maio 2018

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Como Desenhar o Corpo Humano

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No domingo, dia 10 de Junho, vai ser lançada na Feira do Livro de Lisboa a antologia "Como Desenhar o Corpo Humano", organizada pelo Tiago Patrício e o José Trigueiros e editada pela Companhia das Letras. Reúne vencedores do prémio Jovens Criadores e inclui um conto meu.
Venci o concurso duas vezes, em 2005 e 2006, e o convite do Tiago fez-me reler esses textos.
Enquanto lia, perguntava-me quem era aquela pessoa longínqua que escrevia, o que lhe interessava, que coisas o rodeavam. Pensava no quanto mudei, e se mudei bem.
Quando o pdf chegou para revisão, vi nele os nomes de muita gente conhecida e fui visitado por memórias da minha vida em Portugal, nos blogs, em Lisboa. Tanta gente.
O André Murraças, que nunca conheci pessoalmente, mas que convidei como amigo aqui porque via-o fazer tanta coisa no teatro que me perguntava como era possível.
A Joana Bértholo, que conheci na mostra dos Jovens Criadores em Amarante e que já tinha no olhar a autora inteira em que se acabou por se tornar.
O bom José Mário Silva, que um dia enfiou um livro por baixo da porta da casa onde eu morava na Vila Berta mesmo sem nunca nos termos falado (só o fizemos anos depois, na Casa Fernando Pessoa).
O Miguel Marques, secreto, silencioso, que acompanhava em blog e em papel e que escrevia tão bem que o invejava com a inveja boa de quem queria escrever igualmente bem.
A Margarida Vale de Gato, que tantas vezes encontrava no metro ou pela Graça e que não sei se alguma vez reparou o quanto eu tentava parecer inteligente quando conversava com ela (e certamente falhando, imagino).
Reparo que a Sandra Silva fez parte do júri que, na época selecionou o meu texto. A Sandra, companheira do Alex, que me convidou depois para os Social Smokers. E está também por lá um texto do João Tordo, que, uma noite, depois de um espetáculo dos Social Smokers no Cais do Sodré, me disse que deveria tirar os óculos para atuar (adoraria, João, mas seria prenúncio de acidente grave).
E o livro ainda é prefaciado pelo Jorge Barreto Xavier, o diretor da DGArtes que me deu a bolsa INOV-Art que me trouxe para o Brasil e que por cá me deixou.
Ainda há mais autores, muitos mais, e imagino que esta antologia tenha feito todos pensarem no passado. Quando aceitei o convite, não pensava que ela estaria tão cheia das vidas dos outros e da minha. E como está.
A distância impede-me de ir a este lançamento, mas adoraria que vocês fossem, meus amigos.

SPOILER: La Passion de Jeanne d'Arc (A Paixão de Joana d'Arc, 1928)

  1. Eu já vira La Passion de Jeanne d'Arc, há muitos anos atrás. Gravei-a no 5 noites, 5 filmes, antigo espaço de cinema na RTP2 onde vi muitas coisas que explicam muito do que sou e do que gosto hoje. O que eu não sabia era toda a saga por que o filme passou para que hoje o consigamos ver em toda a sua glória. Escutem essa história:
    Por pressões de grupos nacionalistas franceses e de católicos, incluindo o Arcebispo de Paris, o corte original do diretor dinamarquês e protestante Carl Th. Dreyer foi para os porcos ainda antes da estreia. O negativo foi enviado para os estúdios da UFA em Berlim, onde foi destruído num incêndio, e só sobraram umas cópias perdidas aí pelo mundo. Dreyer conseguiu fazer um segundo director's cut utilizando planos alternativos, mas também ele ardeu, como Joana d'Arc, num outro incêndio.
    O filme ganhou fama de amaldiçoado, mas os cinéfilos nunca se assustaram com coisas de Deus e o Diabo, e lá iam encontrando e remontando uma ou outra cópia que achavam por aí. Estas versões incompletas só foram ultrapassadas em 1981, quando um faxineiro - sempre os faxineiros! - encontrou as bobinas da versão original, anterior a toda a censura, no armário... de um manicômio na Noruega! Como ela lá chegou, não se sabe - não há registros de alguma vez ela ter sido enviada para Oslo -, mas presume-se que o diretor do manicômio na época da estreia, que era historiador, a tenha pedido por especial favor e guardado cuidadosamente.(Neste momento, desejo pedir aplausos para o anônimo herói norueguês que uma hora pensou "ei, isto não parece coisa pra jogar fora". Obrigado, senhor!)

