2018

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A Grande Ilusão e o mítico humanismo europeu


Em tempos de extremos que emergem, de nacionalismos que se extremam e coisas más no geral que aparecem, A Grande Ilusão lembra-nos um certo ideal da Europa com homens de honra. Digo "homens", porque mulheres aqui há poucas, quase nenhuma - o que aparece são oficiais, que iam para prisões especiais e se guiavam por um código de conduta particular, então, talvez fosse fácil falar. Homens que se travestiam para alimentar o desejo, que recebiam harmónicas dos carcereiros e que cantavam A Marselhesa na prisão. Também há aqui homens para quem um travelling ainda era uma questão de moral. Renoir faz-nos perguntar: se todos sabemos do valor de todos e somos cordiais uns com os outros, guerrear porquê?

A História passa por aqui. Em fúria, prisioneiros queimam o presente da rainha que pensavam ser vodka e, afinal, é livros, mas um grita "não devem queimar livros", como alguém talvez tenha gritado (ou não, pois o medo pode muito) na Alemanha em 10 de Maio de 1933, quatro anos antes de o filme estrear. Um oficial deixa-se ser alvejado por outro, para permitir que os seus correligionários fujam, e, enquanto morre, os dois conversam uma conversa onde está todo o existencialismo que, 9 anos depois, seria chamado de Humanismo.


Por fim, há quem discuta e faça as pazes de costas para os Alpes. E, nalgum momento, diz-se que "as fronteiras não existem, são uma invenção do homem".

Cajón del Maipo

Imaginei dois homens se perseguindo. Um tem uma arma. O outro corre. Atravessa o rebanho de cabras. O da arma aponta, tem o outro na mira, mas um bode mal disposto ataca-o com uma bela cornada pelo flanco. O homem armado fica em mal estado, mas consegue desvencilhar-se do bode. O perseguido corre em ziguezague e espanta três cavalos na direção do armado, que apenas por uma sorte incrível não é pisoteado. Pedras se soltam do chão. Os homens escorregam. O perseguido torce o pé e cai. Finalmente, eles ficam frente a frente. Parece que não há escapatória. O perseguido resigna-se: vai morrer. O armado dá um passo em frente para se apoiar melhor. Grande erro: o chão está cheio de água, e o pé afunda-se na lama. O perseguido levanta-se a custo e foge na direção das montanhas cobertas de neve. O armado ainda dispara, mas falha. A última coisa que vê antes de perder os sentidos é um cavalo preto num galope zangado. Vem na sua direção.

Cidadão

Não sei se sabem, mas eu escrevo poesia.
Em 2009, fui finalista europeu de Poetry Slam, em Berlim. Por causa disso, fui convidado para fazer uma performance no aniversário de uma associação de cultura francesa em Lisboa.
Antes do evento, pediram-me para testar o som. Disse um poema e, assim que acabei, uma mulher aproximou-se com expressão consternada.
É que o poema (posto aqui em baixo) era uma crítica ao então presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso.
E o espaço, que fora cedido à associação, era o da sede da Comissão Europeia, da qual a mulher era funcionária.


Nesse momento, o dilema que se punha àquela mulher era básico: ser representante da Comissão numa censura a um evento que nem da Comissão era; ou não fazer nada e arriscar-se a ter problemas caso se soubesse que uma crítica a Durão Barroso fora dita naquele espaço.


A funcionária pediu-me para trocar o texto por outro, e tudo ficaria bem.
Eu disse que não ia fazer isso.
Entretanto, passa um homem de barba e terno. Era colega da mulher e parecia mais sereno. Ela explicou-lhe o que estava a acontecer e pediu-me para eu lhe mostrar o poema impresso.
O homem leu e, no final, de sobrolho franzido, disse "pois, isso, realmente, tem uns termos mais fortes...".
Pediram-me para omitir as palavras mais pesadas, e tudo ficaria bem.
De novo, eu disse que não ia fazer isso. Tinha sido convidado para fazer o meu repertório de poemas - e esse era um dos meus poemas.
Eles não ficaram muito satisfeitos e continuaram uma conversa mole, tentando que eu mudasse de ideias.
A diretora da associação percebeu o burburinho, aproximou-se e conversou com eles.
Ela argumentou que o espaço lhes tinha sido cedido para eles fazerem o seu evento. Que eu fazia parte do evento. E que o poema era uma performance minha. Portanto, eu tinha todo o direito de o dizer.
Os funcionários, contrariados, calaram-se e anuíram.


