Augusta, graças a Deus, entre você e a Angélica eu encontrei o Décio Pignatari

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Aconteceu que no Sábado eu estive na festa do Santo Forte e, logo na primeira vez que ia sair para refrescar a cara daquele lugar diabólico sem ar condicionado e com falta de bebidas, começou a tocar a "Angélica, Augusta e Consolação" do Tom Zé e não consegui sair enquanto não acabou. No Domingo, enquanto procurava uma pulseira de couro na Paulista, dei um salto à Cultura e descobri um livro que até parece uma justificação teórica do que fazemos nos Smokers, "o que é comunicação poética", de um senhor chamado Décio Pignatari. Hoje, no trabalho, apeteceu-me ouvir de novo a canção e comecei a ler sobre a "Angélica, Augusta e Consolação", principalmente sobre o álbum onde apareceu, "Todos os Olhos". Este álbum tem uma capa bem famosa, com uma fotografia do que seria um cu com um berlinde enfiado lá dentro, simulando um olho. E, fuçando, fuçando, descobri que a ideia para essa capa foi do próprio Décio Pignatari, que com certeza já estaria a executar as ideias sobre as quais mais tarde escreveria. É que se isso não é comunicação poética não sei o que é.

Canção do Asilo (a partir de Gonçalves Dias)

Minha terra não tem palmeiras
Lá não canta o sabiá
Não tem esfiha nem coxinha
Maniçoba ou vatapá

"É assim" é nosso "então"
O "OK" é "entendi"
A saudade que lá existe
É a mesma que existe aqui

Não encontro prazer lá
E não sei se o há aqui
Minha terra é um sonho em pó
Acordei, logo esqueci

Se esta terra tem primores,
Parabéns, mostrem-mos lá.
Não me falem "ora pois"
Nem me falem do que não há
Não sabemos o que é viver
Não aqui e nunca lá

Não tem Deus que traga a conta
Do consumo de maná
Não tem pai que nos corrija
Do erro que a gente fará
Não sabemos o que é viver
Não aqui e nunca lá

NOTA: Disse este poema no dia 21 de Novembro no espectáculo dos Social Smokers no SESC Pompéia. É a (in)versão possível de um português a viver em São Paulo no século XXI da famosa "Canção do Exílio" de Gonçalves Dias, um brasileiro que estudava Direito em Coimbra no século XIX.

Objetos do Brasil: a raquete elétrica


Fazer uma viagem é como levar um pobre num rodízio: não abdica de nada. Uma das coisas de que não abdiquei foi as vacinas. Não fui ao costumeiro centro de saúde, mas ao próprio Instituto de Higiene e Medicina Tropical, talvez porque tenho um fraquinho por qualquer instituição médica que já teve o seu boletim citado na série "House".

A Medicina Tropical é engraçada, porque é a única que não existiria sem medo. Não medo à doença ou à morte, mas ao próprio ser humano, desde que seja exótico. Sim, porque a Medicina Tropical olha para os trópicos com um medo que se pela. A comida pode ser perigosa, os insetos podem ser pestilentos, a doença pode sempre chegar - e, não tenha dúvidas, mais cedo ou mais tarde ela vai chegar. Por isso tudo, é sempre razoável tomar muitas mais vacinas do que aquelas de que precisaríamos, como que justificando na receita que nos passam a receita que lhes damos. Dentro desta paranóia toda, um pequeno actor surge: o mosquito, transmissor de tantas e tão boas doenças como o dengue ou a malária. Para quem não sabe, os mosquitos que pegam o dengue voam de dia e os que pegam a malária de noite. Ou seja, se se for um sujeito com muito azar, pode-se pegar o dengue e a malária no mesmo dia. Também pode ser que o mosquito do dengue goste tanto do que chupou que diga ao da malária onde é que a pessoa se encontra para este ir lá chupar também. Neste caso, o sujeito é na mesma azarado, mas, pelo menos, tem o conforto de ser muito apetitoso.

Para resolver este problema, o brasileiro adoptou um objecto muito peculiar, que junta o útil ao agradável e transforma em jogo a actividade de se manter saudável e livre de chupões de muriçocas: a raquete elétrica. A raquete elétrica torna portáteis aquelas armadilhas, presentes em todo o restaurante com pelo menos um prato na ementa a custar menos de 5€, que chamam os insectos com a sua cor arroxeada e os electrocutam mal eles pousam nelas. Mesmo que sejam borboletas. Doces e inocentes borboletas. Por isso é que, apesar de ela também ser vendida em Portugal, foi no Brasil que ela arrancou: porque, sendo o brasileiro sensível e atento às belezas do mundo, ele acha que a matança de animais voadores não deve ser indiscriminada, mas antes ficar ao critério do próprio sujeito matador. Assim, muniu este de uma raquete com a qual, qual Federer dos infernos, pode aplicar uma descarga eléctrica que fulmina o desgraçado e potencialmente letal bicho. É o mais próximo que uma pessoa normal pode chegar do serial-killer sem arriscar prisão: a raquete elétrica garante a repetição da alegria da matança. Por outras palavras, uma versão adulta do famoso jogo infantil "queimar moscas".

