No Fórum

O dia amanheceu cedo na Frei Caneca. Era quinta-feira, dia 17, mas estamos a falar de um dos pontos nocturnos mais mexidos de São Paulo, ali mesmo perpendicular à Paulista, e os sinais dos baladeiros das horas anteriores ainda se viam pela rua. São Paulo tem estado frio, surpreendentemente frio. Trouxe um cachecol pensando que nunca o usaria, mas bem que podia processar a TAM por publicidade enganosa nos ecrãs individuais, porque posso já ter visto garotas bonitas, mas praias quentes e sol brilhante é que têm faltado (até pode ser que em Pernambuco seja diferente, mas o avião não me trouxe para Pernambuco). Descendo a rua, cheguei ao Centro de Convenções, onde recorria o Fórum Brasil, também conhecido como Mercado Internacional de Televisão.

Eu devia ter ido no dia anterior, mas caíram-me em cima um deadline e uma viagem no fim-de-semana e tive de fazer uma directa, sempre a pensar que duas horas depois conseguiria acabar o trabalho e seguir directo. O optimismo é uma das qualidades mais admiráveis do ser humano, mas deve ser administrado em doses moderadas. Não foi o meu caso. Mas foi impossível faltar ao segundo dia. O Newton ia falar.

Newton Cannito é roteirista (guionista, em Portugal) e é graças a ele que estou no Brasil. Quando me candidatei ao Inov-Art, era o país que parecia a escolha natural para quem escreve em português e quer passar por um sistema de produção grande. E havia uma empresa chamada FICs - Fábrica de Ideias Cinemáticas que me atraía acima de tudo, principalmente porque ela surgira na sequência de um método desenvolvido num livro chamado, muito simplesmente, "Manual do Roteiro, ou Manuel, o Primo Pobre dos Manuais de Cinema e TV". Só o título  já justificaria o interesse; o conteúdo reforçá-lo-ia; mas o facto de uma empresa ter nascido com base nele, coisa que nunca conheci em mais lado algum, foi o empurrão definitivo. Newton é um dos autores do livro e fundadores da empresa. O contacto foi feito de forma muito modernaça: pelo Facebook, para o que contribuiu a maravilhosa capacidade do Brasil para gerar nomes que mais nenhuma pessoa em mais lado nenhum do mundo tem (pelo menos, com conta no Facebook).

O Newton foi extremamente receptivo e seria hoje o meu orientador de estágio se não tivesse sido convidado para ser o novo Secretário do Audiovisual em Brasília. Enquanto roteirista, ele conhece melhor do que ninguém o sector e, como tal, está na melhor posição para ter uma visão própria desenvolvida e perceber as necessidades do meio. O que ele falou no Fórum não foi diferente do que já tinha afirmado na sua apresentação oficial no início do mês na Cinemateca Brasileira, do que escrevera no seu livro "A televisão na era digital" ou do que foi repetindo ao longo da sua carreira, até na própria índole dos projectos por que deu a cara: por um lado, a ideia de que os meios já não estão numa relação vertical, com a TV no topo, mas horizontal, sem secundarizações de uns quanto aos outros; por outro, uma defesa da posição do autor. O lançamento próximo do Fundo de Inovação Audiovisual e de um edital específico para o desenvolvimento de projectos respondem precisamente a essas duas urgências.