  2. Curioso que, apenas um ano depois de Napoléon, apareça outro filme sobre uma grande figura da história francesa. Não esqueçamos, estávamos entre duas guerras e os nacionalismos andavam exacerbados, o que pode ter levado tanto ao reatar dos conflitos como ao seu fim. Será que a Resistência teria sido o que foi sem também este cinema?

  3. Mas este não é o épico de Gance. Este é um filme sobre psicologias e os rostos como tradutores imediatos da alma e experiência humanas. E é um filme de Dreyer, um dinamarquês luterano, que não se incomoda com tratar o tema reformista da comunicação direta com Deus. Os clérigos menosprezam Joana quando ela descreve seu encontro com o Arcanjo Gabriel e bombardeiam-na com perguntas do estilo "você acha mesmo que Deus iria conversar com você?". Fica claro que o seu encontro com o divino tem que ser feito além da Igreja. Por isso, a morte de Joana representa, ao mesmo tempo, o fracasso do Catolicismo organizado: quem a mata dá-lhe aquilo que ela mais deseja, o bilhete de ida para junto do Criador.

  4. Uma mulher, julgada por um comitê de homens, que reprovam as suas roupas, humilham, roubam, maltratam, degradam, manipulam, torturam, sangram. Para todos os efeitos, é um filme atualíssimo.

  5. Renée Jeanne Falconetti interpreta uma Joana D'arc em estado de graça, como se estivesse em constante diálogo com Deus. Porém, ela não está serena. O seu rosto e aqueles olhos onde cabem todas as dores do mundo são fascinantes como lembrava: esta não é a calma de quem pensa que dali a pouco estará no Paraíso, mas a angústia, transe e puro terror de quem encara a morte para cumprir um destino maior do que ela.
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  6. Os cortes são rápidos, o estilo é ascético. A verdade histórica é garantida pelo registro do texto do processo, que Dreyer apresenta como sua base logo no início, assim se desembaraçando para se ocupar com a criação de pura arte visual, uma dança de rostos sem sujeiras. O rosto de Joana/Renée ocupa quase sempre o centro da tela, dominante, retratistico, e seus perseguidores aparecem no fundo do enquadramento ou enviesados, tortos ou insignificantes como suas almas.
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  7. O absurdo do circo do mundo paralelo à dor íntima. Enquanto a fé é aprisionada, os homens divertem-se sem pensar em consequências. O medievalismo de Bergman está por aqui, o surrealismo de Fellini também.
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  8. A virada de Joana, ao negar a sua remissão, é estratégica. A grande vitória, diz ela a seu captor (de novo Antonin Artaud), é o seu martírio; a sua entrega é a morte. Deus dissera-lhe que a sua missão é salvar a França, e ela entende que a fogueira a tornará a mártir que une um país, assim como Cristo entendeu que a cruz era necessária para completar a sua missão.

  9. Joana arde, grita por Jesus e morre. O povo chora, protesta e é oprimido pela guarda. Enquanto ela encontra Deus, os franceses unem-se sob a repressão. Assim termina o filme que logo seria retalhado para melhor se adequar ao gosto do ofendido público francês e católico.

Pequenas derrotas

Há uns anos, dei um par de cursos de iniciação à fotografia.
Tentava preparar-me bem e sempre evitei prometer mais do que poderia oferecer.
Ontem sonhei que estava a dar um intensivão desse mesmo curso, começando na manhã de um sábado e terminando na noite do domingo.
Porém, fora pego de surpresa e não preparara nada.
Tinha pela frente meia dúzia de alunos entediados e com as taxas de admissão pagas.
Um deles, mais velho, tinha aquela cara bem brasileira de quem pensa "que absurdo!".
Desesperado, achei no computador a pasta com as fotos que acompanhavam a introdução, mas não as conseguia ordenar com coerência.
Ao contrário do que fizera no passado, não estava a oferecer o que tinha sido prometido.
Comecei a dispensar os alunos mais cedo para eles almoçarem e eu ganhar tempo.