O modelo na imagem é o de uma raquete corrente. Reparem no centro da mesma: tem um raio, igual aos raios que Zeus atirava aos mortais. Ou seja, a raquete aproxima quem a usa das divindades gregas, o que faz todo o sentido, pois, como toda a gente sabe, Deus é brasileiro. E, tal como Deus, a raquete elétrica é omnipresente - pelo menos no Brasil.

Objetos do Brasil: a catraca


Uma das coisas mais fáceis de acontecer no Brasil é multidões. Pois se há coisa que o Brasil tem são pessoas, 190 milhões delas, sempre prontas a juntar-se e fazer coisas disparatadas, como eleger palhaços para altos cargos de governação. Mas deixemos de falar da Dilma e do Serra e falemos do que realmente importa aqui. Mesmo para o observador mais desprevenido, não deixa de surpreender o magnífico sentido de ordem que os brasileiros têm, principalmente os paulistas, que se colocam em fila seja lá para o que for. Mesmo que estejam a apanhar um avião em Frankfurt. E não seja preciso fazer fila. Mas eles fazem, e isso só é de louvar. A menos, é claro, que se seja de Goiânia, como um amigo meu, que tem vontade de dar um tiro a alguém sempre que vai no supermercado. Isso para não falar que, sempre que percebem que sou português, uma das primeiras coisas que qualquer pessoa me pergunta é se em PT usamos mesmo a palavra "bicha" para dizer "fila". Nesse momento, procuro o meu amigo de Goiânia e começo a carregar a carabina.

Para que essas filas não saiam fora do controlo, há um objeto conhecido muito singelamente por "catraca". A função da catraca é tornar lenta uma fila que sem catraca seria rápida. Encontram-se nos ônibus, no metrô e em qualquer outro tipo de transportes, com a vantagem que, se se apanhar o ônibus num terminal, é preciso passar por uma catraca para entrar no terminal e outra dentro do ônibus. Sim, cada ônibus tem uma catraca, para além de um cobrador, que tem como função garantir que o número de voltas à catraca coincide com o dinheiro em caixa no final do dia. Ou seja, nos ônibus não só se paga como ainda é preciso passar por uma máquina que impede que se chegue àquilo por que se paga. Claro que muita gente tem o Cartão Único, o que significa que não precisam de dinheiro, passam o cartão numa máquina e giram elas próprias a catraca. Nesses casos, o cobrador não tem nada para fazer e, por isso, pode adormecer tranquilamente no seu banquinho no embalo do ônibus. Cobrador de ônibus é, aliás, a segunda profissão que conheço onde é aceitável que se durma durante a jornada de trabalho, mas os deputados da Assembleia da República Portuguesa sempre têm a desculpa de não terem uma catraca por que olhar.

Já passei por catracas para ir a concertos, casas nocturnas, para ver jogos de futebol na praia, para ir ao teatro. No meio disto tudo, porém, tem uma coisa boa: ao contrário do Metro lisboeta, em que é preciso passar o passe novamente no leitor da catraca para se poder sair, o Metrô paulista só requer que se empurre a catraca do lado de dentro. Isso realmente ajuda a que a fila, que sem catraca seria rápida, não seja tão lenta como poderia ser - a menos, é claro, que se seja homem, se vá com pressa e se esbarre com as jóias da família na porra da catraca. Nesse caso, a fila fica lenta de novo.

A tartaruga tuga

Uma tartaruga chamada Calantha, que não via o mar há 30 anos, saiu do Aquário Vasco da Gama e nadou durante 332 dias até chegar às Caraíbas. Os biólogos dizem que é "uma das maiores migrações" de tartarugas de que têm conhecimento.

É preciso tecer algumas considerações sobre isto. Primeiro, se é só uma tartaruga a nadar, não é uma migração, é uma viagem. Em 2003 eu viajei pela Europa toda com a mochila às costas e fazia interrail; porque é que uma tartaruga de carapaça é logo migrante? Tem visto de trabalho, é? Vai aguentar uns anos para mandar vir a família também? Por favor.

Segundo, eu posso estar longe, mas tenho acompanhado as notícias, e não me espanta nada que qualquer ser que seja solto em Portugal por estes dias se queira pôr a milhas o mais depressa possível. Aliás, quem é que o Aquário Vasco da Gama quer enganar? Mantiveram a tartaruga com eles durante 30 anos e agora deixam-na ir embora? Podem chamar-lhe "migração" à vontade - eu chamo-lhe despedimento sem justa causa. A tartaruga não precisa de atenção, ela precisa é de um subsídio.

Terceiro, analisemos bem as ações da Calantha. Chegou ao Vasco da Gama nos anos 70, tem à volta de 40 anos, esteve cinco anos em recuperação para reaprender a "capturar o seu alimento" e que "os humanos não são amigos". 40 anos, acha que os humanos não são amigos e à primeira oportunidade raspa-se para as Caraíbas? Não nos enganemos, meus amigos - esta tartaruga é uma divorciada. Arranjem-lhe um mulatinho e uma margarita e não se preocupem mais com ela.

