos se entendam, chama um príncipe que te acorde, Branca de Neve.

Mas às vezes irrito-me porque, já se sabe, gente burra há em todo o lado. E o mundo sofre. Perdoa-me, mundo. Não consigo deixar de ser um Átila social de vez em quando. Mas nunca contra inocentes, que isso fique claro.

Então, deu-se o caso de uma noite ir ao aniversário do amigo de um amigo na Vila Madalena e estarem lá três moças, não mais de 20 anos, muito contentes por estarem lá. Talvez porque a maconha que fumavam estava enrolada em sedas transparentes, o que só por si já é bastante irritante. E a cara de felicidade nas miúdas quando perceberam que havia um mexicano, um francês e um português com quem podiam conversar! Gente, que da hora, né?

Bom, deu-se o caso de a conversa revelar que, se elas ainda tinham um neurônio na cabeça no início, fora competentemente assassinado pelo THC. O meu diabinho começou a espetar a espada quando elas sacaram um celular e se puseram a gravar a conversa como se estivéssemos a ser entrevistados para a rádio. "É que a gente faz sempre isso quando sai, sabe". Sei, filha, e também sei que devias ter levado mais açoites quando eras nova. Mas quando elas pediram "digam uma gíria do país de vocês que não tenha no Brasil" e, virando para mim, perguntaram "sabe o que é gíria?", o sangue ferveu-me a temperaturas nível Fukushima. O francês lá disse alguma gracinha, o mexicano também. E então o celular feito microfone de rádio virou-se para mim.

"Cunh..a...ni". Os olhos delas arregalaram-se de espanto.
"Chunhani? O que é cunhani?"
"Cunhani... é... é quando estás a cozinhar, derramas algo e dizes 'já fiz cunhani!'".
E elas viraram-se umas para as outras dizendo "nossa, lembra aquela vez que fiz cunhani no jantar do meu irmão? Cunhani! Que legal, gente!".

Só então me apercebi de todo o potencial do momento. E não consegui resistir. Posso ter comprado um lugar permanente e com vista panorâmica para o Inferno, mas tudo isso vale a beleza pungente do que se seguiu.

"Tem ainda uma palavra parecida com cunhani que também se fala em Portugal..."
"Qual?!"
"Cona. Sabe o que é?"
"Cona?! Não! O que é?"
"Então, cona é muito usado entre mulheres. Se você acha que tua amiga ou tua mãe está muito bonita, você fala 'você está muito cona'".
E eu juro que lágrimas correram pelo meu rosto quando nesse momento elas se viraram umas para as outras e disseram "nossa, amiga, como você está cona hoje!". "Ah, não, querida, você está muito mais cona do que eu". "Não, não, amor, você não está cona, você é cona!"

Pude então desligar-me da conversa. A minha função estava completa. Eu sabia que o acaso cósmico me tinha levado até aquele trio por alguma razão. A razão era aquela. E eu desejo ardentemente que uma pessoa que saiba mesmo o que é "cona" um dia ouça aquela gravação e se mije a rir tanto como eu me mijei. Se isso acontecer e eu souber, vou dar mil e uma graças a Deus. Ou ao Diabo.

A vida imita Scolari

Digamos que você, minha senhora, tem um carro e o vende. O carro vale, você sabe, 1000.

Ora, o seu irmão tinha deixado quadros na mala dele. Esses quadros, só eles, valem 2000. Você sabe tudo isso.

Mas você tem um problema de dinheiro. Assim, vende o carro ao seu vizinho. Vende-o por 500. Não sabe explicar porquê, uma vez que o carro valia 1000, mas vende. E não diz nada ao seu marido sobre os quadros.

Porém, o seu marido tinha-a ajudado a comprar o carro e tem a receber 50. Ainda assim, ele só pede 40. E ele também não sabe explicar porquê.

No final, o casal perde 2510 e nenhum sabe explicar porquê.

E quando o vizinho se atrasa a pagar os 500, eles dizem às pessoas a quem devem dinheiro que não conseguem prever muito bem quando vão receber, como quem não se importa muito.

Mais ou menos isto aconteceu entre o Governo Português, o BPN o BIC e Juan Miró. O BPN é o carro, o BIC é o vizinho, Miró é o irmão, o Estado é o casal.

E, como dizia Scolari, os burros somos nós.

Algumas opiniões sobre música house, reunidas em conversa com meu amigo Pablito

House faz-me querer levar um murro nos queixos só para sentir dor e saber que a dor é real.

