SPOILER: Zero de Conduta (Zéro de conduite, 1933)

Vi este filme depois de ter revisto A Vida de Brian, o que me deixou pensando: o banimento de um filme significa que ele será considerado obra-prima décadas depois? Será esse o destino da peça recentemente banida em Pernambuco?

Zero de Conduta foi uma grande influência de Truffaut em Les quatre cents coups. Vejo-o integrando uma linhagem francesa exímia em filmar e mostrar os dilemas de crianças e adolescentes, onde incluo também NapoleãoEntre les mursÊtre et avoirLes Choristes, Un sac de billes. Filmar com crianças é difícil, mas está cada vez mais claro que os franceses criaram uma tradição e dominaram essa arte.

Jean Vigo era filho de um anarquista espanhol que morreu torturado e talvez isso explique o simbolismo que se monta desde muito cedo: os alunos são bagunceiros, mas espontâneos, solidários e bons, enquanto os professores e diretores já se deixaram corromper pela autoridade da vida adulta.

  •  Um dos alunos tem um ataque de sonambulismo no dormitório. Os outros são solidários com ele, como se eles soubessem quão precioso é manter um sonho no meio de uma realidade dura.

  • Há um adulto que está mais próximo dos alunos do que dos professores: o jovem monitor, que, como diria Capitão Nascimento, ainda não entrou "no sistema". Ele imita Carlitos, brinca, persegue uma paixão no meio de um passeio escolar, faz um desenho de Napoleão que vira uma personagem animada. Tudo é possível para quem não perde a imaginação, parece dizer Vigo.

  • O diretor da escola, a figura de maior autoridade, é um anão. Na sua primeira aparição, vemo-lo guardar o seu próprio chapéu sobre uma redoma de vidro. Ou seja, a autoridade é um adorno que se adquire e se guarda para ser exibido. Há lugar para a ostentação, mas não para o sentimento - por isso, mais tarde, o diretor censura alunos por serem amigos, dizendo que algo assim não pode ser.

  • Um professor gordo e asqueroso, que fica cheirando as coisas sem motivo, toca inapropriadamente nos alunos. Um deles, claramente farto de aguentar o velho, fala que ele é "um monte de merda". Estamos falando sobre abuso infantil em 1933 e mostrando como a consciência de que ele o é existe desde sempre. Nunca mais aceitem o argumento "antigamente era diferente" para nada.

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O que é essa câmera lenta, meu Deus? As penas voando como flocos de neve. Os alunos marchando como soldados em plena campanha militar. Que coisa bela.
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Durante a comemoração, eu penso em Fellini. Eu sei, eu sei: penso em Fellini muitas vezes. Mas é sério: só falta uma multidão ruidosa fazendo uma procissão para ser uma cena do mestre italiano. Repararam que a audiência é composta por bonecos? Este é só mais um dos momentos em que o filme nos diz que não estamos num espaço naturalístico ou concreto, mas mental, uma mistura assumida das memórias de Jean Vigo do colégio interno com as fantasias de como poderia ter sido. Depois dos filmes franceses desta época que já vi, parece-me claro que a influência surrealista e o seu tom onírico pesado foram marcantes, ainda que aqui o sonho venha filtrado pela memória.

No final, os alunos revoltosos são vitoriosos. Mas será que são mesmo? Enquanto eles escalam um telhado-montanha e festejam a sua vitória, os adultos observam-nos, protegidos no conforto de uma sala e com um certo orgulho paternalista. Parece que, a qualquer momento, eles podem sair para interromper a festa. Parece que eles pensam "oh, como nós também já fomos assim" e que o que espera os jovens do outro lado é transformar-se no que eles mais odeiam. No entanto, esse momento posterior já não entra no filme: ele é um recorte e a lembrança boa daquele dia em que tudo parecia poder ser diferente

Yorumlar

  1. […] faz-nos entender que estamos em pleno espaço mental, conceito ao qual já aludi falando sobre Zero de Conduta e de que falarei melhor […]

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  2. […] após os surrealistas. Falei dela, sem desenvolver, quando escrevi sobre A Concha e o Clérigo, Zero de Conduta e Ganga […]

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