abril 2019

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Sobre uma certa tendência da cinefilia

Ultimamente, parece-me que acontece uma atitude de recusa em vários cinéfilos que não combina muito com a abertura e disponibilidade que considero serem qualidades dessa condição.

Digo "condição", sim, porque quem ama imagens em movimento ama-as de forma inexplicável, com o fascínio de uma criança que vê um mágico fazendo truques no circo, e sabe muito bem o que é estar num bar cheio de gente e, de repente, descobrir-se em transe a olhar qualquer coisa que passa numa televisão ligada.

Os contornos dessa recusa delineiam-se quando uma pessoa não vê A Serbian Film, não porque considera seu conteúdo mais impressionante do que está disposta a aguentar, mas porque acha que ele é apologia de violência pela simples razão de a mostrar.

Ou quando a pessoa não vê Woody Allen, não porque acha que seu humor é chato, mas porque considera que vê-lo é um apoio ao diretor contra os seus acusadores ou que isso a inscreve numa narrativa em que ela não quer ser inscrita (tipo, "vejo filmes para me divertir, não para entrar numa torcida").

Eu argumento que, a menos que a pessoa sofra de uma falta de personalidade que a torna absurdamente influenciável, isso é uma atitude sem sentido.

Reparem: não quero dizer que qualquer pessoa é obrigada a ver o que não quer ou que tem que assistir qualquer coisa.

Eu quero dizer que o cinéfilo não é qualquer pessoa.

Acredito que o cinéfilo acredita no cinema como catarse e, por isso, também vê filmes para se colocar fora de si mesmo, ir psicologicamente aonde normalmente não vai e assim expandir os seus sentimentos e ideias.

Ou seja, eu defendo que uma atitude fundamental do cinéfilo é se aventurar a ver filmes que o fazem sentir-se perdido, indignado, enojado ou com medo para que assim possa pensar melhor o mundo e as pessoas com quem o compartilha.

Ver Henry - Retrato de um Assassino faz-nos pensar sobre violência, mas não é em si mesmo um ato de apoio à violência.

Ver A Centopeia Humana faz-nos pensar sobre psicose, mas em si não nos torna psicóticos ou apologistas dos atos cometidos por quem o é.

Ver O Rei da Morte faz-nos pensar em necrofilia, mas não é sinônimo de considerar a necrofilia recomendável.

Ver Charlotte for Ever faz-nos pensar em incesto, mas não implica uma nossa tolerância com o incesto.

Não defendo um espectador passivo. Ser espectador é um ato extremamente político.

Porém, negar é temer o que se nega, por um lado, e limitar a sua própria capacidade de pensamento crítico. O cinéfilo assiste para pensar, entender e criticar e não tem medo de o fazer.

Quem diz "imagina o absurdo, tentar entender os sentimentos de um pedófilo!" nunca verá a Lolita de Kubrick nem lerá a Lolita de Nabokov e não conseguirá pensar criticamente sobre a sujíssima complexidade do crime da pedofilia.

Quem diz "imagina o absurdo, tentar entender a visão de Hitler" nunca verá Leni Riefenstahl e não conseguirá entender o lado estético do nazismo, o porquê de ele ser tão odioso nem a tentação que ele suscitou e suscita ainda.

Em suma: posso exigir desculpas a alguém por tudo o que essa pessoa fez, mas nunca lhas exigirei pelos filmes que ela viu.

Gabin de 36 a 39

Já aqui falei de Che Strano Chiamarsi Federico, o último, desequilibrado e ternurento filme de Ettore Scola, que homenageia o seu amigo de toda a vida, Federico Fellini. Há nele uma cena muito engraçada, em que a mãe de Marcello Mastroianni interpela Scola e, exaltada, lhe pergunta por que o seu querido filho fica tão feio nos seus filmes enquanto o colega Fellini sempre o deixa tão bonito.

A mãe de Jean Gabin poderia ter perguntado algo parecido a Jean Renoir e a Marcel Carné, que construíram o ator na segunda metade dos anos 1930. Em Renoir, Gabin é simpático e atraente. O espectador cria empatia com ele mesmo que esteja a interpretar um psicótico com tendências homicidas, como em La Bête humaine, e as personagens que ele interpreta parecem querer estar acompanhadas ou, pelo menos, parecem estar rodeadas de pessoas que querem a sua companhia.


Nos filmes de Marcel Carné, Gabin torna-se obscuro e lunar, interpretando personagens doloridas que querem ficar sozinhas (um desertor em Le Quai des Brumes, um homicida entrincheirado em Le Jour se lève) ou, no máximo, com uma companhia feminina que distraia dos tormentos. Ele é acossado por dilemas de redenção, que nunca lhe chegará. As histórias de Carné são descidas fatais por escadarias de pathos: nelas, os olhos claros de Gabin enchem-se de sombras.


Sabendo que não se trata de escolher um ou o outro, eu sinto Renoir mais realista do que poético e Carné mais poético do que realista, o que poderá ter a ver com a força de Jacques Prévert no texto. O estilo de Renoir serve as personagens, enquanto que as personagens de Carné servem o estilo do diretor. Carné paira sobre os seus mundos; Renoir mergulha a fundo neles. 

Num ou no outro, Gabin é sempre uma presença na tela que nos hipnotiza e fascina - mas não é o mesmo.