Dali a pouco, na frente de algumas dezenas de pessoas, disse o poema.
A funcionária, sentada num canto como uma vigia de escola, abanava a cabeça. A sua face ia do azul ao roxo como um termómetro prestes a explodir.
Mas fui muito aplaudido e, no final, ouvi muitos elogios do público.


Não foi Durão Barroso que quase me censurou, foram os seus burocratas. Porque é sempre assim: é sempre outra pessoa que te vai querer calar, ou bater, ou matar, em nome do respeitinho, dos bons costumes ou seja lá qual for a desculpinha barata que arranjarem para dizer que tu os incomodas.
Um amigo, com quem tinha uma banda de spoken word, também estava lá. Depois, enquanto descíamos a rua para apanhar o metro, disse-me, rindo, "o que tu fizeste foi como gritar pelo Benfica no meio do estádio de Alvalade cheio de sportinguistas".
Ele tinha razão. Mas é muito fácil falar dos direitos e liberdades individuais da boca para fora e mais difícil levantar a cabeça e dizer "não" quando é preciso. Eu não vou abdicar do meu direito por causa de conveniências.
Democracia é falar, discutir, respeitar o diferente e fazermo-nos respeitar enquanto diferentes. Não é ter medo daquilo que nos possa acontecer pelo que dizemos, fazemos ou somos.


Se Bolsonaro ganhar esta eleição, ganha a gente do medo. A gente que acha correto censurar uma peça em que uma mulher trans interpreta Jesus. Que acha que um homem nu num museu é um elogio à pedofilia. Que acha que uma exposição sobre o sexo na arte é um atentado à moral. Que acha que os seus opositores devem ir para a prisão ou para fora do país.


Mas também tenho certeza de uma coisa: Bolsonaro já perdeu esta eleição. Seja qual for o resultado das urnas, e contra a aclamação geral que ele buscava, está claro que metade dos eleitores se uniram na certeza de não quererem a sua incompetência, a sua mesquinhez e o seu ódio. Metade dos brasileiros estão dizendo que levantarão a cabeça e dirão "não" contra propostas que limitem as suas liberdades e os seus direitos, e toda a classe política já percebeu isso.


Em Lisboa, eu fui temerário e provocador. Hoje faria diferente?
A única coisa que hoje faria de diferente seria dizer o poema direto na performance, e não no teste de som.
Porque, a bem dizer, eles que se fodam.
Boa eleição a todos.







 

Cidadão
estás-te a cagar
se me chamo josé manuel barroso
presidente da comissão europeia
ou durão barroso
antigo primeiro-ministro
se mudei o nome quando mudei de profissão
porque os franceses não conseguem dizer "durão"
ou se fui revolucionário maoísta na juventude
e depois
eu não sou já esse rapaz e se o encontrasse
rir-me-ia dele
estás-te a cagar se mudei de nome
como um escritor artista ou stripper
e se mudei de pensamento
não sou mentiroso nem vendi os meus sonhos
sou um político profissional
sou josé manuel barroso
presidente da comissão europeia
e tu estás-te a cagar
num dos meus comícios
citou-se o início de um poema português
"sigamos o cherne!", disse-se
e toda a gente aplaudiu
no fim do poema ninguém sabia
o cherne é um "peixe traído"
quem o disse
não a minha mãe
não sou hamlet
quem o disse
não o meu filho
não sou césar
quem o disse
a minha mulher
ela chamou-me um peixe traído
não leão tigre ou cavalo
um peixe
traído
à tua frente
e ainda assim fui eleito
porquê
porque tu estás-te a cagar
prometi descer-te os impostos
e subi-os
disse que ia reformar
não reformei
mas abri os meus ares à CIA
com carga desconhecida para Guantamo Bay
nada de mais
uma vida tranquila
mas um dia
houve uma guerra para decidir
matar ou não matar, eis a questão
e era preciso uma ilha
porque o mar relaxa
onde querem ir Bermuda não
Bermuda soa a calção
venga Señor José Maria Aznar
please do come Sir Tony Blair
get the party goin' George W. Bush
venham aos belos Açores
é difícil lá chegar
e eu sei que gritos de manifestantes
são particularmente enervantes
enquanto se decide uma chacina
venham e comam cherne ao almoço
mas deixem-me aparecer na fotografia
como um empregado de restaurante
servindo comida aos adultos
deixem-me mostrar que também sei brincar
dêem-me uns minutos para discursar
não se vão arrepender
baterei os calcanhares e direi
as vezes que quiserem
eu vi as armas de destruição maciça
eu vi as armas de destruição maciça
eu vi as armas de destruição maciça