No entanto, a intervenção mais surpreendente acabaria por ser, para mim, a de Marcelo Gluz. O gerente de novos media da Globosat falou sobretudo da ideia do transmediático: da expansão de uma obra através de diferentes dispositivos  que convergem, não num só, mas no usuário e na história. Documentação caótica, universo e personagens fortes, storylines múltiplas em vários gadgets, todas as histórias a contribuírem para a storyline central: é o conceito de story dwelling, em que a perspectiva do espectador é elevada ao máximo de importância, a tal ponto que é a partir da sua entidade que as histórias são contadas. Estas palavras concentram o que sempre senti ao trabalhar com Net, que estava a lidar com o nível estrutural mais próximo do que pode ser a imprevisibilidade da vida real. E isso ainda se evidenciou mais com o "abrir de olhos" que Gluz forçou no final: num mundo em que sabemos da vida dos nossos amigos por portais sociais, em que enviamos fotos por e-mail e postamos vídeos no YouTube, em que conversamos por telemóvel e fazemos vídeochamadas por Skype, em que lançamos snacks de vida no Twitter, no Flickr, no MySpace - nesse mundo, os nossos amigos são já produtos de media e a nossa vida real é transmedia em si mesma.

E felizmente o é, senão eu não estaria no Brasil.

18h15

Eu espero um ônibus. Já faz noite. O primeiro aparece com uma caixa na mão. "Moço, compra uma bala". Dentro da caixa, embalagens de rebuçados coloridos. Digo que não. Reparo então: ele tem os olhos marejados de lágrimas. Vira-se para trás. "Anda, Henrique". O irmão aproxima-se. Pequenino, quatro anos no máximo. Eles afastam-se, o maior claramente liderando. Está frio em São Paulo, eles não estão mal agasalhados. Têm camisolas, o mais novo tem um casaco vermelho, estão bem lavados. Se são moleques de rua, alguém toma bem conta deles, ainda que seja só eles mesmos. O maior vê algo no chão, aponta, o mais novo apanha. O que é? Não se vê, mas o maior faz que sim com a cabeça. É coisa boa, alguém jogou fora, alguém perdeu, não interessa, agora é deles. Penso que lhe devia ter perguntado porque chorava e dado uns trocos, mas agora é tarde. Eles estão lá longe, entre a estação de serviço e a cafetaria com as paredes cobertas de revistas finas,  e eu penso que estes são dias que o Henrique nunca mais vai esquecer: os dias em que, bem abrigado, andava pela rua a vender balas com o irmão mais velho.

As pequenas diferenças

Parece mentira, mas já estou em São Paulo há 21 dias. O primeiro mês do meu visto está quase a esgotar-se, o que parece justo, já que uma parte substancial dele foi passada a tentar registrar esse mesmo visto na Polícia Federal - ou PF, para os amigos. Por outro lado, PF é também um sistema de restaurante (Prato Feito, diferente da comida a peso), para além, é claro, das Produções Fictícias. A Ana hoje percebeu um padrão nas minhas ocupações: Cabra, Bode Expiatório; Produções Fictícias, FICs. Estou mortinho por descobrir o que vai emparelhar com a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro.

Tenho-me lembrado muito desta conversa durante estes 21 dias. É tudo um bocadinho diferente em São Paulo, apesar de ter tudo o que Portugal tem menos a língua. Um x-acto é um estilete, uma rotunda é uma rotatória, um rissol é um risoli. Pastéis de bacalhau rareiam, mas há coxinhas. Ninguém pergunta se queremos factura, mas nota fiscal paulista. Não há c's e p's nas palavras. As vogais são abertas como uma fronteira sem PF. Há cromos do Mundial, mas chamam-lhes "figurinhas" e aos Sábados centenas de pessoas vão para baixo do MASP trocar zagueiros por goleiros. Bebe-se muita cerveja, mas nos cafés, que se chamam lanchonetes, é preferível comprar uma garrafa grande e dividir. E nas caixas automáticas, que não servem para todos os cartões, não dá para carregar o telemóvel, que se chama celular,  mas nas caixas de supermercado e nas bombas de gasolina já dá.

Na 3ª feira da semana passada, cansado de ser estrangeiro, apeteceu-me ir jantar a um lugar (e não digo "sítio" porque sítio aqui é fazenda) onde não tivessse que aprender nada. Um lugar onde não tivesse de me confrontar com termos como bauru, virada, açaí, catupiry. Um lugar que fosse um vazio cultural, onde comer fosse quase intuitivo, mecânico e sem prazer. Mas onde encontrá-lo? Felizmente, perto de nós, há-de sempre haver um McDonald's.

