Tou ficando atoladinho

Um autocarro de São Paulo não passa em muitas ruas. Primeiro, porque se é autocarro em São Paulo é ônibus. Depois, porque as avenidas são tão longas que é mais fácil fazer piscinas do que começar o corta-mato. Subir e descer a Paulista à procura da minha paragem foi um passatempo muito agradável para a minha manhã.

Por falar em Paulista, depois de me ter sentido como um alcoólico no meio da maior adega do mundo, prometi a mim mesmo que não voltava à Livraria Cultura. Mas aquela autobiografia do Tom Zé estava mesmo com cara de quem não se ia ler sozinha.

Um tecnólogo é um técnico, pereba é um atleta mau, não tem choro nem vela é não ter alternativa, um dia pode ser pipi se for problemático e isso é massa véio se for bom, porque se for mau é paia - assim parece que os traficantes de droga definiram. Os polícias andam com rojões, mas quem comem são os outros.

Felizmente, encontrei café numa lanchonete - muito insípido e muito doce, mas já estava prevenido. O senhor era simpático, principalmente porque lhe comprei pão de queijo, uma linguiça, um pastel de carne dentro do que sabia a pão de leite e uma paçoquinha. O jet-lag vai melhorando dia após dia. Hoje o meu cérebro já só estava três horas adiantado.

Brasil via Alemanha

A ver a fila que se fazia para o avião em Frankfurt, percebi: isto é outra gente. Todas as cores, tamanhos e expressões e todos a falarem a mesma língua, a partilharem o mesmo país. Num guia que li há dias, dizia-se que o passaporte brasileiro é dos mais cobiçados no mercado negro, porque qualquer um passa por brasileiro. É algo que eles têm em comum com os habitantes do Vaticano, tirando o facto de estes usarem hábitos e não treparem com adultos. É algo que não têm em comum com os habitantes de Frankfurt, que são invariavelmente mulheres, mal-dispostas e trabalhadoras em estações e aeroportos. Nunca vi gente com tão má vontade de dar indicações, esclarecer, ser simpático. E gostava que acabassem já com o mito de que os alemães são um povo muito organizado. Eles não são organizados, eles organizam é tudo segundo uma lógica que está muito clara na cabeça deles, tão clara que questioná-la é questioná-los a eles. Mas os homens não são tão maus. Enquanto esperava a ligação, comi um gulash, umas salsichas (frankfurter, evidentemente) com salada de batata, uma cerveja e um expresso, tudo servido por um homem tão simpático que não hesitou em trazer-me tudo ao mesmo tempo. Talvez sejam assim os frankfurtianos: prestáveis, mas toscos. Isso, claro deve ser chato para as mulheres. Assim fica tudo explicado.

Em trânsito

Tu gostas da viagem. Sempre gostaste de aeroportos e estações, porque um aeroporto é sempre um local onde alguma coisa começa, seja a viagem ou tudo aquilo que vem a seguir. Quando vais levar alguém, gostas de ficar sempre mais um bocadinho, antes ou depois, só para ver as pessoas passar, notar-lhes as expressões e pensar no que estará a começar para elas. O problema, portanto, não é a viagem, mas o facto de a cabeça não parar e de te estar constantemente a anotar os fins. Esta é a última viagem de Metro. Este é o último jantar no restaurante aonde costumas ir quando estás sozinho. Esta é a última vez que passas a esfregona no chão de casa. A última coisa que entra nas malas, a última coisa a imprimir, a última mensagem. Esvazias a carteira, tiras tudo aquilo que não te vai fazer falta ou já estava a mais e ia continuando lá por inércia, e pensas "Metade das coisas que trago comigo só servem para deitar fora" e tu pensas "O que mais poderia caber nesta divisão?". Trabalho? Afectos? Memórias? Mas depois há o momento em que paras de pensar e as coisas deixam de acabar. É quando a viagem começa. E por isso mesmo esta é a última palavra deste texto.

O criado brasileiro

Naquela fase de me ir orientando, deparo-me com o seguinte anúncio: O quarto é bem iluminado, tem uma cama box casal, uma mesa para tv e um criado mudo. Luz e mesa para tv é claro; cama box casal também se percebe; mas criado mudo?