Não me perguntem como, mas cada vez mais eu sonho sabendo que sonho, como se estivesse vendo um filme que consigo mais ou menos controlar.
Tentei então tomar conta do sonho.
Pensei Vamos, isto tem de acabar bem; faz um PPT com essas fotos logo, bora!
Às vezes funciona, mas não desta vez: os alunos voltaram, mas, vendo que a minha atrapalhação continuava, saíram da sala, certamente para pedir o seu dinheiro de volta.
Havia pessoas do outro lado do pátio dizendo Olha, parece que o Jorge não se deu bem.
Derrotado para mim e para os outros, fiz um esforço mental para encerrar esse sonho chato e voltei ao adorável e escuro silêncio.
***

Comprei a cama sob a qual sonhei há mais ou menos um ano.
Quando chegou, vi que as instruções recomendavam virar o colchão, o lado de baixo para cima, a cada dois meses.
Porém,  a Cyntia sempre reclamou que um dos lados era diferente e sentia que não nos deveríamos deitar nele.
Ontem à noite, decidi que iria resolver essa dúvida.
Vasculhei o dossier onde guardo manuais de instruções (sim, eu faço isso) e achei as da cama, que, sinceramente, pensava perdidas.
Eu tinha razão: a indicação para virar o colchão estava lá.
Eu só não tinha reparado que havia uma especificação por baixo: "não vire o seu colchão se ele for das linhas X, Y e Z".
Pesquisei os e-mails da compra, mas nada de encontrar o nome da linha.
Hoje à tarde, a Cyntia perguntou se eu não queria abrir a capa protetora do colchão e ver se a linha estaria descrita na etiqueta.
Fizemos isso mesmo e lá estava: "linha Z".
O cuidado que tive durante um ano fora, afinal, desnecessário e precipitado.
***

A moral da história é: se não pudermos passar sem derrotas, pelo menos que sejam pequenas.

SPOILER: The Circus (O Circo, 1928)

  1. Não há muito de novo que se possa dizer sobre Chaplin. Ele importou para o cinema a mise-en-place do vaudeville e aperfeiçoou-a. Ele é o centro de todo o seu cinema, sujeito dos planos, locomotiva da ação. Simples e, no entanto, incansável na procura de novos movimentos e coreografias que surpreendam.

  2. The Circus parece-me um filme de transição. Não tem a pungência de The Kid, que foi feito após Chaplin ver o seu primeiro filho morrer com 3 dias de idade e é triste e imaginativo. Não tem a pureza e a essencialidade de The Gold Rush. Em vez disso, aqui há burros enlouquecidos, ficar trancado em jaulas com leões, donzelas que desmaiam, pontapés na bunda, coisas caindo na cabeça. Um verdadeiro circo, portanto.

  3. Adiciona-se uma nuance na personagem de Charlot/Carlitos sendo malvadinho, perseguindo a moça bonita como nunca antes, rindo das desgraças do seu rival, para quem, inevitavelmente, perde. Desta vez, ele não é o tímido injustiçado que se dá bem; ele vai atrás do que quer, enfrenta o que for necessário para conseguir, mas, no final, melhor sozinho do que mal acompanhado. Como Chaplin produziu o filme pelo meio do seu conturbado segundo divórcio, esta mensagem pode não ser pura coincidência.

  4. Ao mesmo tempo, o diretor está ampliando os limites da sua linguagem. Há mais cenários, mais viradas, mais adereços. O filme é maior do que os anteriores e ele está em pleno caminho para fazer essa obra-prima chamada City Lights três anos mais tarde. As cenas na corda bamba e, principalmente, os planos finais, após a partida do circo, manifestam um lado pouco falado da personagem de Carlitos e, talvez, de todos nós: o de que ser livre de tudo significa também ser cativo de si mesmo. Se confiarmos no final de Chaplin, o filme biográfico de 1992, terá sido este o final da montagem que lhe fizeram quando recebeu o Oscar honorário. Faz todo o sentido.
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  5. Antes que me esqueça: se quiserem criar filhos que reconheçam e reajam contra abusos de autoridade, mostrem-lhes filmes do Chaplin. É a melhor educação cívica possível.

SPOILER: Napoléon (1927)


  1. Demorei uns três dias vendo esse épico incrível de Abel Gance. Já tinha ouvido falar muito (Marc Cousins não escondeu a sua admiração por ele em História do Cinema), mas não é sempre que uma pessoa se predispõe a enfrentar cinco horas e meia de filme. Felizmente, a sua estrutura em episódios facilita as interrupções.

