SPOILER: O Anjo Azul (Der Blaue Engel, 1930)

Confesso que estava pronto para não gostar de O Anjo Azul. Sempre pensei que o filme fosse pouco mais do que um veículo meio bobo para lançar Dietrich. Além disso, acho que apenas vira um filme de Sternberg, num momento particularmente ensonado de um workshop. Ou será que era Lubitsch? Bem, já entenderam.

O ator principal chama-se Emil Jannings e, ao que parece, foi o primeiro vencedor de um Oscar de representação (se bem que há quem diga que ele perdeu a votação para um cão). A carreira do homem tinha esfriado e ele esperava que O Anjo Azul fosse o seu regresso glorioso. Talvez por isso, Jannings não gostava de Dietrich, que lhe roubou o filme. Acho injusto dizer isto, pois o ator está ótimo. Também dizem que Dietrich roubou à mulher de Sternberg os afetos do diretor, mas isto parece-me publicidade do estúdio para atrelarem a imagem de femme fatale à atriz.


Depois da série de filmes mudos que vi para este caderno, com edições e fotografia primorosas, O Anjo Azul começa parecendo extremamente careta. Apesar de uns telhados tortos bem expressionistas - afinal, isto é a UFA - a primeira cena na casa do Professor, em plano geral,  com a empregada descrevendo o que vê ("livros empoeirados, bitucas de cigarros...") lembrou-me os enquadramentos frontais dos primeiros filmes mudos e fez-me gritar aquela primeira regra que qualquer roteirista aprende: "show, don't tell!". O que eu não sabia era que Sternberg, cineasta criado na América que foi à Europa gravar este filme durante um período de trabalho tépido, está nos segredando que o seu estilo serve para mostrar as personagens e os atores, não para se mostrar. O trabalho será bem sucedido.

Há alunos rebeldes e hormonais; uma lição sobre Hamlet logo no início; e um submisso assistente de professor chamado Angst. Tudo isto fez-me pensar que talvez o filme não fosse o divertimento musical tontinho que esperava.

O Anjo Azul é um cabaré/ semiprostíbulo onde Dietrich/Lola Lola é uma estrela em pelo menos uma das áreas. O professor descobre que os seus alunos passam a noite lá e decide ir espreitar o show de Lola. Afinal, um homem não é de ferro, e o pássaro dele tinha morrido nesse dia, então é preciso afogar as mágoas. Mas, chegado lá, o professor prefere perseguir os seus alunos à bengalada. Então, professor?!

Lembrei-me de uma frase de Alberto Seixas Santos, um dos fundadores do cinema novo português: "o cinema é mulheres bonitas fazendo coisas". Pelo menos aqui a frase faz sentido. Enquanto Lola se troca, o professor espreita-a. O aluno, escondido, espreita-a. Sternberg, fascinado por Dietrich, espreita-a. E o público, claro, espreita-a. Isto revela a chave para entender este filme: um jogo voyeurístico e fetichista e um vaivém entre o que é espetáculo/palco/público e o que é privado/íntimo.

Entendam que, sim, Dietrich claramente está aqui para ser olhada. Porém, a sua personagem Lola sabe do seu poder e usa-o em seu favor. Dona de si mesma do início até ao fim, ela é sujeito sexual, não um objeto.

As personagens são tipos saídos do teatro popular: o professor, a cantora, o mágico, o palhaço, os alunos, o policial. Mas o professor é a figura com mais dimensões. A morte do seu pássaro marca a morte de sua antiga vida. O seu idílio com Lola acaba com a sua caretice; o homem do intelecto deixa-se tomar pelo sentimento. Mas também o faz perder o respeito de seus alunos e colegas e a sua posição na escola. O plano em que ele percebe que seu futuro é diferente do que se adivinhava, em que a câmera recua para mostrar as cadeiras desertas de alunos, é revelador: escolhendo a sua liberdade íntima, perdeu a sua posição pública.

A momentos, vai aparecendo a figura silenciosa e lazarenta de um palhaço. Ninguém fala com ele, ele não fala com ninguém; é invisível, insignificante, quase fantasmagórico. Pensei talvez represente o público, ou Deus, ou um anjo, ou o destino. Mas estava enganado. O professor casa com a cantora e perde tudo. Rapidamente, começa a ganhar a vida vendendo os postais dela, os mesmo que, no início do filme, ele pegara os seus alunos vendo. Passa as meias dela, veste-a, ajuda-a com a chapinha do cabelo. Numa sequência brilhante, Sternberg mostra como o tempo passa, com as folhas de calendário ardendo; e, no plano seguinte, vemos o professor transformado num novo palhaço. Será que o palhaço anterior era um antigo marido ou amante de Lola? Não é explicado (o primeiro palhaço some de um momento para o outro), mas também não precisa ser explicado, porque está claro: este filme não é convencional ou careta; ele é, sim, uma bela obra sobre o fetiche de dominação e submissão.

A trupe volta à cidade natal do professor e ao Anjo Azul. Entretanto, Lola enrola-se com um Homem Forte e leva-o para o seu quarto. O professor palhaço recusa-se a atuar, mas basta uma ordem dela para o fazer mudar de ideias. Porque não deveria, afinal? Aquela humilhação é tudo o que lhe resta.

O professor palhaço sobe ao palco e todos riem dele: os seus antigos alunos, colegas, vizinhos. Louco, ele abandona o palco, ataca Lola, é imobilizado. Desfigurado, cambaleante, ele sai do teatro. Ainda vê Lola, que aparece pela primeira vez vestida de preto, como uma viúva. O professor vai até à escola, entra na sala onde dava aulas e desfalece na sua antiga cadeira. Ouvimos o sino da torre do relógio, que já tocara antes, mas nunca pareceu tão fúnebre. De novo, a câmera recua para mostrar as cadeiras, mas, desta vez, elas não estão vazias para uma aula: estão vazias para um funeral.