Fui no da Rua Augusta e entrei. Tudo muito normal e calmo: os vermelhos, os amarelos, os brinquedinhos e as coisinhas todas para atrair crianças para os poliinsaturados desde o berço. Há Big Tasty? Há, e chama-se mesmo assim: não preciso de dizer "le Big Tasty". Pego no meu hambúrguer, pego na minha cola (que cá é mais "coca"), pelo nas minhas batatas (que cá são mais" fritas") e sento-me. Ah, o prazer de comer comida igual em todo o mundo, com aquele inconfundível sabor a fritonguice a jorrar de todos os poros, das pontas afiadas das batatas, dos molhos enfiados no pão, e empurrar tudo com um grande golo de...

Falta-me a palhinha.

Tudo bem, não há-de haver problema, há mais no balcão. Levanto-me, ando até lá e pergunto à menina Olhe, por favor, queria uma palhinha. Ela não percebe. Não faz mal, é do barulho, há mais gente a ser servida nas caixas ao lado. Quero uma palhinha, por favor, e neste momento já puxo pelo sotaque brasileiro. Ela continua a não entender. Então, fecho uma mão, estico o mínimo e o polegar, mínimo para baixo e boca no polegar, e digo, com as vogais todas abertas e sem c's nem p's pelo meio, Uma palhinha! Para beber! e a moça exclama Ah! Um canudo! Aqui tem!

Um canudo. Um canudo. Um canudo. E aí eu lembrei-me do "mostrar" e de como o PT-BR do Consulado de Lisboa é ainda mais diferente do PT-PT. Quando em PT-BR consular vos dizem que é necessário "mostrar" o protocolo na PF depois de chegar, isso significa preencher uma GRU na Internet, pagá-la num banco ou casa lotérica, tirar duas fotos 3x4, preencher um formulário chato, tirar fotocópias ao passaporte, chegar na fila pelas 7 da manhã, entrar e entregar tudo para depois ter que esperar até às 15h com uma senha que não se pode perder para tirar impressões digitais, reaver o passaporte e um talão que comprova que já se está legal. Isso, claro, se não houver um problema nos documentos com o nome da mãe, porque, nesse caso, é preciso ir ao consulado português pedir uma nota consular e perder mais uns dias de trabalho numa sala com o único atractivo de se poder conversar com uma data de bolivianos que por cá andam a tentar a sorte.

Saí do McDonald's com as mãos sujas de gordura. Saí da Polícia Federal com as mãos sujas de tinta. Essa é a conclusão possível: isto deixa marca.

Lula para todos

Uma refeição completa e bem saborosa (frango guisado, feijão, arroz, jardineira, salada, sumo de kiwi e, para sobremesa, um fruto que é um diospiro, seja lá qual for a palavra acabada em i, u ou ã que por cá se inventou) num Bom Prato, um dos restaurantes sociais criados pelo senhor Lula para acabar com a fome, incluindo a de portugueses que vão à Lapa registrar o visto: 1 real.

Um café expresso na Casa do Pão de Queijo ao lado: 2 reais e 40 centavos.

Ir ao Bom Prato da Rua Afonso Sardinha é como ir à cantina em Coimbra. Aliás, a fila estava cheia de gente de todas as carteiras, desde vagabundos a antropólogas em doutoramento, passando por estudantes universitários, aposentados, lojistas, os motoboys que estacionam por ali, os empregados das lojas das redondezas... isso ajudou-me a ultrapassar o remorso prévio que me atacou. É que um Bom Prato não tem hora certa para fechar - abre às 10h45 e fecha quando as 1500 refeições que disponíveis acabarem. E eu lá pensava "se calhar, vou estar a tirar a refeição a alguém que precisa mais". Afinal, não. Aquilo é mesmo de todos.