Saber que é uma mesa de cabeceira é muito menos excitante do que  a perspectiva de, no escuro, ir depositando porcarias na mão de um desgraçado que não consegue dizer "que merda do trabalho".

Papa

Um grupo de católicos espanhóis teve um acidente. O autocarro que os trazia a Fátima e ao Papa Bento XVI ia entrar numa estação de serviço, falharam-lhe os travões e espetou-se contra o rail de protecção. Aparentemente, iam todos a rezar e o meu comentário irónico foi logo se calhar, não estavam a rezar bem, mas o líder do grupo apareceu então a dar a perspectiva também razoável de que foi graças à Senhora de Fátima que não houve consequências de maior, para além de uma rapariga com um hematoma nas costas e outra que teve uma quebra de açúcar. Assim, só essas duas raparigas estariam a rezar mal. A Senhora de Fátima não os livrou de serem espanhóis, mas isso já é outra conversa. Ironias à parte, não se pode ter senão respeito por quem é capaz de fazer centenas de quilómetros, castigando corpo e alma, para se despojar, para suplicar algo com toda a força possível. Os putos dos Tokio Hotel têm muito a aprender.

Monção

Esta terra é três cores: verde, castanho e cinzento. Vêm das árvores, da vinha, da terra e do céu. Se fecho os olhos e me quero lembrar, a imagem é a de encostas cheias de pinheiros e fasco, atravessadas por caminhos de terra batida que, do que devem ter custado a conquistar, bem podiam ser feridas abertas no chão. O som da televisão ao meu lado ou do rádio na cozinha a atravessarem o silêncio enorme, aquele em que aprendi a pensar, a inventar histórias na minha cabeça, a fechar-me. Sabemos que estamos todos sozinhos no meio deste silêncio, somos desconfiados. As ligações com os outros são acidentais, corpos que se encontram ao calhas no meio de percursos aleatórios. Uma vez disseram-me que Torga chamou ao Minho o inferno verde, mas isso não está certo. O Inferno deve estar cheio de ruído. Em Monção não pára de chover.

A vigília

Quem escreve online há já uns anos sabe que esta coisa de se justificar silêncios é desculpa de mau postador. Em blog recente, então, é como não dar de comer a um bebé, a versão Internet da incubadora de Santana Lopes. Mas não tive outra hipótese. Nas últimas três semanas, o meu mundo tem sido uma sucessão de contratos, marcações, cartões, assinaturas, filas, senhas, vistos, passaportes, seguros, malas, cerimónias, e-mails, bilhetes, pagamentos, vacinas, viagens, talões, recibos e facturas. Aparecem-me flutuando, como se eu estivesse num sonho, sem conseguir prever a ordem com que preparar as placagens. E, ainda assim, vou ouvindo os anos dizer-me na cabeça não te canses com a preparação, porque vais precisar de força depois ou aguenta-te, fofo, tens de ganhar o céu de alguma forma. Nos momentos mais baixos, em que o stress e o cansaço me fazem doer os olhos se os viro muito para os lados, olho para o que aqui está e pergunto vale a pena só para poder responder logo que não tenho outra opção, porque, se queres entrar no jogo, tens de saber que podes chegar ou não ao outro lado e, se tiveres sorte, chegas esmurrado e a sangrar dos pés à cabeça, mas com a quantidade de língua suficiente para poderes dizer consegui. Não tinha de ser assim, talvez, mas se não for a doer não sentias nada. Não vou estar aqui com merdas, podia dizer que o melhor que faço é escrever, mas o que quero dizer não é bem isso, é que, do que fiz, o melhor foi a escrever. A Estrada Curva, A Peste, o João Ícaro, A Chorona, As Portas, a Agenda, o Cidadão, a Passagem, o 13 de Março. Algumas tu conheces, outras não, nenhuma é perfeita, mas em todas houve sempre pelo menos uma coincidência entre o meu gosto e o de outra pessoa qualquer. E esse apreço é uma coisa tão rara, um modo tão profundo de conseguires comunicar com outrem que nem conheces e nem vais conhecer, que tu sabes que não queres procurar mais do que isso: mais oportunidades de perceber que o caminho que os outros fazem também passou pelo que fizeste dentro de ti. É por isso que vou. Se parar, não valho a pena para ninguém. Pelo menos, não a valho para mim.