Pau e brasil

Não deixa de ser curioso que a primeira vez que ouvi o hino brasileiro tenha sido no início da parada gay - momento, aliás, devidamente documentado para a posteridade. Em Portugal, o brasileiro é visto como animado, divertido e irremediavelmente liberal e folgado. No Brasil compreende-se, no entanto, que, se em Portugal a lei anda à frente da sociedade, no Brasil a sociedade está à frente da lei. Não é possível abortar, não é possível andar na rua com drogas leves ou pesadas (ainda que em doses para consumo individual), os homossexuais não se podem casar. Ao mesmo tempo, basta um passeio normal pela Avenida Paulista ou uma saída nocturna sem grandes espalhafato para encontrar casais homossexuais beijando-se sem vergonha, as prostitutas da Consolação - curiosa coincidência toponímica - esperam os clientes sem se esconderem na sombra ou no anonimato da estrada, a cocaína circula aos montes e a maconha aos fardos. Uma ressalva no afirmado anteriormente: a sociedade está à frente da lei no comportamento, porque a mentalidade, estranha, masoquista, mantém-se apertada, mesmo no seio de grupos que se imaginava serem mais progressistas. Apesar de tudo, o brasileiro é bem comportado e de um estranho conservadorismo relaxado: não gosta de ruptura e leva a mal que se aponte falhas. A ditadura militar será explicação para parte deste comportamento, o comportamento será parte da explicação da ditadura militar. Enfim, "o brasileiro", "basta um passeio" e "a sociedade" são sempre aquelas generalizações bacocas e com quota-parte de perigo. Ainda assim, confesso que senti algum orgulho quando, assistindo à parada gay, me lembrei que o meu país acabara de promulgar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Nesse momento, o hino do Brasil cantado de modo bem divertido por um travesti começou a enfraquecer nos meus ouvidos. E, contente, ouvi, claro e distinto, como se estivesse ao meu lado e não a um oceano de distância, o som ainda mais divertido de Cavaco Silva a engolir um enorme, indiscreto e liberalíssimo sapo.

Tenho uma casa para olhar

Ao que parece, Vinicius de Moraes fez o seu apontamento na guerra Sampa-Rio quando disse que o samba vinha a São Paulo para morrer. Até certo ponto, dá para entender. O brasileiro tão musical que é tão conhecido em Portugal é, na verdade, o carioca. Com as vogais ainda mais abertas do que o costume e o "jeitinho" a borbulhar, o Rio é terra de samba e lugar onde personagens como Wilson Simonal ou Leon Eliachar são naturais. Voltaremos a eles noutro dia. São Paulo, por outro lado, cidade de ética de trabalho férrea, sem praia, sem calor, terra de garoa, de lazer e dor, não tem muito a ver com garotas de Ipanema. Dizia uma das últimas Piauí que a afirmação de Vinicius era contradita por um homem, um italiano de nome original João Rubinato e que acabaria por se tornar conhecido como ator, personalidade propagandística (da Antártica) e sambista melancólico sob o nome de Adoniran Barbosa. Com uma voz rouca, das profundezas, o homem, que às vezes parece deixar o coro cantar os agudos para depois lhe vir contramarcar o desvairo, é, mais do que um letrista, um verdadeiro cronista. "Trem das Onze" é uma canção certeira num lugar onde a especulação imobiliária leva a que vários filhos continuem a viver com os pais até uma idade adulta, "Tiro ao Álvaro" é uma canção de amor em sotaque dos italianos do Brás, "Despejo na Favela" é uma melopeia de pobres. A melancolia profunda de Adoniran marca bem a diferença entre as duas cidades. Nela estão os paulistas a acusarem os cariocas de preguiçosos e os cariocas a acusarem os paulistas de obsessão com trabalho e dinheiro, os meus amigos atores a queixarem-se de que no Rio se fazem intervalos de 30 minutos no teatro e no fim é preciso ir buscar o público ao bar da esquina, os meus amigos cariocas a rirem-se do modo como em SP se continua a trabalhar depois dos jogos da Copa mesmo que o jogo seja de manhã. O samba alegre encontra a cidade triste de Adoniran e fica mais alegre, a cidade mais triste fica.

O “POLITIQUÊS” E O PODER DA AUTO-CLASSIFICAÇÃO, ou As Variações Pachecoldberg

(a partir de PP)

Olhando para os encontros dos políticos que venceram os cidadãos, encontramos um dos mundos menos conhecidos e escrutinados da vida pública portuguesa. Porém, existe uma relação directa entre a ausência de escrutínio do seu trabalho e a capacidade que têm de influenciar os media a favor das suas causas, quer porque o seu lugar é central em certas "indústrias da comunicação", a que os media estão associados, quer pelo preconceito da intangibilidade da "administração", da "governação", da "política".

Este mundo funciona em circuito fechado, e desconhece-se que critérios presidem ao seu funcionamento e como são verificados os resultados dessa aplicação do dinheiro dos contribuintes. Sabe-se que não é pelo interesse dos cidadãos, visto que estes ramos de "administração" e "política" abominam tal critério vulgar, de serem avaliados, entre outras coisas, pelo interesse que suscita o seu trabalho pelo comum dos portugueses.