Sobre a minha participação como guionista no filme "Um funeral à chuva"

As notícias sobre o filme Um Funeral à Chuva, que estreia hoje em Portugal, e principalmente uma entrevista publicada ontem no blog do João Nunes onde o meu nome é mencionado, levaram a que eu e o guionista Luís Campos fôssemos questionados  sobre a possível existência de atritos entre nós e sobre a minha posição neste processo. Para esclarecer os mal-entendidos, fica aqui uma explicação breve.

Em 2006, logo após ter escrito a curta Utensílios do Amor para o realizador Telmo Martins, produzida por aquilo que viria a ser as Lobby Productions, foi-me passada uma história original sobre o reencontro de estudantes universitários na Covilhã com a missão de a transformar em guião. Na altura, fui pago com uma soma justa e, ao longo de dois anos, escrevi mais dois drafts enquanto a produção tentava conseguir fundos pelas vias normais dos subsídios públicos, a fundo perdido ou não. Em 2009, após uma aprovação com reservas pelo FICA, eu desliguei-me do processo e a Lobby decidiu passar o guião ao Luís Campos para uma reescrita. O Luís foi mais longe e transformou o guião em algo novo, algo dele e, naturalmente, mais próximo da visão da produção, já que todos eles foram estudantes na Covilhã e partilhavam um património comum. Após uma rejeição desse guião pelo FICA, a Lobby decidiu avançar para a produção da maneira heróica que é conhecida, e agora o filme está aí a estrear em 20 salas por esse Portugal fora.

Não tenho qualquer tipo de conflito com o Luís Campos, com quem troco guiões e opiniões frequentemente e que considero um excelente profissional. Enquanto excelente profissional que também penso ser, acredito que, num mercado audiovisual maduro e saudável, a reescrita deveria acontecer mais vezes e, arrisco, de forma bem mais conflituosa (quando se justificar um departamento de arbitragem na APAD semelhante ao da WGA, o negócio vai estar bem). De resto, o assunto resume-se a isto: eu fui compensado e a minha contribuição criativa creditada; o Luís escreveu o guião de uma longa-metragem com resultados felicíssimos, tão eficaz que foi o empurrão final para a concretização do projecto; e a Lobby, depois de muitos sacrifícios durante 4 anos, produziu a primeira longa-metragem independente de qualidade em Portugal, estreando em 20 salas da Zon/Lusomundo. Acredito que o futuro da produção audiovisual portuguesa passa necessariamente pelo modo como se trabalhou em Um Funeral à Chuva e, aqui do meio da selva de pedra paulista, espero que o público o veja e aprecie.

Tou ficando atoladinho

Um autocarro de São Paulo não passa em muitas ruas. Primeiro, porque se é autocarro em São Paulo é ônibus. Depois, porque as avenidas são tão longas que é mais fácil fazer piscinas do que começar o corta-mato. Subir e descer a Paulista à procura da minha paragem foi um passatempo muito agradável para a minha manhã.

Por falar em Paulista, depois de me ter sentido como um alcoólico no meio da maior adega do mundo, prometi a mim mesmo que não voltava à Livraria Cultura. Mas aquela autobiografia do Tom Zé estava mesmo com cara de quem não se ia ler sozinha.

Um tecnólogo é um técnico, pereba é um atleta mau, não tem choro nem vela é não ter alternativa, um dia pode ser pipi se for problemático e isso é massa véio se for bom, porque se for mau é paia - assim parece que os traficantes de droga definiram. Os polícias andam com rojões, mas quem comem são os outros.

Felizmente, encontrei café numa lanchonete - muito insípido e muito doce, mas já estava prevenido. O senhor era simpático, principalmente porque lhe comprei pão de queijo, uma linguiça, um pastel de carne dentro do que sabia a pão de leite e uma paçoquinha. O jet-lag vai melhorando dia após dia. Hoje o meu cérebro já só estava três horas adiantado.