  2. A câmera não está só em movimento: ela está livre, documental, subjetiva, sempre disposta a quebrar a encenação e a hagiografia. Vemos estes momentos e pessoas como se os víssemos hoje no Jornal da Noite.
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  3. Abel Gance gaba-se de seguir os registros históricos nas falas e de filmar nos próprios locais da Córsega onde sucederam as cenas retratadas. Num momento de arrojada meta-temporalidade, vamos da placa que diz "Aqui morou Napoleão" para a janela onde ele se debruça. É exatidão histórica, mas também é vaidade!
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  4. A primeira parte, no colégio, faz pensar como os franceses sempre souberam criar grandes personagens infantis. Dos ombros deste jovem Napoleão já espreita Antoine Doinel.
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  5. Artaud, o dramaturgo da Crueldade, interpreta Marat, o super jacobino. Melhor casting, impossível. Aliás, Marat usa uma estola de oncinha, Danton parece um Robert Smith gordo e Robespierre é elegante e usa uns belos óculos escuros: se não fossem revolucionários, seriam uma banda indie.
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  6. O Napoleão das pinturas românticas é invencível e gigante. O de Gance é frágil e magoado. Mais antiherói do que herói, pálido, esquálido e andrajoso, lembra-me Samuel Fuller justificando Lee Marvin para o papel de Sargento em The Big Red One: "porque ele parecia a morte". Ainda assim, se o filme tivesse sido feito hoje, arrisco dizer que o ator principal Albert Dieudonné logo viraria garoto-propaganda de alguma marca de roupa.
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  7. Gance filma forte e feio, com muita câmera móvel, documental. Sabem Saving Private Ryan? É isso aí. Ele usa frequentemente planos subjetivos, e muito durante as cenas de batalha, colocando o espectador ao nível dos soldados na confusão e sujeira. Isto 66 anos antes do game Doom e 90 antes de Dunkirk fazer o mesmo utilizando o som. A sequência de Toulon, filmada à chuva, seria gloriosa por si só.
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  8. Abel Gance, o próprio diretor, interpreta "a figura mais temida do Terror: Saint-Just". Lembram o que eu falei de vaidade? Ahahah
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  9. Acho que só vemos Napoleão sorrir de verdade quando se apaixona por Josefina, e esse é talvez o segmento menos inspirado de todos. Seria demais esperar que "a figura mais temida do Terror" filmasse o Amor tão bem quanto filma a Guerra.

  10. Quando Napoleão entra na sala deserta da convenção e é assaltado por visões dos fantasmas da Revolução, algo fica claro: ele é uma personagem com o corpo no presente, a memória no passado e os olhos no futuro. É como se a História tivesse passado por ele, não o contrário.

  11. Napoleão diz aspirar por um futuro em que as batalhas sejam vencidas sem canhão ou baioneta. É uma fala compreensível 9 anos depois da Primeira Guerra Mundial, mas tristemente fadada ao fracasso 12 anos antes da Segunda.

  12. Também é curioso ver esta figura, que provavelmente se sentiu exilada a vida inteira, falando da utopia de uma Europa-pátria, onde os seus cidadãos se sintam em casa seja qual for o lugar específico dela onde se encontrem. Claramente, o Reino Unido não viu este filme muitas vezes.

  13. Gance sentiu a necessidade de filmar a grande sequência final em tela panorâmica. Só havia um probleminha: em 1927, não havia Cinemascope, Panavision ou qualquer outro desses formatos que, segundo Fritz Lang, só serviam "para filmar cobras e funerais".
    Gance foi engenhoso e gravou com 3 câmeras acopladas, cujos positivos exibiu na estreia em 3 projetores colocados lado a lado. Os distribuidores que vieram depois, claro, não tinham muita vontade de comprar projetores a mais por causa de um único filme, por isso, reeditaram e jogaram fora a película de que não precisaram. Só graças ao trabalho do grande historiador e restaurador Kevin Brownlow é que hoje podemos ver essa sequência como o cineasta a concebeu.
    Tecnicamente, é um triunfo. Porém, ao expandir o enquadramento, perde-se o poder do corte e o ritmo fica a milhas da sequência da batalha de Toulon.
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    Gance claramente entendeu isto e não perdeu muito tempo com as batalhas panorâmicas, logo seguindo para transformá-las num tríptico com imagens independentes, em que aplica tintura e faz desembocar - claro! - na bandeira de França!
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  14. Gance pode ter só conseguido fazer um filme dos 6 que pretendia sobre a vida de Napoleão, mas não se esqueceu de deixar a sua assinatura no último plano. Merecido, mas, ó, homem vaidoso, viu!
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SPOILER: Metropolis (1927)