House faz-me querer partir um copo e enfiar um caco no olho. E depois enfiá-lo no olho do Pablito. O sangue quente caindo pela cara far-nos-á sentir em comunhão com o caos organizado e pulsante da vida.

House faz-me querer dar um pontapé na cara de uma criança e, enquanto a vejo cair, chorar.

House faz-me querer estrangular o amor e enterrar as sobras num pântano de trufa, para que possa ser encontrado milhares de anos mais tarde em perfeito estado de conservação.

House faz-me querer comprar um kilt, para poder rasgá-lo e cavalgar um cavalo à chuva.

House dá-me vontade de comprar todas as revistas da Turma da Mônica numa banca e dá-las a crianças pobres com a condição de lhes poder tatuar "666" na testa.

House dá-me vontade de ver House na televisão. E depois dar um tiro de revólver nela e ficar triste por a série se chamar House e eu estar sem televisão.

House faz-me querer ir numa festa de formatura de uma escola espírita e espetar uma faca na coxa enquanto todo mundo dança à minha volta.

House faz-me querer pegar cachorros abandonados na rua e matar-lhes a sede com elixir bocal.

House faz-me querer organizar uma missa do sétimo dia em que no final toda a gente tenta partir uma piñata.

House faz-me querer mudar meu nome de Jorge para Pablito e dar o cu, só para poder dizer que o Pablito dá o cu.

House faz-me querer que o botão f12 sirva para detonar uma bomba atômica no atol de Mururoa.

House faz-me querer pensar na crueldade do mundo enquanto nado num mar de Pantene, caviar e cocó.

Coisas do Brasil: miojo


Há na arte culinária todo um capítulo à parte intitulado "cozinha para universitários". Fica no mesmo volume da "cozinha para homens solteiros", da "cozinha para pessoas que não se aprecia muito" e da "cozinha para pessoas que se aprecia, mas que por qualquer razão queremos pôr à prova para saber se gostam mesmo de nós".

Mas foquemos os estudantes por um instante. Quando eu estava na universidade, o prato por excelência era a massa com atum. Água a ferver, massa lá para dentro, atum desfeito depois. Ainda que não houvesse sal em casa, não importava, porque o atum tem um sabor Microsoft - que monopoliza tudo o resto. A massa enchia, o atum dava sabor. Matava a fome, era rápido e depois podia-se estudar, ou algo que universitários façam mesmo. Ora, eu tenho morado com muitos universitários aqui no Brasil e posso sinceramente dizer que, nas casas onde morei, não deve ter havido um único dia em que não se tenha cozido um miojo.

O miojo não existe só no Brasil. Eu já o tinha comido em Portugal, onde lhe chamamos massa instantânea. Cup Noodles é uma variante semelhante. Ou seja, miojo é uma massa rápida vendida em porções individuais e acompanhada de um pacotinho de caldo em pó que se deita na massa depois que ela está pronta. O caldo, confesso, é aquilo que me custa mais engolir (literalmente). A massa, inventada pelo senhor Momofuku - que só consigo imaginar que seja o equivalente japonês para "motherfucker" - começou a ser vendida no Brasil com essa marca. É barato. Os supermercados Ronda vendem-no a 60 centavos o pacote, por exemplo. Por isso, e por não exigir grandes cuidados de preparação, o miojo conquistou o país. A marca acabou, o nome ficou e ninguém se parece importar que seja quase igual à palavra "mijo". Que, aliás, é exatamente ao que a massa pode saber se se puser lá o pacote inteiro de caldo em pó.

Apesar de ser uma das iguarias mais simples do mundo, o miojo permite-se toda uma série de variações. Há quem tire a água e deite o pó na massa já no prato. Há quem ponha água a mais do que a receita impõe, para ficar com mais molho. Há quem ponha logo o pacote de caldo todo e quem não aguente nem um pouquinho dele. Há quem junte acompanhamentos na panela e quem os prefira fazer só no prato. Há quem coma miojo cru. E, claro, há quem junte atum.

O miojo, ao fim e ao cabo, é como a tela de um pintor. Importante, mas não é ela que define o que o quadro vai ser. O miojo é democrático: aceita tudo e a tudo se presta. Miojo é amor.