Brasil via Alemanha

A ver a fila que se fazia para o avião em Frankfurt, percebi: isto é outra gente. Todas as cores, tamanhos e expressões e todos a falarem a mesma língua, a partilharem o mesmo país. Num guia que li há dias, dizia-se que o passaporte brasileiro é dos mais cobiçados no mercado negro, porque qualquer um passa por brasileiro. É algo que eles têm em comum com os habitantes do Vaticano, tirando o facto de estes usarem hábitos e não treparem com adultos. É algo que não têm em comum com os habitantes de Frankfurt, que são invariavelmente mulheres, mal-dispostas e trabalhadoras em estações e aeroportos. Nunca vi gente com tão má vontade de dar indicações, esclarecer, ser simpático. E gostava que acabassem já com o mito de que os alemães são um povo muito organizado. Eles não são organizados, eles organizam é tudo segundo uma lógica que está muito clara na cabeça deles, tão clara que questioná-la é questioná-los a eles. Mas os homens não são tão maus. Enquanto esperava a ligação, comi um gulash, umas salsichas (frankfurter, evidentemente) com salada de batata, uma cerveja e um expresso, tudo servido por um homem tão simpático que não hesitou em trazer-me tudo ao mesmo tempo. Talvez sejam assim os frankfurtianos: prestáveis, mas toscos. Isso, claro deve ser chato para as mulheres. Assim fica tudo explicado.

Em trânsito

Tu gostas da viagem. Sempre gostaste de aeroportos e estações, porque um aeroporto é sempre um local onde alguma coisa começa, seja a viagem ou tudo aquilo que vem a seguir. Quando vais levar alguém, gostas de ficar sempre mais um bocadinho, antes ou depois, só para ver as pessoas passar, notar-lhes as expressões e pensar no que estará a começar para elas. O problema, portanto, não é a viagem, mas o facto de a cabeça não parar e de te estar constantemente a anotar os fins. Esta é a última viagem de Metro. Este é o último jantar no restaurante aonde costumas ir quando estás sozinho. Esta é a última vez que passas a esfregona no chão de casa. A última coisa que entra nas malas, a última coisa a imprimir, a última mensagem. Esvazias a carteira, tiras tudo aquilo que não te vai fazer falta ou já estava a mais e ia continuando lá por inércia, e pensas "Metade das coisas que trago comigo só servem para deitar fora" e tu pensas "O que mais poderia caber nesta divisão?". Trabalho? Afectos? Memórias? Mas depois há o momento em que paras de pensar e as coisas deixam de acabar. É quando a viagem começa. E por isso mesmo esta é a última palavra deste texto.

O criado brasileiro

Naquela fase de me ir orientando, deparo-me com o seguinte anúncio: O quarto é bem iluminado, tem uma cama box casal, uma mesa para tv e um criado mudo. Luz e mesa para tv é claro; cama box casal também se percebe; mas criado mudo?

Saber que é uma mesa de cabeceira é muito menos excitante do que  a perspectiva de, no escuro, ir depositando porcarias na mão de um desgraçado que não consegue dizer "que merda do trabalho".

Papa

Um grupo de católicos espanhóis teve um acidente. O autocarro que os trazia a Fátima e ao Papa Bento XVI ia entrar numa estação de serviço, falharam-lhe os travões e espetou-se contra o rail de protecção. Aparentemente, iam todos a rezar e o meu comentário irónico foi logo se calhar, não estavam a rezar bem, mas o líder do grupo apareceu então a dar a perspectiva também razoável de que foi graças à Senhora de Fátima que não houve consequências de maior, para além de uma rapariga com um hematoma nas costas e outra que teve uma quebra de açúcar. Assim, só essas duas raparigas estariam a rezar mal. A Senhora de Fátima não os livrou de serem espanhóis, mas isso já é outra conversa. Ironias à parte, não se pode ter senão respeito por quem é capaz de fazer centenas de quilómetros, castigando corpo e alma, para se despojar, para suplicar algo com toda a força possível. Os putos dos Tokio Hotel têm muito a aprender.