É verdade que a verba que gastam do erário público é elevada e é dinheiro dos contribuintes que têm direito de saber onde e com quem é gasta. Os grupos de "políticos", principalmente na área autárquica e da administração autónoma, empregam um número significativo de pessoas, cuja trabalho individual é desconhecido e não avaliado. São "políticos" e como se auto-classificam como tal, quase tudo lhes é permitido, e respondem com enorme arrogância a qualquer avaliação.

Organizados em vários "partidos", PCP, PS, PSD, a que se juntaram o CDS e o Bloco de Esquerda, representam uma miríade de grupos cuja existência pública é quase ignorada se exceptuarmos alguns comentadores, personalidades televisivas, arguidos judiciais e o Alberto João Jardim. O Bloco "reúne 3 partidos políticos anteriores" e o CDS "agrega cerca de alguns milhares de velhinhos, betinhos e pessoas suburbanas que já se assustaram com uma sombra na rua, maioritariamente de Cascais e das áreas das feiras". Só o PSD inclui a comunidade de filiados mais sequiosa por uma mudança de poder no país, um ou dois Governos-sombra, o Pacheco Pereira e o Pedro Santana Lopes, a Zita Seabra e a Maria José Nogueira Pinto.

Tanto"político", tanto "governante", que nós temos por metro quadrado! O modo como se apresentam tem toda a prosápia burocrática e institucional. O PS quer com ousadia "defender inequivocamente a democracia e procurar no socialismo democrático a solução dos problemas nacionais e a resposta às exigências sociopolíticas do mundo contemporâneo" para o que defende "uma economia de bem-estar, aberta à pluralidade das iniciativas e das formas económicas privadas, públicas e sociais, e regulada pelo mercado e por instituições públicas adequadas"O PCP explica-nos que na sua festa na Atalaia"pavilhões dos países socialistas, de jornais de Partidos irmãos, pavilhões dos novos países africanos com exposições sobre as conquistas dos povos que avançam decididamente na construção do socialismo, sobre a luta das forças progressistas de todo o mundo - e também bancas onde poderão ser compradas recordações e produtos de todo o mundo!". Uma coisa chamada JSD explica-nos que a dita é "uma estrutura autónoma do PSD, apresentando um posicionamento programático claramente mais à esquerda, uma voz crítica e sem tabus, mas que, com o tempo, passou a alinhar mais com a base programática do partido. Mais ao centro e abandonando a ‘irreverência esquerdista’ que a caracterizou inicialmente". E por aí adiante.

Este bla-bla do "politiquês" é como o "culturalês" e o "eduquês", mas ninguém lhe toca. Só faltava tratar os "políticos" como gente vulgar!

Insuficiências

Conheci um dono de padaria português. Na verdade, conheci vários. Confirmam-se os rumores, eles são muitos e estão por todo o lado, suprindo as necessidades do café da manhã de toda uma nação - sim, porque também conheci um que vendia o seu pão francês lá mesmo no amazónico Pará. Diz-se "pão francês", curiosamente, e não bijou, trigo, de Mafra ou de Avintes. Por Sampa, o máximo que encontrei foi um pão bem gostoso que parecia broa, assim consistente, cheiinho, mas chamavam-lhe pão italiano. Adiante.

No Rio Grande do Sul, o pão francês é o "cacetinho", ou seja, um pequeno cacete, o que em São Paulo é o mesmo que uma pilha eléctrica é em Espanha. Isso mesmo, uma pila. Ou, mais precisamente, uma pilinha. Portanto, o que não falta por aí são hordas de gaúchos a pedirem pilas em padarias. O Brasil, definitivamente, é um país divertido.

É muito normal que os portugueses das padarias tenham bigode, para além de imagens católicas (não do candomblé, não espíritas) hasteadas nos estabelecimentos. Curiosamente, o dono de padaria que conheci ontem não tinha bigode, não tinha imagens nas paredes e também não tinha um dedo, o médio direito, provavelmente porque lho exigiram na Polícia Federal para estender o visto de residência.

Sem brincadeira, a insuficiência deste senhor, jovem, bom gestor, passava bem despercebida. Ele era de Fafe, e, curiosamente, tive na Faculdade um colega de Fafe que era conhecido também por uma insuficiência que passava despercebida. Digamos só que um habitante do Rio Grande do Sul chamar-lhe-ia um pão. Seja como for, lembrei-me do homem hidrocéfalo que vi na Feira Nordestina do fim de semana que passei no Rio. Imaginem o ambiente: Alceu Valença tocando, um público apertando-se em amálgama de cores, protuberâncias e pernas, o forró rolando para uma audiência que passou o dia em praias munidas de estruturas metálicas para fazer exercícios abdominais e inchar os músculos dos braços - e um homem hidrocéfalo, com a camisa suja, passeia-se pelo meio, fumando e com cara de poucos amigos. Realmente, amigos não devia ser uma coisa fácil para ele fazer.

O Brasil é um país de gente bonita, gente feia, gente de todas as lindezas. Alguns são donos de padaria. E alguns são portugueses. E pronto.