Uma história pessoal

Uma vez, quando eu era pequeno mas já tinha idade para ter juízo, o meu avô, que tinha andado pelos órgãos autárquicos da vida, fez-me prometer-lhe que não me meteria na política. De uma maneira ou de outra, sempre lhe fiz a vontade. Assumo opiniões, mas não aspiro a jobs. Mando-me a discutir, mas não assino cédulas nem pagarei quotas. Concordo ou discordo e renego a disciplina. E a verdade é que ele tinha razão, pois há-de haver sempre um cargo político a mais à face da terra. Num mundo perfeito, poderiam entender a derradeira afirmação? Poderiam. Mas não seria a mesma coisa.

Tu, baterista com quem falei ontem, tens razão, porque o rock



(A famosa pose "quem és tu, romeiro?"; ver aqui por volta dos 4m12)

é mesmo a celebração cega do indivíduo, a coisa mais egoísta, manipuladora e incrível. Sim, porque que mais se pode chamar a um som pensado para conduzir o público através de pulsões à celebração de um gajo com esta entrega, seja ele um génio chamado Iggy Pop ou um idiota saltitante chamado David Lee Roth? Isso é o que muitas vezes se esquece quando se faz uma banda, quando três a cinco putos decidem entregar-se ao som e à arte e se esquecem de que é preciso quem dê som e é preciso quem dê show. O rock tem de levar à idolatria, à entrega cega a alguém que consiga pôr toda a gente a olhar para ele e, durante umas horas, deixar todos mais à beira de um êxtase desconhecido. Se Iggy Pop aqui tivesse querido seguir em frente para a pilhagem, tinha-o conseguido. O concerto rock é - deve ser sempre - uma espécie de sucedâneo para a experiência do motim. E por isso é que é preciso ter cuidado com as flores e as luzes e as maquilhagens pipis, porque isto não é para ser bonito, não é para ser respeitável, não é para ser animado - é para ser do caralho. Acho que concordamos. Que tudo te corra bem nos teus projectos, compres lá a Ludwig em Braga ou compres uma de raiz ao contacto que te deram. Sê do caralho e vai tudo correr bem. Agora vou só ali comer uma sandes de manteiga de amendoim e já volto.

OS NANDAMENTOS

(escrito para o espectáculo dos Social Smokers de 22 de Abril)

1. Não afagarás os joelhos do próximo.
2. Não falarás com mulheres de barba.
3. Não criarás documentos do Microsoft Word que precisam de conversão para serem lidos por versões mais antigas do Office.
4. Reconhecerás sempre o dever de te rires da classe política.
5. Não saxofonearás o Zé Lencastre do próximo.
6. Amarás as pessoas acima de todas as coisas.
7. Babar-te-ás durante o sono.
8. Orgulhar-te-ás da distribuição dos teus pêlos corporais.
9. Honrarás a memória dos teus animais de estimação falecidos.
10. Não Sentinelarás o Silva do próximo.
11. Viajarás principalmente de transportes públicos.
12. Nunca aprenderás a estacionar um carro devidamente.
13. Andarás sempre com o livro de recibos atrás.
14. Pendurarás nos ombros tudo o que conseguires.
15. Não Cortezarás a próxima do Alex.
16. Farás xixi e irás para a caminha.
17. Nunca saberás explicar muito bem o que fazes na vida.
18. Nunca saberás muito bem o que fazes na vida.
19. Aprenderás muita coisa que te vai sempre ser útil.
20. Não Biruarás as Queijas do próximo.
21. Serás um bom rapaz que todos os dias fala com os pais.
22. Serás um mau rapaz que todos os dias tem pensamentos impuros.
23. Serás um homem assim-assim.
24. Não calarás o que tens para dizer, mas nunca dirás o suficiente.
25. Não Joãopedroarás os vídeos do próximo.
26. Respeitarás todos os homens, até o Filipe Fonseca.

JVN na Rua Larga n.º28

Já saiu o novo número da revista Rua Larga, em que colaboro com o texto Lisboa, 13 de Março de 2010.