Mas massa instantânea não deixa de ser massa - e, bem vistas as coisas, um macarrão normal não demora assim tanto mais a cozer. A caraterística principal do miojo, bem como de toda a cozinha universitária, é ser prático. Então, aliemos isso aos nossos paladares gourmets. A minha versão pessoal do miojo nasceu do entendimento que não custa fazer um molho à parte com azeite, alho e tomate, escorrer a água em excesso da massa, deitar o molho por cima, ralar parmesão e salpicar com orégãos. Fica ótimo e só demora uns 15 minutos a preparar. Quem sabe, com cuidado até se pode usar o caldo em pó.

As pessoas que te falam onde duas estradas se juntam

Eles dizem que tu deves estar feliz, mas nunca te dizem o que é a felicidade. "Isso varia de pessoa para pessoa", dizem. Mas isso é que seria importante saber, não achas? Podes estar só contente. Podes viver a tua vida contente e isso ser uma máscara, ou petróleo lançado sobre o mar, turvando a superfície, impedindo-te de analisar a profundeza do lugar onde entras, não deixando que vás mais longe. Não é possível teres certezas. Eles não te dizem.

Eles também não te dizem o futuro, mas dizem-te que tens que te preparar para ele. Aquele acaso indefinido e pouco específico, que te ataca como uma avalanche lenta e de repente te faz dizer "estou no futuro". Mas tu sabes que o futuro é presente. Se o pensas, se o planeias, se o inventas. Porque podes inventar o futuro. Tu sabes. Estás a fazê-lo agora mesmo. Mas não vai dar certo. Tu sabes, não sabes? Não vai dar certo e, se der, muitas coisas podem acontecer. Pode não resultar mesmo como tu queres que resulte. Ou podes nem gostar dele. O futuro pode ser um resort de férias aonde chegas depois de poupares um ano inteiro e descobres que é chato. E eles não te avisam.

Eles dizem-te que a culpa nunca é deles e, se algo acontecer, eles não são responsáveis. Mas, se as coisas correrem bem, o mérito é todo deles. Eles não são de confiança. Vão-te dizer o que for preciso e ficar de longe a ver como te comportas com o peso que te puseram nas costas, como um miúdo que ata uma lata ao rabo de um cão e fica a ver o que ele faz para se livrar dela. Tu nunca te vais livrar do peso. Ele vai ficar contigo e lembrar-te de quem realmente és e, o mais triste, que um dia lhes deste ouvidos. E tu arrepender-te-ás desse dia para sempre.

JVN hoje no Zé Presidente


Para quem ainda não sabe: hoje à noite vou ao Zé Presidente dizer poemas meus no V.A.I.A / C.A.I-MAL. Para além de palavras, vai ter performance, cinema e música, muita música. Vemo-nos por lá?

Don Draper e eu

Mad Men ganhou há dias o Emmy de melhor série dramática pelo quarto ano consecutivo. O feito seria de respeito por si mesmo, mas é ainda mais impressionante se pensarmos que ela tem quatro temporadas. Ou seja, desde que começou, Mad Men nunca deixou de ser considerado o melhor seriado americano. E, mais impressionante ainda, é-o com merecimento.

Eu adoro Mad Men. A reconstituição histórica é avassaladora, não só pelos figurinos ou a direção de arte, mas porque reproduz com fidelidade um modo de pensar, principalmente o que foram as relações entre homens e mulheres num tempo em que não se pensava que eles poderiam ter papéis e comportamentos semelhantes. Os argumentistas são inteligentes e fazem coisas espantosas, como uma cena da terceira temporada que nunca mais me saiu da cabeça em que Don Draper, sentado ao lado da mulher vendo os filhos à volta de um Maypole, se apaixona pela professora deles quando a vê, livre, linda, dançando de pés descalços na relva. E como é que eles mostram que ele se apaixona sem uma única linha de diálogo? Fazendo-o pousar a bebida e tocar a relva. É uma escrita poética, subtil, inteligente. Mas há também uma razão pessoal que me faz não deixar de ver a série. Tem a ver com a personagem principal, o próprio Don Draper.

Sem entrar no terreno do spoiler, digamos só que Draper é um diretor criativo com segredos que tem de estar sempre - e mais do que qualquer outro - a vender a imagem do que ele é. Numa série sobre publicitários, nenhuma outra pessoa poderia ser a personagem principal: ele experimenta no conflito da sua vida o conflito essencial da atividade publicitária, por isso é que a domina tão bem. Brilhantemente escrito, brilhantemente interpretado por Jon Hamm, Draper tem ainda uma caraterística de que eu não me consigo desligar: ele é muito parecido com o meu avô que já morreu.