e tu sabes
15 meses depois a chamada chegou
durão tornou-se josé manuel
no more mister prime-minister
e tu sabes
que se entreguei portugal
à versão política de uma love doll
um homem com erecção vitalícia
foi porque isso é bom para hastear a bandeira
e tu sabes que hoje
sou o presidente da comissão europeia
e tudo bem
porque tu estás-te a cagar
e quando olho pela janela
o mundo fica escuro
e eu penso no passado
os milhões de estrelas mortas no céu
os corpos escuros debaixo do chão
e a corrente sem fim do mal esperneando no fundo da noite
faço xixi e vou para a caminha
porque devidamente tranquilamente seguramente
tu estás-te a cagar
e todos se vão esquecer.

Montale

Não me repitam que até um palito
uma migalha ou uma minúcia pode conter o todo.
Isso pensava eu quando o mundo existia,
mas o meu pensamento desvaria, agarra-se onde pode
para se dizer que não se extinguiu.

(L'Eufrate)

Nick Cave

Isto não foi um show de música. Isto foi uma liturgia. Cada canção era uma peça de teatro sobre duas personagens, o Bem e o Mal, e com dois atores: nós e ele.

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Morrer de pé ou viver ajoelhado?

Como imigrante no Brasil, há vários meses que reflito sobre o modo como esta eleição deveria influenciar a minha permanência aqui.
Depois dos resultados do primeiro turno, a resposta ficou clara.
A partir de amanhã, darei início ao processo de pedido de igualdade de direitos e deveres, que me permitirá votar e participar plenamente na vida política deste país.
Isso significa perder o direito de votar em Portugal, o que muito me custa.
Porém, considero que escolher o modo como vai ser gasto o dinheiro dos meus impostos e manter a cabeça erguida contra simpatizantes de tirania é mais importante ainda.
Imagino que alguns de vocês pensaram que estava anunciando a minha partida.
Também vejo muitos brasileiros, gracejando em desespero, que perguntam qual o melhor país para se exilar.
Mas Jair Bolsonaro, o círculo que o rodeia e os esbirros que o apoiam não me dão medo.
Imagino que a maioria dos seus eleitores votaram nele mais por acharem que ele seria o melhor candidato contra o PT do que por concordarem com as ideias do ex-deputado e que inúmeros nem saibam muito bem no que estavam votando.
Eu não perco a esperança nesse povo desesperançado. Porquê?
Nasci no sexto ano da democracia portuguesa.
Não tive que combater numa guerra.
Nunca fui denunciado ou vigiado pelas minhas opiniões.
As coisas que escrevo nunca tiveram que passar por censura, prévia ou posterior.
Ao longo dos meus 37 anos, 8 dos quais morando no Brasil, vi governos com que concordei ou não dando-se bem ou mal.
Mas eu nunca vi tamanha glorificação de políticos que se aproveitam das liberdades democráticas para apelar ao saudosismo por tempos obscuros, ao elogio de torturadores e ao insulto mais sujo.
Acima de tudo, nunca vi tamanha concentração de incompetência, falta de preparo para lidar com os problemas de um país e slogans vazios de conteúdo ascender à primeira linha do debate político.
Eu não tenho nenhum problema em ver políticos de quem não gosto subir aos lugares de poder (os amigos brasileiros poderão pesquisar "Cavaco Silva" para entenderem).
Mas há não gostar e não concordar, e depois há considerar que alguém não preenche as condições mínimas para ser um representante político numa sociedade democrática, quer pelas posições que defende, quer pela incapacidade de construir uma visão com pés e cabeça para o país que pretende governar.
Fazer frente a isto é um dever ético fundamental do cidadão, esteja ele no poder, na oposição, num cargo eleito ou, simplesmente, participando da vida pública do seu país.
Emiliano Zapata disse "prefiro morrer de pé a viver ajoelhado". É um lema pelo qual gosto de pautar a minha vida. Levantar a cabeça faz-nos chegar à luz. Baixá-la leva-nos às trevas.
E ninguém me vai fazer descer até as trevas.