As repetições

O dia começou no Ministério da Administração Interna, onde umas senhoras muito simpáticas me fotografaram, recolheram impressões, registaram assinatura, receberam pagamento, passaram recibo. Encontrei lá duas pessoas que iam para o Brasil. Fomos tomar café. Falei da língua geral, a tal que se falou no Brasil na época dos Bandeirantes e que misturava o português com o tupi, a tal que o Marquês de Pombal proibiu, a tal que tem o mesmo nome da editora do José Eduardo Agualusa. Pensei nisso nesse momento e apercebi-me pela primeira vez como o José Eduardo Agualusa tem tudo a ver com o seu nome. À tarde, fui escrever para o Kaffeehaus. Depois de uma hora, olhei para o lado e lá estava o José Eduardo Agualusa, numa mesa ao fundo, conversando. E eu pensei "olha que engraçado". Fiz o que tinha a fazer, fechei o computador, segui para a Fnac para gastar algum tempo. Enquanto tentava perceber os títulos de livros mais ridículos das últimas fornadas, apareceu-me o José Eduardo Agualusa, também a cirandar pelo meio dos livros. E eu pensei "olha que engraçado". Logo encontrei um amigo que trabalha no Governo Civil e que, portanto, tinha acabado de passar à frente do Kaffeeehaus. Procurava uma prenda para uma amiga de uma colega de trabalho. Ajudei a procurar a prenda e, quando estávamos a sair da Fnac, o último livro que vi tinha uma citação do José Eduardo Agualusa. E eu pensei "olha que engraçado". À noite, voltei a falar do Brasil com mais algumas pessoas, mas não repeti a história da língua geral. Não voltei a ver José Eduardo Agualusa.

O dinheiro

Sempre que gasto dinheiro, percebo: nada é mais fácil. De uma maneira ou de outra, se não há notas há cartão, se não há cartão dá-se algo de penhor, vai-se levantar, faz-se o resgate. Um advogado da Figueira da Foz contou-me que uma empregada dele dizia "o dinheiro não é de quem o ganha, é de quem o poupa". "Uma senhora com a terceira classe", sublinhava ele. Não sei mais do que isso sobre a mulher, mas dele sei que era filho de pescador, que um dia o pai não voltou da faina quando era esperado e que se lembrava de ir para a praia de madrugada com a mãe e a tia mais as mulheres dos outros a pensar que podiam estar viúvas, e que de madrugada gritaram contra o mar e Deus e a vida e o futuro que não sabiam, choraram aquela forma de desespero que não compreendemos, aquela em que não há culpa, só o reconhecimento da nossa derrota no jogo contra o acaso. E gastar dinheiro é isso, é uma certeza recorrente e acessível, como uma bebedeira, uma oração ou a Construção do Chico Buarque. O vício ocidental de gastá-lo não tem a ver com o que se compra, mas com a certeza que comprar implica. Certezas num mundo caótico são coisas raras. E caras também.

Cais

British Bar. O retrato do Cardoso Pires lá em cima, e eu perguntando-me se ele terá estado sentado na mesma cadeira, bebido uma Budweiser checa de pressão porque não têm de garrafa e não há por que sentir pena. De certeza que não estava a dar luta livre feminina  num televisor de canto de parede, que os empregados não eram os mesmos - ou será que estava, ou será que eram? Antes, passear ao lado do Cais do Sodré, ouvir o ar atravessar os respiradouros no chão, ser respingado pelos pingos daquela respiração de animal velho que luta contra a morte, lutou todo o tempo contra a morte. Lá ao fundo, a água muda de cor no momento em que deixa de ser da terra, em que se liberta e transforma em algo de selvagem e elementar que homem algum tocou. Imaginar nadar através dela, o momento em que o corpo muda de água para água. Os barcos ao longe, levando pessoas de uma margem para a outra e eu pensando: "nunca fui à outra margem de barco". Mas, pensando melhor, "nunca" também é longe demais.

SÓ HOJE: PORTES DE GRAÇA NA BUBOK



Hoje, sexta-feira dia 16 de Abril, os portes de envio na Bubok são de graça. Aproveitem para encomendar o meu livro Viagens na Minha Peste por quase metade do preço!



Mas, já agora, se não o fizerem... comprem este, que é provavelmente do melhor que lá anda.

