SPOILER: La Coquille et le Clergyman (A Concha e o Clérigo, 1928)

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  • Estava pronto pra entrar nos anos 30 e nos filmes sonoros, mas uma leitura sobre as possíveis influências de Buñuel para Un Chien Andalou L'Age d'Or levaram-me a retroceder a 1928, a um filme tão intrigante que a sua exibição terá sido proibida na Grã-Bretanha depois de uma avaliação tão odiosa quanto hilariante do censor: "se ele tem um sentido, com certeza é reprovável!".

  • A Concha e o Clérigo trata das alucinações eróticas deste último, que disputa uma mulher com um militar. A certo momento, o clérigo arranca a roupa da mulher, descobrindo-lhe os seios, que, num fundido, são cobertos por conchas. Fica assim também descoberto o título: a concha como símbolo da sexualidade feminina; o clérigo como o homem que, apesar das vestes eclesiásticas, não resiste aos ímpetos sexuais e persegue a mulher sem parar, recebendo recusas e mais recusas. Se expandirmos a nossa visão, veremos a metáfora da Igreja e do Estado como atacantes implacáveis do corpo e da sexualidade femininas.

  • Entende-se então porque ele é apontado, não só como o primeiro filme surrealista, mas também como um dos primeiros filmes com uma mensagem feminista, com os avanços do protagonista masculino e objetificador sendo constantemente frustrados.

  • 90 anos depois, poderá ser injusta a observação de que, se a intenção era essa, talvez fosse mais interessante se a figura feminina fosse protagonista e atuante, em vez de uma musa quieta e enjoada que apenas reage ao protagonista masculino. Ainda assim, certamente essa observação não é tão injusta quanto aquilo que os surrealistas fizeram à diretora na estreia.

  • As versões sobre o que aconteceu variam. Há quem diga que os surrealistas não gostaram que a diretora tivesse tomado muitas liberdades com o roteiro do comparsa Antonin Artaud. Outros especificam: os surrealistas, esse Clube do Bolinha de vanguarda, eram misóginos e reprovaram o empoderamento feminino mostrado no filme. Há até quem diga que Artaud, descontente por não ter ficado com o crédito de "consultor técnico privilegiado", chamou os amigos para o defenderem. O fato é que os surrealistas foram em alcateia até à estreia e, mal o filme começou, começaram a gritar impropérios, xingando a diretora de "vache" para baixo.

  • É um filme cheio de fundidos e de imagens sobrepostas sem fronteiras claras, como as de um sonho. Um ano anterior a Un Chien Andalou, é talvez uma injustiça que este tenha superado A Concha e o Clérigo como o filme surrealista por excelência. A dificuldade para o espectador é que ele é apenas, e todo, metáfora visual: ele não dá nos dá chão, uma referência de onde observar. O trabalho nele é essencialmente visual e plástico.

  • Se Buñuel e Dalí eram cômicos, farsescos, escrachados, escandalosos, abertamente sexuais e anticlericais e trabalhavam em cima de símbolos universais e poderosos (a lua, o corpo, o escorpião), Artaud e Dulac são melancólicos, plásticos, subtis e meticulosos. Aqueles são mais teatro e estes são mais pintura. Dê-se o significado que se quiser a ela, há uma história em Un Chien Andalou e em L'Age d'Or. Aqui não. Aqui há colagem de vinhetas visuais, maravilhosas, mas que aparecem mais como se fossem palavras vertidas num poema do que um raccord de imagens.
    Um exemplo disso é o modo como Buñuel constrói as suas sequências pensando numa edição diegética e não apenas visual, como a de Dulac. En Un Chien Andalou, um homem começa caindo num apartamento, mas acaba caindo numa floresta. Dulac não faz esse tipo de brincadeiras. Se eles fossem clipes do Radiohead, Buñuel seria o de DayDreaming  e Dulac o de Street Spirit (Fade Out).

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    • Ou seja, há algo no surrealismo de Buñuel que o faz ter um apelo maior do que o de Dulac. Os seus primeiros filmes atraem-nos, não porque sintamos que qualquer coisa possa acontecer nos seus mundos, mas precisamente porque talvez nem tudo possa acontecer. São mundos com regras estranhas que não entendemos, mas que, intuimos, têm regras que queremos descobrir. A Concha e o Clérigo acontece principalmente dentro da cabeça dos seus criadores, o que imediatamente levanta uma muralha mais alta. Buñel parece oferecer-nos todo um mundo; Dulac parece oferecer-nos apenas ela mesma.


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  1. […] primeira vista, ele me lembra muito A Concha e o Clérigo: plástico, cheio de fundidos, enquadramentos fora do comum, o espectador sendo convidado a […]

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  2. […] principalmente após os surrealistas. Falei dela, sem desenvolver, quando escrevi sobre A Concha e o Clérigo, Zero de Conduta e Ganga […]

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