Brasil

Os tempos andam estranhos. A alegria do deserto, por um lado, o de casa, o do coração. Do outro, o trópico em transe e em sangue que lentamente se vai esboroando. A mentira, cobra que escorrega por um chão sujo e coberto de mentiras. Avança, avança, e de onde aparece esta gente que quer que a cobra morda o mundo? A azia é grande, mas não vale a pena trocar o suco por cianeto. E, entretanto, outra multidão avança, com a cabeça erguida sem medo e o som do futuro nos passos. É  como se todos fôssemos Dâmocles.

Mudanças

A branquidão oculta uma pergunta: serás capaz? Não tenho respostas para ela. Às vezes, penso que paramos de crescer nalgum momento. Outras, que somos sempre diferentes.

Tenho certeza, sim, que não acredito que as pessoas nunca mudam. Elas mudam, sim. Mas, depois, voltam a mudar, uma e outra vez, podendo voltar a ser o que eram e deixando de o ser novamente.

E eu, mudei no quê? Fui capaz antes. Sê-lo-ei hoje?

Porque eu, português no Brasil, disse #elenão

Apesar de ainda não votar no Brasil, é aqui que eu pago os meus impostos. Por isso, preocupo-me com a forma como eles serão gastos e que tipo de governos eles estarão apoiando.

Sempre considerei Jair Bolsonaro um mal necessário: a personagem bocuda que fala frases de efeito machistas, racistas e fascistas e, assim, consegue o voto da extrema-direita, fazendo-a jogar pelas regras da democracia.

E não entendo haver quem acredite que ele é mais do que isso, mesmo depois de ele se ter candidatado à Presidência construindo a imagem de ser o homem de que o Brasil precisa.


Um parlamentar que aprova dois projetos de lei em 27 anos de congresso não demonstra ter a articulação necessária com o Legislativo para ser um presidente competente.

O candidato já disse que nunca foi corrupto porque era do "baixo claro". Ou seja, um político pouco importante, sem influência, que não valia a pena comprar. Mesmo assim, ao longo da sua carreira política, ele conseguiu trazer três dos seus filhos para a política e multiplicar o patrimônio familiar de forma incrivelmente suspeita. Contratou a sua atual mulher e, em um ano de serviço, quase triplicou o salário dela. Paga uma funcionária doméstica com dinheiro público. Tem um irmão que é funcionário-fantasma de uma assembleia legislativa e que é doador da sua campanha.

O candidato diz não saber nada de economia e deixar esses assuntos para o seu assessor e futuro ministro da Fazenda, Paulo Guedes. Mas Paulo Guedes é um liberal, e o seu chefe é um populista. A confusão entre os dois nas últimas semanas sobre a pauta absurda anunciada por Guedes não prenuncia um grande desenvolvimento para o país.

O seu programa de governo é uma mistura desconchavada de lunatismo e de autoritarismo, de obsessão com o exército e a polícia, de intervenção governamental na vida privada. Além disso, o candidato desconsidera as suas frases ofensivas do passado e do presente como piadas, exageros mal entendidos. As suas frases futuras serão legendadas para saber o que deve ser levado a sério?

Sem nem entrar no mérito das propostas que gosta de lançar com fala grossa e alta, Bolsonaro comprovadamente não tem a competência para as cumprir, a postura de quem deve ocupar o mais alto cargo de uma nação nem a idoneidade de quem, como ele diz, quer combater a corrupção no Brasil.

É por isso que eu não quero que ele gaste o dinheiro dos meus impostos.

E é por isso que eu disse #elenão.

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O que eu não entendo

Moro no Brasil há oito anos, mas ainda não voto aqui. Cansaço de burocracias, por um lado. Medo de perder esse vínculo com o meu país natal, por outro.