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  1. Tal como Greed, esta maravilha de Fritz Lang foi cortada pelo estúdio depois da estreia. Se hoje podemos ver uma cópia incrível da Kino International com cerca de 95% do filme original, é porque em 2008 foi encontrada na Argentina uma versão de 16mm com os fotogramas perdidos. Que chatice, Jorge, o que interessa isso? É, eu sei. Tenho um gozo adicional (lembro-me de vê-lo filmado no Cigarrette Burns do Carpenter) por estes filmes resultarem de uma caça e por milhões de pessoas antes de mim não os terem conseguido ver porque a caça não estava concluída. Há egoísmos piores, vai.

  2. Aliás, graças a Deus por esse restauro: só aquele Intermezzo já valia os dois anos de trabalho.

  3. Vi Metropolis como uma criança veria. Ou seja, ele fez-me não pensar e entrar no enlevo da história e das imagens, o que é ótimo. É incrível como as obras-primas do passado são tão espetáculo e como o cinema mudo é rapidíssimo e eficaz a contar a sua história. Talvez não tenha havido evolução da linguagem sem pensar o público receptor. Muito refrescante de pensar.

  4. Reparem como Lang filma e ilumina Brigitte Helm de um jeito quando ela é Maria e de outro quando ela é Maschinenmensch. Entretanto, esqueçam Lang e reparem como a extraordinária Brigitte Helm transforma o seu corpo e o seu rosto quando passa de Maria a Maschinenmensch.
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  5. A direção de arte é aquilo que sempre se soube, mas arrisco dizer que é a primeira vez que apareceram no cinema a câmera de vigilância e a videochamada - décadas antes de serem inventadas. Se alguém souber de alguma aparição anterior, comenta aí.

  6. Diz-se que há marxismo em Metropolis, mas, sinceramente, como comunista ele é bem fraquinho. O dono da cidade (e dos meios de produção, se quisermos ser espertinhos) é o "cérebro". Os proletários, burros o suficiente para se deixarem levar pelo ímpeto de destruição sem lembrar que estão pondo os seus filhos em perigo, são as "mãos". Para se entenderem, só precisam de um "coração", que aparece na figura do bonzinho filho do dono, tão herói à moda antiga que para ser o Errol Flynn só lhe falta a capa e a espada. Mais do que comunista, Metropolis é keynesiano: ele só quer um capitalismo com amor.

Melhore a sua vida em meia hora

Saia do Facebook. Ou não saia do Facebook. Continue por lá, ou não. Eu não saí, ao mesmo tempo que estou escrevendo muito lá. Está confuso? É para confundir mesmo.

Já há uns tempos que andava cansado com a bacoquice do Facebook, mesmo antes da cena toda do Cambridge Analytica. A propósito, vocês caíram nessa? Pelo amor, né. Parafraseando aquele meme antigo, a melhor maneira de não ter os seus dados compartilhados na Internet é não os compartilhando.

Ao mesmo tempo, a conversa de sair do Facebook sempre soou, ela mesma, a bacoquice do Facebook. Por deus, tenho tanto amigo lá divulgando tanta coisa interessante. Não quero sair, não. Quero é não ficar exposto a tanta bosta irritante.

Um dia, decidi então que ia acabar com uma rotina que durava há anos: deixar a página do Facebook aberta o tempo todo, evitando distração, chateação e crispação minhas e alheias.

Primeira dificuldade: e se algum amigo ou parente quiser chamar? Superada com o Messenger.

Segunda dificuldade: eu seguia um monte de jornais e sites no Facebook, que punha em prioridade na timeline, para ver primeiro as notícias do momento. Como lidar?