No Fórum

O dia amanheceu cedo na Frei Caneca. Era quinta-feira, dia 17, mas estamos a falar de um dos pontos nocturnos mais mexidos de São Paulo, ali mesmo perpendicular à Paulista, e os sinais dos baladeiros das horas anteriores ainda se viam pela rua. São Paulo tem estado frio, surpreendentemente frio. Trouxe um cachecol pensando que nunca o usaria, mas bem que podia processar a TAM por publicidade enganosa nos ecrãs individuais, porque posso já ter visto garotas bonitas, mas praias quentes e sol brilhante é que têm faltado (até pode ser que em Pernambuco seja diferente, mas o avião não me trouxe para Pernambuco). Descendo a rua, cheguei ao Centro de Convenções, onde recorria o Fórum Brasil, também conhecido como Mercado Internacional de Televisão.

Eu devia ter ido no dia anterior, mas caíram-me em cima um deadline e uma viagem no fim-de-semana e tive de fazer uma directa, sempre a pensar que duas horas depois conseguiria acabar o trabalho e seguir directo. O optimismo é uma das qualidades mais admiráveis do ser humano, mas deve ser administrado em doses moderadas. Não foi o meu caso. Mas foi impossível faltar ao segundo dia. O Newton ia falar.

Newton Cannito é roteirista (guionista, em Portugal) e é graças a ele que estou no Brasil. Quando me candidatei ao Inov-Art, era o país que parecia a escolha natural para quem escreve em português e quer passar por um sistema de produção grande. E havia uma empresa chamada FICs - Fábrica de Ideias Cinemáticas que me atraía acima de tudo, principalmente porque ela surgira na sequência de um método desenvolvido num livro chamado, muito simplesmente, "Manual do Roteiro, ou Manuel, o Primo Pobre dos Manuais de Cinema e TV". Só o título  já justificaria o interesse; o conteúdo reforçá-lo-ia; mas o facto de uma empresa ter nascido com base nele, coisa que nunca conheci em mais lado algum, foi o empurrão definitivo. Newton é um dos autores do livro e fundadores da empresa. O contacto foi feito de forma muito modernaça: pelo Facebook, para o que contribuiu a maravilhosa capacidade do Brasil para gerar nomes que mais nenhuma pessoa em mais lado nenhum do mundo tem (pelo menos, com conta no Facebook).

O Newton foi extremamente receptivo e seria hoje o meu orientador de estágio se não tivesse sido convidado para ser o novo Secretário do Audiovisual em Brasília. Enquanto roteirista, ele conhece melhor do que ninguém o sector e, como tal, está na melhor posição para ter uma visão própria desenvolvida e perceber as necessidades do meio. O que ele falou no Fórum não foi diferente do que já tinha afirmado na sua apresentação oficial no início do mês na Cinemateca Brasileira, do que escrevera no seu livro "A televisão na era digital" ou do que foi repetindo ao longo da sua carreira, até na própria índole dos projectos por que deu a cara: por um lado, a ideia de que os meios já não estão numa relação vertical, com a TV no topo, mas horizontal, sem secundarizações de uns quanto aos outros; por outro, uma defesa da posição do autor. O lançamento próximo do Fundo de Inovação Audiovisual e de um edital específico para o desenvolvimento de projectos respondem precisamente a essas duas urgências.

No entanto, a intervenção mais surpreendente acabaria por ser, para mim, a de Marcelo Gluz. O gerente de novos media da Globosat falou sobretudo da ideia do transmediático: da expansão de uma obra através de diferentes dispositivos  que convergem, não num só, mas no usuário e na história. Documentação caótica, universo e personagens fortes, storylines múltiplas em vários gadgets, todas as histórias a contribuírem para a storyline central: é o conceito de story dwelling, em que a perspectiva do espectador é elevada ao máximo de importância, a tal ponto que é a partir da sua entidade que as histórias são contadas. Estas palavras concentram o que sempre senti ao trabalhar com Net, que estava a lidar com o nível estrutural mais próximo do que pode ser a imprevisibilidade da vida real. E isso ainda se evidenciou mais com o "abrir de olhos" que Gluz forçou no final: num mundo em que sabemos da vida dos nossos amigos por portais sociais, em que enviamos fotos por e-mail e postamos vídeos no YouTube, em que conversamos por telemóvel e fazemos vídeochamadas por Skype, em que lançamos snacks de vida no Twitter, no Flickr, no MySpace - nesse mundo, os nossos amigos são já produtos de media e a nossa vida real é transmedia em si mesma.

E felizmente o é, senão eu não estaria no Brasil.