Amador

Hoje estive na Loja do Cidadão a pensar no tempo fenomenológico e como os minutos passam tão devagar quando se está à espera e tão depressa quando se age. Por isso, decidi sair e agir e, portanto, fui a um sítio aonde nunca tinha ido: à livraria do Teatro Nacional D. Maria II. Não é o sentido mais vantajoso para a expressão "tempo é dinheiro", mas encontrei a revista n.º3 dos Artistas Unidos, de que andava diletantemente à procura desde que em 2007 fiquei de boca aberta a ver a peça Amador - e, não, isso não quer dizer que bocejei, mas que fiquei pasmado com aquele quase-monólogo e muito curioso sobre o modo como a peça estaria escrita. Depois de uns 15 minutos à procura nas coisas do Jon Fosse, lá descobri que a peça é na verdade de Gerardjan Rijnders, que eu nunca conheci, mas que de certeza possui um grande par de testículos, pois qualquer pessoa que escreva uma peça quase em verso que começa com a indicação "o texto representado pode divergir do texto publicado" e contém a didascália "(peter faz amor com a mãe, orgasmo)" só pode ter um grande par de testículos. E isso não impediu que ainda tivesse de voltar à Loja do Cidadão e esperar que umas 100 pessoas fossem atendidas até chegar a minha vez, orgasmos não incluídos.

"Introduction" ("Cruel Shoes", de Steve Martin)

Vais por uma estrada campestre. Está uma tarde tranquila. Olhas lá mesmo para o fundo da estrada e vês alguém a andar na tua direcção. Estás surpreendido por teres percebido uma pessoa a tão grande distância. Mas continuas a andar, não esperando mais do que um aceno amigável quando se cruzarem. Reparas que ele tem cabelo laranja e brilhante. Está mais perto - um fato de cetim branco com pontos coloridos. Mais perto - uma cara pintada de branco e lábios rubros. Tu e ele estão a cinquenta metros de distância. Tu e um autêntico palhaço com uma buzina, separados por vinte metros. Aproximam-se na solitária estrada campestre. Tu acenas. Ele buzina e passa.

Táxi Mistério

Fiz a viagem até Lisboa a dormir. Dois dias a trabalhar até tarde deram cabo de mim a um ponto de me encontrar perdido no meu cansaço, como se acordar de repente quando as luzes da auto-estrada me batiam na cara fosse emergir de surpresa em água gelada, vir à tona ganhar respiração quando já não se pensava sair. Foi nessa hipnose que entrei no táxi, indiquei o destino e me deixei ficar a ouvir a música que passava lá dentro, que não era nada que se assemelhasse a M80 ou Rádio Amália. Desculpe lá, ò amigo, isso soa muito bem. O que é?, e o homem olhou para mim pelo retrovisor e disse Isto é jazz-rock, tem 30 anos, o disco chama-se "Ripping Stones" e o músico é o Stanley Jordan. Para o caso, é irrelevante que Jordan só tenha começado a editar em 1982 e que não encontre nenhum título remotamente semelhante a esse na sua discografia - relevante é que o taxista, que andava depressa e tinha olhar de quem não é parvo nenhum, perguntou Gosta?, eu respondi que sim, ele continuou Então também vai gostar mais alto, e encheu a noite do Conde Redondo com finger-tapping.

A compostura

Ali atrás a televisão está a dizer que "temos de ser uns para os outros". Ao meu lado está o poster de um filme de que eu nem gostei acima de tudo, mas que pendurei porque sim, porque não há por aí posteres de filmes aos pontapés e este até é bonito, imita o estilo dos posteres de concertos psicadélicos dos anos 60 e está tudo onde deve estar. A janela tem a persiana aberta, mas vivo num quarto andar e ninguém me pode ver. Há um mapa semi-caído, dependurado da parede, mas só o vou ajeitar no domingo, porque esse é o dia que eu reservei para me preocupar com coisas assim. Segunda-feira preocupo-me com outras coisas, no domingo com essas e, de cabelo branco em cabelo branco, tudo se há-de compor, não?

A luta

Quem é que quer alguma coisa com a luta? Temos televisão, internet, jornais, livros, álcool, tabaco, tabaco-que-faz-rir, frigorífico que refresca tão bem a cervejinha, máquina de lavar roupa e loiça, carro, casa, sofá a condizer com os móveis da sala, aparelhagem, aquecimento-central. Luta? Lutar? Para quê?