Monção

Esta terra é três cores: verde, castanho e cinzento. Vêm das árvores, da vinha, da terra e do céu. Se fecho os olhos e me quero lembrar, a imagem é a de encostas cheias de pinheiros e fasco, atravessadas por caminhos de terra batida que, do que devem ter custado a conquistar, bem podiam ser feridas abertas no chão. O som da televisão ao meu lado ou do rádio na cozinha a atravessarem o silêncio enorme, aquele em que aprendi a pensar, a inventar histórias na minha cabeça, a fechar-me. Sabemos que estamos todos sozinhos no meio deste silêncio, somos desconfiados. As ligações com os outros são acidentais, corpos que se encontram ao calhas no meio de percursos aleatórios. Uma vez disseram-me que Torga chamou ao Minho o inferno verde, mas isso não está certo. O Inferno deve estar cheio de ruído. Em Monção não pára de chover.

A vigília

Quem escreve online há já uns anos sabe que esta coisa de se justificar silêncios é desculpa de mau postador. Em blog recente, então, é como não dar de comer a um bebé, a versão Internet da incubadora de Santana Lopes. Mas não tive outra hipótese. Nas últimas três semanas, o meu mundo tem sido uma sucessão de contratos, marcações, cartões, assinaturas, filas, senhas, vistos, passaportes, seguros, malas, cerimónias, e-mails, bilhetes, pagamentos, vacinas, viagens, talões, recibos e facturas. Aparecem-me flutuando, como se eu estivesse num sonho, sem conseguir prever a ordem com que preparar as placagens. E, ainda assim, vou ouvindo os anos dizer-me na cabeça não te canses com a preparação, porque vais precisar de força depois ou aguenta-te, fofo, tens de ganhar o céu de alguma forma. Nos momentos mais baixos, em que o stress e o cansaço me fazem doer os olhos se os viro muito para os lados, olho para o que aqui está e pergunto vale a pena só para poder responder logo que não tenho outra opção, porque, se queres entrar no jogo, tens de saber que podes chegar ou não ao outro lado e, se tiveres sorte, chegas esmurrado e a sangrar dos pés à cabeça, mas com a quantidade de língua suficiente para poderes dizer consegui. Não tinha de ser assim, talvez, mas se não for a doer não sentias nada. Não vou estar aqui com merdas, podia dizer que o melhor que faço é escrever, mas o que quero dizer não é bem isso, é que, do que fiz, o melhor foi a escrever. A Estrada Curva, A Peste, o João Ícaro, A Chorona, As Portas, a Agenda, o Cidadão, a Passagem, o 13 de Março. Algumas tu conheces, outras não, nenhuma é perfeita, mas em todas houve sempre pelo menos uma coincidência entre o meu gosto e o de outra pessoa qualquer. E esse apreço é uma coisa tão rara, um modo tão profundo de conseguires comunicar com outrem que nem conheces e nem vais conhecer, que tu sabes que não queres procurar mais do que isso: mais oportunidades de perceber que o caminho que os outros fazem também passou pelo que fizeste dentro de ti. É por isso que vou. Se parar, não valho a pena para ninguém. Pelo menos, não a valho para mim.

Uma história pessoal

Uma vez, quando eu era pequeno mas já tinha idade para ter juízo, o meu avô, que tinha andado pelos órgãos autárquicos da vida, fez-me prometer-lhe que não me meteria na política. De uma maneira ou de outra, sempre lhe fiz a vontade. Assumo opiniões, mas não aspiro a jobs. Mando-me a discutir, mas não assino cédulas nem pagarei quotas. Concordo ou discordo e renego a disciplina. E a verdade é que ele tinha razão, pois há-de haver sempre um cargo político a mais à face da terra. Num mundo perfeito, poderiam entender a derradeira afirmação? Poderiam. Mas não seria a mesma coisa.