18h15

Eu espero um ônibus. Já faz noite. O primeiro aparece com uma caixa na mão. "Moço, compra uma bala". Dentro da caixa, embalagens de rebuçados coloridos. Digo que não. Reparo então: ele tem os olhos marejados de lágrimas. Vira-se para trás. "Anda, Henrique". O irmão aproxima-se. Pequenino, quatro anos no máximo. Eles afastam-se, o maior claramente liderando. Está frio em São Paulo, eles não estão mal agasalhados. Têm camisolas, o mais novo tem um casaco vermelho, estão bem lavados. Se são moleques de rua, alguém toma bem conta deles, ainda que seja só eles mesmos. O maior vê algo no chão, aponta, o mais novo apanha. O que é? Não se vê, mas o maior faz que sim com a cabeça. É coisa boa, alguém jogou fora, alguém perdeu, não interessa, agora é deles. Penso que lhe devia ter perguntado porque chorava e dado uns trocos, mas agora é tarde. Eles estão lá longe, entre a estação de serviço e a cafetaria com as paredes cobertas de revistas finas,  e eu penso que estes são dias que o Henrique nunca mais vai esquecer: os dias em que, bem abrigado, andava pela rua a vender balas com o irmão mais velho.

As pequenas diferenças

Parece mentira, mas já estou em São Paulo há 21 dias. O primeiro mês do meu visto está quase a esgotar-se, o que parece justo, já que uma parte substancial dele foi passada a tentar registrar esse mesmo visto na Polícia Federal - ou PF, para os amigos. Por outro lado, PF é também um sistema de restaurante (Prato Feito, diferente da comida a peso), para além, é claro, das Produções Fictícias. A Ana hoje percebeu um padrão nas minhas ocupações: Cabra, Bode Expiatório; Produções Fictícias, FICs. Estou mortinho por descobrir o que vai emparelhar com a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro.

Tenho-me lembrado muito desta conversa durante estes 21 dias. É tudo um bocadinho diferente em São Paulo, apesar de ter tudo o que Portugal tem menos a língua. Um x-acto é um estilete, uma rotunda é uma rotatória, um rissol é um risoli. Pastéis de bacalhau rareiam, mas há coxinhas. Ninguém pergunta se queremos factura, mas nota fiscal paulista. Não há c's e p's nas palavras. As vogais são abertas como uma fronteira sem PF. Há cromos do Mundial, mas chamam-lhes "figurinhas" e aos Sábados centenas de pessoas vão para baixo do MASP trocar zagueiros por goleiros. Bebe-se muita cerveja, mas nos cafés, que se chamam lanchonetes, é preferível comprar uma garrafa grande e dividir. E nas caixas automáticas, que não servem para todos os cartões, não dá para carregar o telemóvel, que se chama celular,  mas nas caixas de supermercado e nas bombas de gasolina já dá.

Na 3ª feira da semana passada, cansado de ser estrangeiro, apeteceu-me ir jantar a um lugar (e não digo "sítio" porque sítio aqui é fazenda) onde não tivessse que aprender nada. Um lugar onde não tivesse de me confrontar com termos como bauru, virada, açaí, catupiry. Um lugar que fosse um vazio cultural, onde comer fosse quase intuitivo, mecânico e sem prazer. Mas onde encontrá-lo? Felizmente, perto de nós, há-de sempre haver um McDonald's.

Fui no da Rua Augusta e entrei. Tudo muito normal e calmo: os vermelhos, os amarelos, os brinquedinhos e as coisinhas todas para atrair crianças para os poliinsaturados desde o berço. Há Big Tasty? Há, e chama-se mesmo assim: não preciso de dizer "le Big Tasty". Pego no meu hambúrguer, pego na minha cola (que cá é mais "coca"), pelo nas minhas batatas (que cá são mais" fritas") e sento-me. Ah, o prazer de comer comida igual em todo o mundo, com aquele inconfundível sabor a fritonguice a jorrar de todos os poros, das pontas afiadas das batatas, dos molhos enfiados no pão, e empurrar tudo com um grande golo de...

Falta-me a palhinha.

Tudo bem, não há-de haver problema, há mais no balcão. Levanto-me, ando até lá e pergunto à menina Olhe, por favor, queria uma palhinha. Ela não percebe. Não faz mal, é do barulho, há mais gente a ser servida nas caixas ao lado. Quero uma palhinha, por favor, e neste momento já puxo pelo sotaque brasileiro. Ela continua a não entender. Então, fecho uma mão, estico o mínimo e o polegar, mínimo para baixo e boca no polegar, e digo, com as vogais todas abertas e sem c's nem p's pelo meio, Uma palhinha! Para beber! e a moça exclama Ah! Um canudo! Aqui tem!

Um canudo. Um canudo. Um canudo. E aí eu lembrei-me do "mostrar" e de como o PT-BR do Consulado de Lisboa é ainda mais diferente do PT-PT. Quando em PT-BR consular vos dizem que é necessário "mostrar" o protocolo na PF depois de chegar, isso significa preencher uma GRU na Internet, pagá-la num banco ou casa lotérica, tirar duas fotos 3x4, preencher um formulário chato, tirar fotocópias ao passaporte, chegar na fila pelas 7 da manhã, entrar e entregar tudo para depois ter que esperar até às 15h com uma senha que não se pode perder para tirar impressões digitais, reaver o passaporte e um talão que comprova que já se está legal. Isso, claro, se não houver um problema nos documentos com o nome da mãe, porque, nesse caso, é preciso ir ao consulado português pedir uma nota consular e perder mais uns dias de trabalho numa sala com o único atractivo de se poder conversar com uma data de bolivianos que por cá andam a tentar a sorte.