Lida-se assim: comece por aceitar que as notícias mais compartilhadas nem sempre são as que mais lhe interessam. Em seguida, volte ao fiel, antigo e lindo RSS. Com o Feedly, acompanho tudo o que me interessa e, se encontro um artigo que quero ler mais tarde, mando-o automaticamente para o Pocket. Ambos são gratuitos e funcionam tanto no celular quanto no browser, tudo sincronizado.

Mais umas coisinhas: como comecei a sentir que queria mandar alguns artigos do Pocket para o Kindle, instalei o Upload to Kindle no celular. Dois ou três cliques e tenho o texto no leitor na hora. Ainda cheguei a usar, no browser, o P2K, que envia automaticamente para o Kindle todos os artigos guardados no Pocket na periodicidade que se quiser, mas acabei por abandonar, porque os textos são enviados em forma de digest e não em arquivos separados, o que fica pouco prático se quiser guardar só um ou outro para ter de referência.

Por fim, como postar no Facebook sem nem entrar lá? Com o Hootsuite, também para mobile e browser, com o qual consigo até publicar simultaneamente no Facebook e no Twitter. Depois, só vou lá de vez em quando para ver se vocês gostaram e aproveito o momento para uma passada pelos vossos desabafos e novidades.

Aproveitem e sejam felizes e, se tiverem dicas, mandem!

SPOILER: Greed (1924)

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  1. Nunca vira Greed (Ouro e Maldição BR, Aves de Rapina PT). Escolhi a versão de 1999 da Turner, de 4h. Se 4h parecem muito, é de lembrar que o diretor tinha feito um primeiro corte de 8 horas, que a Paramount sequestrou e mutilou para 2h. O melhor foi que o estúdio perdeu as horas cortadas, diz a lenda que por conta de um faxineiro distraído. A versão completa - que terá sido vista apenas por umas doze pessoas numa estreia para amigos - já foi chamada de "Santo Graal" dos filmes perdidos e afloram de vez em quando lendas sobre bobinas escondidas em misteriosas coleções privadas.

  2. As 4h da Turner foram reconstruídas a partir de fotografias e de uma escaleta original de Stroheim. Pelo menos, dois subplots foram recuperados, expandindo uma análise cruel da natureza humana, tão cruel que reconheci nela pessimistas posteriores como Herzog. Estarei louco? Talvez apenas ambicioso, mas fazer o quê? Sou humano.

  3. Há muito tempo que não via cinema mudo. Revê-lo confirma-me uma sensação que tenho desde o "Story of Film" do Marc Cousins: a inventividade era muito maior, o ritmo muito mais intenso. Tudo para prender a atenção do espectador.

  4. A personagem principal, McTeague, começa no escuro de uma caverna e termina a sua viagem sob a luz do deserto, numa sequência que demorou dois meses a filmar. McTeague, o bom selvagem, mas indefeso contra os defeitos da humanidade. Quem pensa que representar nessa era equivalia a fazer um esfumado no olho e dar pulos histriônicos deve olhar para Gibson Gowland, o ator principal, um gigante que rouba a cena num segundo.800px-greed2c_19242c_12_scale

  5. Não consigo afastar o pensamento que hoje Stroheim teria feito isto numa série para binjar e estaria tudo bem. Por causa de Greed, vou pensar duas vezes antes de me queixar sobre a vida.

O casamento real

É possível ver o casamento do príncipe Harry com Meghan Markle de várias formas.

As roupas, os chapéus, o vestido da noiva a barba do noivo, as alianças, o bolo: quem tenta perceber o que poderá ou não ser tendência no consumo dos próximos tempos presta atenção a estes pormenores.

Porém, há uma pergunta curiosa, bem simples, que poucos se fazem: por que este casamento tem o poder de definir tendências?

Porque é real, dirão alguns. Por que, então, os casamentos reais da Dinamarca ou do Butão não têm o mesmo poder de influenciar modas pelo mundo?

Isso leva-nos àqueles dias em que não havia Netflix, a vida das pessoas era cinzenta e o principal função da realeza estava mais à vista: ser corpo que espelha a hegemonia cultural e política da Grã-Bretanha, e do seu império, no mundo.

Ou seja, esmagar os adversários por dentro e por fora, como quem diz "olhem como somos grandes, resplandescentes e respeitáveis".