O meu avô chamava-se Eleutério. Nome antigo. Morreu há uns 11 anos. Como Don Draper, ele era um homem alto e bonito. Como Don Draper, ele fumava. Como Don Draper, ele era sério, mas emocional. Como Don Draper, ele tinha o cabelo curto com risco ao lado. Na casa dos meus avós, havia uma foto deles jovens pendurada na parede. Não era um retrato em que eles estivessem conscientes da câmara, mas um momento de descontração, longe da fronteira que ele guardava enquanto Guarda Fiscal e das atribulações do negócio de peixe que a minha avó montou sozinha. Estavam de pé, olhando um para o outro e sorrindo. O meu avô, gravata, cigarro na mão. Don-Draper-like-íssimo.

O meu avô era uma pessoa simples, de hábitos regulares, que não abusava de comida ou bebida e que foi deitado abaixo por causa de uma estadia longa demais no hospital por um problema que talvez não fosse tão grave. Foi o início de uma fase de uns dois anos em que o corpo dele foi de choque em choque até chegar no ponto em que já não se conseguia levantar da cama. Esteve muito tempo acamado, a mente atrofiou-se-lhe e morreu confuso, mas não senil. Ele assistiu com consciência à deterioração do próprio corpo.

Como eu já estava a estudar na Universidade, morava longe e nem sempre o via, mas lembro-me perfeitamente da última vez que estivemos juntos. As noras tomavam conta dele e eu fui lá com a minha mãe. Ele dormia e ela disse-me para eu o acordar. Fui lá, chamei-o, mas ele não me reconheceu. Estava acostumado a que a minha mãe o acordasse de certo jeito, por certo ângulo, com certa ênfase, e eu não os conhecia. Apesar de estar ali mesmo ao lado, as rotinas dos movimentos já tinham tomado conta dele. Deixei-o voltar a dormir até que a minha mãe chegou e lhe disse que eu estava lá. Ele virou a cabeça, viu-me e abriu-se num sorriso tão grande que eu pergunto-me se alguma vez verei alguém fazê-lo de novo só por me ver. Conversámos um pouquinho, disse-lhe que as coisas estavam a correr bem, que ia entrar em exames e não ia poder voltar durante um mês ou dois, mas que ele tinha que se pôr forte para quando eu voltasse. Ele sorriu de novo, orgulhoso por ver o neto mais novo bem, Direito em Coimbra, um orgulho. A minha primeira lição desse dia foi que às vezes basta viveres a tua vida para fazeres alguém feliz. A segunda começou no momento em que lhe dissemos que nos íamos embora.

O meu avô dava sempre uma nota aos netos quando o iam visitar. Às vezes, os meus pais reclamavam, "ele não precisa, não se esteja a incomodar", mas ele fazia questão. E, nesse dia, quando a minha mãe lhe disse que nos íamos embora, ele virou-se para ela e murmurou algo como "naquela gaveta, há notas, tira uma e dá-lhe". Aí fui eu quem reclamou. "Dás-me para a próxima, avô, daqui a umas semanas eu dou aqui um salto". Eu não quis aceitar, e ele não se podia levantar e dar-me a nota, senão tê-lo-ia feito. Acho que queria mostrar-lhe que estava independente, ou dar-lhe força para aguentar até à próxima vez que nos víssemos. Quando lhe fui dar um beijo e abraçá-lo, ele olhava-me com um sorriso de conformação. Ele sabia que provavelmente não me veria de novo. Umas semanas depois, antes que eu voltasse a Monção, morreu. Nunca mais o vi vivo.

A minha segunda lição desse dia foi perceber que aceitar o que te dão às vezes faz mais bem a quem te dá do que a ti. Ou seja, aceitar o que a vida te oferece é um segredo tão grande como dar-lhe o que ela te pede. São duas das coisas que estamos sempre a aprender, sempre, constantemente a aprender.

O cadáver do meu avô foi vestido de fato e gravata para o funeral. Elegante, como o Don Draper, por baixo da mortalha translúcida que o tapava. Toquei-lhe na mão. Estava fria e dura, como pedra. E essa foi a terceira lição. Aquilo já não era o meu avô, era outra coisa. Somos o que somos enquanto estamos na vida, esse é o nosso presente. Depois, o nosso corpo é só uma prova do passado. Como uma série de televisão. Ou, ainda melhor, como uma fotografia na parede.