Saí do McDonald's com as mãos sujas de gordura. Saí da Polícia Federal com as mãos sujas de tinta. Essa é a conclusão possível: isto deixa marca.

Lula para todos

Uma refeição completa e bem saborosa (frango guisado, feijão, arroz, jardineira, salada, sumo de kiwi e, para sobremesa, um fruto que é um diospiro, seja lá qual for a palavra acabada em i, u ou ã que por cá se inventou) num Bom Prato, um dos restaurantes sociais criados pelo senhor Lula para acabar com a fome, incluindo a de portugueses que vão à Lapa registrar o visto: 1 real.

Um café expresso na Casa do Pão de Queijo ao lado: 2 reais e 40 centavos.

Ir ao Bom Prato da Rua Afonso Sardinha é como ir à cantina em Coimbra. Aliás, a fila estava cheia de gente de todas as carteiras, desde vagabundos a antropólogas em doutoramento, passando por estudantes universitários, aposentados, lojistas, os motoboys que estacionam por ali, os empregados das lojas das redondezas... isso ajudou-me a ultrapassar o remorso prévio que me atacou. É que um Bom Prato não tem hora certa para fechar - abre às 10h45 e fecha quando as 1500 refeições que disponíveis acabarem. E eu lá pensava "se calhar, vou estar a tirar a refeição a alguém que precisa mais". Afinal, não. Aquilo é mesmo de todos.

Sobre a minha participação como guionista no filme "Um funeral à chuva"

As notícias sobre o filme Um Funeral à Chuva, que estreia hoje em Portugal, e principalmente uma entrevista publicada ontem no blog do João Nunes onde o meu nome é mencionado, levaram a que eu e o guionista Luís Campos fôssemos questionados  sobre a possível existência de atritos entre nós e sobre a minha posição neste processo. Para esclarecer os mal-entendidos, fica aqui uma explicação breve.

Em 2006, logo após ter escrito a curta Utensílios do Amor para o realizador Telmo Martins, produzida por aquilo que viria a ser as Lobby Productions, foi-me passada uma história original sobre o reencontro de estudantes universitários na Covilhã com a missão de a transformar em guião. Na altura, fui pago com uma soma justa e, ao longo de dois anos, escrevi mais dois drafts enquanto a produção tentava conseguir fundos pelas vias normais dos subsídios públicos, a fundo perdido ou não. Em 2009, após uma aprovação com reservas pelo FICA, eu desliguei-me do processo e a Lobby decidiu passar o guião ao Luís Campos para uma reescrita. O Luís foi mais longe e transformou o guião em algo novo, algo dele e, naturalmente, mais próximo da visão da produção, já que todos eles foram estudantes na Covilhã e partilhavam um património comum. Após uma rejeição desse guião pelo FICA, a Lobby decidiu avançar para a produção da maneira heróica que é conhecida, e agora o filme está aí a estrear em 20 salas por esse Portugal fora.

Não tenho qualquer tipo de conflito com o Luís Campos, com quem troco guiões e opiniões frequentemente e que considero um excelente profissional. Enquanto excelente profissional que também penso ser, acredito que, num mercado audiovisual maduro e saudável, a reescrita deveria acontecer mais vezes e, arrisco, de forma bem mais conflituosa (quando se justificar um departamento de arbitragem na APAD semelhante ao da WGA, o negócio vai estar bem). De resto, o assunto resume-se a isto: eu fui compensado e a minha contribuição criativa creditada; o Luís escreveu o guião de uma longa-metragem com resultados felicíssimos, tão eficaz que foi o empurrão final para a concretização do projecto; e a Lobby, depois de muitos sacrifícios durante 4 anos, produziu a primeira longa-metragem independente de qualidade em Portugal, estreando em 20 salas da Zon/Lusomundo. Acredito que o futuro da produção audiovisual portuguesa passa necessariamente pelo modo como se trabalhou em Um Funeral à Chuva e, aqui do meio da selva de pedra paulista, espero que o público o veja e aprecie.

Tou ficando atoladinho

Um autocarro de São Paulo não passa em muitas ruas. Primeiro, porque se é autocarro em São Paulo é ônibus. Depois, porque as avenidas são tão longas que é mais fácil fazer piscinas do que começar o corta-mato. Subir e descer a Paulista à procura da minha paragem foi um passatempo muito agradável para a minha manhã.

Por falar em Paulista, depois de me ter sentido como um alcoólico no meio da maior adega do mundo, prometi a mim mesmo que não voltava à Livraria Cultura. Mas aquela autobiografia do Tom Zé estava mesmo com cara de quem não se ia ler sozinha.

Um tecnólogo é um técnico, pereba é um atleta mau, não tem choro nem vela é não ter alternativa, um dia pode ser pipi se for problemático e isso é massa véio se for bom, porque se for mau é paia - assim parece que os traficantes de droga definiram. Os polícias andam com rojões, mas quem comem são os outros.