A família real funciona como os personagens de uma novela, ou como uma mitologia privada, que, num diálogo permanente, molda os seus súditos ao mesmo tempo que é moldada por eles.

Meghan é atriz, americana, filha de uma negra e um branco. Harry casou com ela numa cerimônia ecumênica, com um pastor negro, um coro gospel e convidados famosos conhecidos por suas posições progressistas. A noiva entrou sozinha na igreja e omitiu a obediência ao marido nos seus votos.

Não ponho em causa a sinceridade dos sentimentos do casal nem escondo a minha simpatia com as causas levantadas hoje. Que ótimo que a realeza britânica demonstra abertura.

Só não esqueçamos que ela o fez numa cerimônia que é, como sempre foi, um puro ato de exibição de poder.

Por que me marquei como seguro no desmoronamento do prédio em São Paulo

Hoje de manhã, depois de um prédio a menos de 2km da minha casa ter incendiado e caído, marquei-me como seguro na funcionalidade que o Facebook disponibiliza nesses casos. Estou a começar uma gravação, então tinha que trabalhar durante o dia e, como moro num continente diferente do da minha família e de muitos dos meus amigos, não queria que ninguém ficasse preocupado desnecessariamente e a mandar-me mensagens que não conseguiria responder.

Pela tarde, uma colega comentou que estava rolando uma discussão no Facebook sobre quem desnecessariamente se estaria marcando como seguro, numa espécie de reflexo torto do perene divórcio litigioso entre as classes sociais do Brasil. Quando cheguei a casa, apercebi-me que vários amigos meus tinham entrado nessa batalha também.

Há uma guerra cultural neste país e no mundo e todos somos soldados nela. Faz todo o sentido que uma tragédia entre na cultura e, por consequência, na guerra cultural.

Os posts não me incomodaram nada, nem julgo quem os escreveu. O impulso que me fez marcar-me como seguro foi íntimo e, considero, mais importante do que a significação cultural do ato. Ou seja: alegremente aceito a acusação de ridículo se esse é o preço de fazer um parente ou amigo dormir mais descansado.

"Ah, Jorge, mas tudo bem, você mora no centro, tem a família longe e tal. E quem mora em Moema e tá se marcando como seguro falando que é para os amigos no estrangeiro?"

Até pode ser, mas é verdade que a notícia do desabamento do prédio passou em todo o mundo, como, ao longo dos anos, também passaram em todo o mundo notícias de atentados em Paris, em Londres, terremotos, inundações, derrocadas.
Ao longo do tempo, vi amigos e familiares marcarem-se como seguros num monte de coisas, morassem perto ou longe dos locais dos desastres - porque quem pode dizer se eles não estavam no local do desastre na hora em que ele aconteceu?
Outros simplesmente postavam mensagens como "gente, não se preocupem comigo, está tudo bem" ou compartilhavam um vídeo de gatinhos.
Qualquer uma destas coisas me deixava mais tranquilo. A ausência de notícias e movimentos fazia-me pensar que poderia ter mais uma campa a visitar.
Nenhum tipo de mensagem me pareceu eticamente mais ou menos correta do que a outra.

Mas isso, realmente, não importa nada. Importante é que, no meio disso tudo, não se esqueçam que há pessoas a precisar de ajuda. Por favor, façam o que for possível. Fui há pouco no Paissandu levar comida, roupa e mantas. Fui guiado pelos orientadores no local para uma família de umas cinco pessoas que estavam num colchão no chão. Talvez fizessem parte do pérfido sindicato do crime que o nosso prefeito diz que residia no prédio, mas, entre duas crianças e três adultos com o rosto marcado pela preocupação com o dia de amanhã, não me pareceu.

Sei que também estão recebendo doações na rua Benjamim Constant 170 e, a partir de amanhã, na sede do PSOL, na Alameda Barão de Limeira 1412. Comidas não perecíveis, mantas e produtos para bebê (fraldas, mamadeira, etc) parecem ser as prioridades.

Termino dizendo que, quando voltei, olhei para o lugar onde até ontem havia um prédio. Na frente do céu recortado, ainda pairava no ar a poeira do concreto, que caía sobre quem perdeu tudo o que tinha na derrocada. Em quem passava, aquela ausência impunha a memória da morte, da perda e um silêncio respeitoso.

Não são necessárias cruzes ou monumentos: hoje aquele espaço vazio é luto.