Tu, baterista com quem falei ontem, tens razão, porque o rock



(A famosa pose "quem és tu, romeiro?"; ver aqui por volta dos 4m12)

é mesmo a celebração cega do indivíduo, a coisa mais egoísta, manipuladora e incrível. Sim, porque que mais se pode chamar a um som pensado para conduzir o público através de pulsões à celebração de um gajo com esta entrega, seja ele um génio chamado Iggy Pop ou um idiota saltitante chamado David Lee Roth? Isso é o que muitas vezes se esquece quando se faz uma banda, quando três a cinco putos decidem entregar-se ao som e à arte e se esquecem de que é preciso quem dê som e é preciso quem dê show. O rock tem de levar à idolatria, à entrega cega a alguém que consiga pôr toda a gente a olhar para ele e, durante umas horas, deixar todos mais à beira de um êxtase desconhecido. Se Iggy Pop aqui tivesse querido seguir em frente para a pilhagem, tinha-o conseguido. O concerto rock é - deve ser sempre - uma espécie de sucedâneo para a experiência do motim. E por isso é que é preciso ter cuidado com as flores e as luzes e as maquilhagens pipis, porque isto não é para ser bonito, não é para ser respeitável, não é para ser animado - é para ser do caralho. Acho que concordamos. Que tudo te corra bem nos teus projectos, compres lá a Ludwig em Braga ou compres uma de raiz ao contacto que te deram. Sê do caralho e vai tudo correr bem. Agora vou só ali comer uma sandes de manteiga de amendoim e já volto.

OS NANDAMENTOS

(escrito para o espectáculo dos Social Smokers de 22 de Abril)

1. Não afagarás os joelhos do próximo.
2. Não falarás com mulheres de barba.
3. Não criarás documentos do Microsoft Word que precisam de conversão para serem lidos por versões mais antigas do Office.
4. Reconhecerás sempre o dever de te rires da classe política.
5. Não saxofonearás o Zé Lencastre do próximo.
6. Amarás as pessoas acima de todas as coisas.
7. Babar-te-ás durante o sono.
8. Orgulhar-te-ás da distribuição dos teus pêlos corporais.
9. Honrarás a memória dos teus animais de estimação falecidos.
10. Não Sentinelarás o Silva do próximo.
11. Viajarás principalmente de transportes públicos.
12. Nunca aprenderás a estacionar um carro devidamente.
13. Andarás sempre com o livro de recibos atrás.
14. Pendurarás nos ombros tudo o que conseguires.
15. Não Cortezarás a próxima do Alex.
16. Farás xixi e irás para a caminha.
17. Nunca saberás explicar muito bem o que fazes na vida.
18. Nunca saberás muito bem o que fazes na vida.
19. Aprenderás muita coisa que te vai sempre ser útil.
20. Não Biruarás as Queijas do próximo.
21. Serás um bom rapaz que todos os dias fala com os pais.
22. Serás um mau rapaz que todos os dias tem pensamentos impuros.
23. Serás um homem assim-assim.
24. Não calarás o que tens para dizer, mas nunca dirás o suficiente.
25. Não Joãopedroarás os vídeos do próximo.
26. Respeitarás todos os homens, até o Filipe Fonseca.

JVN na Rua Larga n.º28

Já saiu o novo número da revista Rua Larga, em que colaboro com o texto Lisboa, 13 de Março de 2010.