Isso não significa que não acompanho a política brasileira. Acompanho, e com muita atenção. Mas, ainda hoje, há muitas coisas que não entendo.

Não entendo, por exemplo, a atribuição da culpa pela corrupção brasileira a um ou outro, como se não estivesse claro que há uma mamata instalada desde a Ditadura e que o "presidencialismo de coalizão" democrático foi baseado numa rede suprapartidária de favores, ajudas mútuas e acordos obscuros com o meio empresarial.

Não entendo que não se perceba que o impeachment que expulsou Dilma foi articulado por grandes corruptos, já julgados e condenados, e que certamente eles não o fizeram porque ela facilitava a sua ladroagem.

Não entendo quem não se ligou ainda que a contestação ao PT só veio depois do grande ciclo das commodities, quando muita gente viu minguar o dinheiro que até então lhe vinha facilmente para o bolso.

Não entendo como se fala tão pouco que Dilma foi a primeira a demitir pessoas como Antonio Palocci , Wagner Rossi ou Carlos Lupi após aparecerem as primeiras suspeitas de corrupção sobre elas.

Não entendo quem acusa o PT de "querer transformar o Brasil numa Venezuela" e esquece que os dois pés que legitimaram a Lava Jato - a lei da Delação Premiada e o fortalecimento da Polícia Federal - foram feitos do próprio PT, que também sancionou a Lei da Ficha Limpa.

Não entendo quem ostenta descaso e ódio por quem é mais fraco, mais pobre, diferente, quem celebra essa ostentação e quem faz dela bandeira política.

Talvez haja coisas que não sejam mesmo para entender. A memória das pessoas é curta. E eu sou naturalmente otimista. Quando, há 3 anos, escrevi um artigo de opinião no Diário de Notícias sobre a situação do Brasil, ainda nem tinha começado o impeachment, e eu acreditei muito na possibilidade de ele não acontecer. Aconteceu, e a estabilidade que tanto se esperava só foi sendo adiada e adiada, ao ponto de as instituições e a paz social parecerem às vezes prestes a entrarem em derrocada.

Quando estava no poder, o PT nunca me pareceu um partido tão de esquerda assim, mas mais um bloco abrangente que partia do centro-esquerda, com uma grande preocupação social. O crescimento econômico durante os seus governos foi uma benção e uma maldição. Com mais dinheiro entrando, e sem quebrar a tradição da roubalheira, mais dinheiro era pedido, distribuído e entregue. Não quebrar essa tradição foi culpa do PT, sim, e também de todos os políticos que passaram pelo poder nos últimos 30 anos. Devemos julgar um réu pelos crimes que cometeu - não pelos dos outros.

Silêncio, movimento, o teu rosto

Os silêncios falam o suficiente. Os rostos que se viram para ti e pedem as tuas palavras também não se precisam abrir: as intenções deles são claras. Se dormiste pouco, essa é a hora de acordar.

Outra lição: se está difícil transportar a coisa para o lugar onde a queres, talvez seja melhor seres tu o que se mexe e ires até ela.

E outra: nenhuma pessoa ou browser de internet têm o direito de te obrigar a olhares para o teu próprio rosto.

A moral e o travelling de Kapò

Há já muito tempo que li a frase tutelar que Godard soltou num debate sobre Hiroshima Mon Amour, de Alain Resnais:


Um travelling é uma questão de moral.*

Pela mesma época, li a crítica devastadora de Jacques Rivette sobre um filme obscuro, curiosamente com a mesma atriz de Hiroshima Mon Amour:


Vejam em Kapò o plano em que [Emanuelle] Riva se suicida, atirando-se sobre o arame farpado electrificado: o homem que decide fazer, nesse momento, um travelling para reenquadrar o cadáver em contra-picado, tendo o cuidado de colocar a mão erguida num ângulo preciso do enquadramento final, esse homem só tem direito ao mais profundo dos desprezos.*

Foi preciso ler Serge Daney e mais algumas coisas para entender que o que estava em causa era a espetacularização da guerra e do Holocausto. Um movimento de câmera - que também é um reajuste do olhar do espectador - não vale apenas pela sua beleza, mas pela sua adequação ao que mostra. Kapò é um filme sobre um campo de concentração: será moralmente adequado embelezar o horror para fazer um enquadramento bonito? Disse Daney sobre o plano de Kapò:


[O travelling] quer ser belo, [mas] não é - ou, mais claramente, ele é belo, mas não é correto.*

Daney, porém, admite uma coisa: ele nunca viu o filme.
Serei eu o único a nunca o ter esquecido, apesar de nunca o ter visto? É que eu nunca vi Kapò mas, ao mesmo tempo vi-o. Vi-o porque alguém - através das palavras - mo mostrou.