Felizmente, encontrei café numa lanchonete - muito insípido e muito doce, mas já estava prevenido. O senhor era simpático, principalmente porque lhe comprei pão de queijo, uma linguiça, um pastel de carne dentro do que sabia a pão de leite e uma paçoquinha. O jet-lag vai melhorando dia após dia. Hoje o meu cérebro já só estava três horas adiantado.

Brasil via Alemanha

A ver a fila que se fazia para o avião em Frankfurt, percebi: isto é outra gente. Todas as cores, tamanhos e expressões e todos a falarem a mesma língua, a partilharem o mesmo país. Num guia que li há dias, dizia-se que o passaporte brasileiro é dos mais cobiçados no mercado negro, porque qualquer um passa por brasileiro. É algo que eles têm em comum com os habitantes do Vaticano, tirando o facto de estes usarem hábitos e não treparem com adultos. É algo que não têm em comum com os habitantes de Frankfurt, que são invariavelmente mulheres, mal-dispostas e trabalhadoras em estações e aeroportos. Nunca vi gente com tão má vontade de dar indicações, esclarecer, ser simpático. E gostava que acabassem já com o mito de que os alemães são um povo muito organizado. Eles não são organizados, eles organizam é tudo segundo uma lógica que está muito clara na cabeça deles, tão clara que questioná-la é questioná-los a eles. Mas os homens não são tão maus. Enquanto esperava a ligação, comi um gulash, umas salsichas (frankfurter, evidentemente) com salada de batata, uma cerveja e um expresso, tudo servido por um homem tão simpático que não hesitou em trazer-me tudo ao mesmo tempo. Talvez sejam assim os frankfurtianos: prestáveis, mas toscos. Isso, claro deve ser chato para as mulheres. Assim fica tudo explicado.

Em trânsito

Tu gostas da viagem. Sempre gostaste de aeroportos e estações, porque um aeroporto é sempre um local onde alguma coisa começa, seja a viagem ou tudo aquilo que vem a seguir. Quando vais levar alguém, gostas de ficar sempre mais um bocadinho, antes ou depois, só para ver as pessoas passar, notar-lhes as expressões e pensar no que estará a começar para elas. O problema, portanto, não é a viagem, mas o facto de a cabeça não parar e de te estar constantemente a anotar os fins. Esta é a última viagem de Metro. Este é o último jantar no restaurante aonde costumas ir quando estás sozinho. Esta é a última vez que passas a esfregona no chão de casa. A última coisa que entra nas malas, a última coisa a imprimir, a última mensagem. Esvazias a carteira, tiras tudo aquilo que não te vai fazer falta ou já estava a mais e ia continuando lá por inércia, e pensas "Metade das coisas que trago comigo só servem para deitar fora" e tu pensas "O que mais poderia caber nesta divisão?". Trabalho? Afectos? Memórias? Mas depois há o momento em que paras de pensar e as coisas deixam de acabar. É quando a viagem começa. E por isso mesmo esta é a última palavra deste texto.

O criado brasileiro

Naquela fase de me ir orientando, deparo-me com o seguinte anúncio: O quarto é bem iluminado, tem uma cama box casal, uma mesa para tv e um criado mudo. Luz e mesa para tv é claro; cama box casal também se percebe; mas criado mudo?

Saber que é uma mesa de cabeceira é muito menos excitante do que  a perspectiva de, no escuro, ir depositando porcarias na mão de um desgraçado que não consegue dizer "que merda do trabalho".

Papa

Um grupo de católicos espanhóis teve um acidente. O autocarro que os trazia a Fátima e ao Papa Bento XVI ia entrar numa estação de serviço, falharam-lhe os travões e espetou-se contra o rail de protecção. Aparentemente, iam todos a rezar e o meu comentário irónico foi logo se calhar, não estavam a rezar bem, mas o líder do grupo apareceu então a dar a perspectiva também razoável de que foi graças à Senhora de Fátima que não houve consequências de maior, para além de uma rapariga com um hematoma nas costas e outra que teve uma quebra de açúcar. Assim, só essas duas raparigas estariam a rezar mal. A Senhora de Fátima não os livrou de serem espanhóis, mas isso já é outra conversa. Ironias à parte, não se pode ter senão respeito por quem é capaz de fazer centenas de quilómetros, castigando corpo e alma, para se despojar, para suplicar algo com toda a força possível. Os putos dos Tokio Hotel têm muito a aprender.

Monção

Esta terra é três cores: verde, castanho e cinzento. Vêm das árvores, da vinha, da terra e do céu. Se fecho os olhos e me quero lembrar, a imagem é a de encostas cheias de pinheiros e fasco, atravessadas por caminhos de terra batida que, do que devem ter custado a conquistar, bem podiam ser feridas abertas no chão. O som da televisão ao meu lado ou do rádio na cozinha a atravessarem o silêncio enorme, aquele em que aprendi a pensar, a inventar histórias na minha cabeça, a fechar-me. Sabemos que estamos todos sozinhos no meio deste silêncio, somos desconfiados. As ligações com os outros são acidentais, corpos que se encontram ao calhas no meio de percursos aleatórios. Uma vez disseram-me que Torga chamou ao Minho o inferno verde, mas isso não está certo. O Inferno deve estar cheio de ruído. Em Monção não pára de chover.