As repetições

O dia começou no Ministério da Administração Interna, onde umas senhoras muito simpáticas me fotografaram, recolheram impressões, registaram assinatura, receberam pagamento, passaram recibo. Encontrei lá duas pessoas que iam para o Brasil. Fomos tomar café. Falei da língua geral, a tal que se falou no Brasil na época dos Bandeirantes e que misturava o português com o tupi, a tal que o Marquês de Pombal proibiu, a tal que tem o mesmo nome da editora do José Eduardo Agualusa. Pensei nisso nesse momento e apercebi-me pela primeira vez como o José Eduardo Agualusa tem tudo a ver com o seu nome. À tarde, fui escrever para o Kaffeehaus. Depois de uma hora, olhei para o lado e lá estava o José Eduardo Agualusa, numa mesa ao fundo, conversando. E eu pensei "olha que engraçado". Fiz o que tinha a fazer, fechei o computador, segui para a Fnac para gastar algum tempo. Enquanto tentava perceber os títulos de livros mais ridículos das últimas fornadas, apareceu-me o José Eduardo Agualusa, também a cirandar pelo meio dos livros. E eu pensei "olha que engraçado". Logo encontrei um amigo que trabalha no Governo Civil e que, portanto, tinha acabado de passar à frente do Kaffeeehaus. Procurava uma prenda para uma amiga de uma colega de trabalho. Ajudei a procurar a prenda e, quando estávamos a sair da Fnac, o último livro que vi tinha uma citação do José Eduardo Agualusa. E eu pensei "olha que engraçado". À noite, voltei a falar do Brasil com mais algumas pessoas, mas não repeti a história da língua geral. Não voltei a ver José Eduardo Agualusa.

O dinheiro

Sempre que gasto dinheiro, percebo: nada é mais fácil. De uma maneira ou de outra, se não há notas há cartão, se não há cartão dá-se algo de penhor, vai-se levantar, faz-se o resgate. Um advogado da Figueira da Foz contou-me que uma empregada dele dizia "o dinheiro não é de quem o ganha, é de quem o poupa". "Uma senhora com a terceira classe", sublinhava ele. Não sei mais do que isso sobre a mulher, mas dele sei que era filho de pescador, que um dia o pai não voltou da faina quando era esperado e que se lembrava de ir para a praia de madrugada com a mãe e a tia mais as mulheres dos outros a pensar que podiam estar viúvas, e que de madrugada gritaram contra o mar e Deus e a vida e o futuro que não sabiam, choraram aquela forma de desespero que não compreendemos, aquela em que não há culpa, só o reconhecimento da nossa derrota no jogo contra o acaso. E gastar dinheiro é isso, é uma certeza recorrente e acessível, como uma bebedeira, uma oração ou a Construção do Chico Buarque. O vício ocidental de gastá-lo não tem a ver com o que se compra, mas com a certeza que comprar implica. Certezas num mundo caótico são coisas raras. E caras também.

Cais

British Bar. O retrato do Cardoso Pires lá em cima, e eu perguntando-me se ele terá estado sentado na mesma cadeira, bebido uma Budweiser checa de pressão porque não têm de garrafa e não há por que sentir pena. De certeza que não estava a dar luta livre feminina  num televisor de canto de parede, que os empregados não eram os mesmos - ou será que estava, ou será que eram? Antes, passear ao lado do Cais do Sodré, ouvir o ar atravessar os respiradouros no chão, ser respingado pelos pingos daquela respiração de animal velho que luta contra a morte, lutou todo o tempo contra a morte. Lá ao fundo, a água muda de cor no momento em que deixa de ser da terra, em que se liberta e transforma em algo de selvagem e elementar que homem algum tocou. Imaginar nadar através dela, o momento em que o corpo muda de água para água. Os barcos ao longe, levando pessoas de uma margem para a outra e eu pensando: "nunca fui à outra margem de barco". Mas, pensando melhor, "nunca" também é longe demais.

SÓ HOJE: PORTES DE GRAÇA NA BUBOK



Hoje, sexta-feira dia 16 de Abril, os portes de envio na Bubok são de graça. Aproveitem para encomendar o meu livro Viagens na Minha Peste por quase metade do preço!



Mas, já agora, se não o fizerem... comprem este, que é provavelmente do melhor que lá anda.