A moral e o travelling de Kapò

Há já muito tempo que li a frase tutelar que Godard soltou num debate sobre Hiroshima Mon Amour, de Alain Resnais:


Um travelling é uma questão de moral.*

Pela mesma época, li a crítica devastadora de Jacques Rivette sobre um filme obscuro, curiosamente com a mesma atriz de Hiroshima Mon Amour:


Vejam em Kapò o plano em que [Emanuelle] Riva se suicida, atirando-se sobre o arame farpado electrificado: o homem que decide fazer, nesse momento, um travelling para reenquadrar o cadáver em contra-picado, tendo o cuidado de colocar a mão erguida num ângulo preciso do enquadramento final, esse homem só tem direito ao mais profundo dos desprezos.*

Foi preciso ler Serge Daney e mais algumas coisas para entender que o que estava em causa era a espetacularização da guerra e do Holocausto. Um movimento de câmera - que também é um reajuste do olhar do espectador - não vale apenas pela sua beleza, mas pela sua adequação ao que mostra. Kapò é um filme sobre um campo de concentração: será moralmente adequado embelezar o horror para fazer um enquadramento bonito? Disse Daney sobre o plano de Kapò:


[O travelling] quer ser belo, [mas] não é - ou, mais claramente, ele é belo, mas não é correto.*

Daney, porém, admite uma coisa: ele nunca viu o filme.
Serei eu o único a nunca o ter esquecido, apesar de nunca o ter visto? É que eu nunca vi Kapò mas, ao mesmo tempo vi-o. Vi-o porque alguém - através das palavras - mo mostrou.

Não tenho nada contra Daney, mas há anos que vivo com a curiosidade de ver o famigerado plano. Hoje, graças às maravilhas da Internet, matei essa pendência. Aqui está, para todos verem também.

https://www.youtube.com/watch?v=pCud43zOqAM