Não tenho nada contra Daney, mas há anos que vivo com a curiosidade de ver o famigerado plano. Hoje, graças às maravilhas da Internet, matei essa pendência. Aqui está, para todos verem também.

https://www.youtube.com/watch?v=pCud43zOqAM

Terror, campanha, amanhã

Disse há dias que o terror é teimosia. Mas, vendo Profondo Rosso, há algo mais. Nele trabalha-se a cor e fala-se do dentro e do fora, do perto e do longe, da música e do silêncio. E todos são teimosos. Mas será terror?

- Terror é esta campanha, que nos mata, nos trucida, nos tortura, nos condena para sempre.

Nem tenho tido muito tempo de prestar atenção. Gosto muito do meu trabalho. Ainda bem.

- O que importa é haver trabalho.

O que importa é haver vida. Nascemos pequenas bolhas neste mundo e, enquanto fazemos aniversários, teimamos em não ir.

- A vida será terror.

Então. Talvez não. E eu nunca disse que eles são uma e a mesma coisa. Qualquer drama é herói, objetivo, dificuldades; qualquer drama é teimosia. E eu não sei se slasher - ou até gore - é terror.

- Mas isso é muito subjetivo.

Sim.

- Devias mentir.

Será culpa da geração ou do Freddy Krueger? Preciso do sobrenatural ou da sua possibilidade. A violência incomoda. A distorção do corpo pode repugnar-me. Mas não me aterrorizam.

- E amanhã?

- Amanhã...

Renoir, disfarces, pessoas

Há muito tempo que não via Renoir, e quis recomeçar por Les Bas-Fonds (1936) porque, no My Voyage to Italy, o Scorsese fala que foi um dos filmes em que ele foi assistido por Visconti, então um mero aristocrata entediado e sem saber o que fazer da vida. A amiga Coco Chanel apresentou-o ao diretor francês que, então envolvido com a Frente Popular, terá sido uma influência fundamental para que o conde se aproximasse do Partido Comunista e dos dramas dos trabalhadores, o que é sempre bom para quem vai fundar o Neo-Realismo.

Visconti não é creditado neste filme, tal como não o é em outros filmes que fez com Renoir. Provavelmente, ele foi mais uma espécie de estagiário, assistente pessoal ou simples penetra. Ainda assim, Les Bas-Fonds é interessante para qualquer pessoa que se interesse por ele, porque junta os dois universos que tratou na sua obra: o aristocrático e o proletário, que aqui corresponde a um lumpenproletariat de ladrões, bêbedos e prostitutas. Todos extremamente simpáticos, por sinal.

Apesar de Les Bas-Fonds ser uma elegia de quem tem pouco, ele não é um filme panfletário, mas uma fábula moral e humanista, que mostra que, com posses a mais ou a menos, somos todos muito parecidos e igualmente sujeitos tanto à perdição quanto à redenção. Toda a gente quer dinheiro, ninguém quer pagar o que deve e, pelo meio, salva-se quem rejeita a aparência e vale por si mesmo.

Esta cena incrível é bem expressiva disso (pulem para os 2min do vídeo). O Barão, que perdeu tudo no jogo, encontra Pépel na sua casa disposto a roubá-lo. Este é o mesmo Barão que, mais tarde, dirá Sinto como se tivesse passado a vida toda trocando de disfarces. Reparem na sutil troca de roupas, sugerindo que ele partirá para o último disfarce ou, quem sabe, se despir de vez.



O encontro de Gabin e Jouvet é histórico e os momentos em que eles contracenam são - não há outra palavra - uma maravilha. Aqui temos dois atores bem diferentes, mas que claramente estão adorando trabalhar juntos e fazem a sua arte como quem brinca. Diz Pascal Merigeau em Jean Renoir: A Biography:

gabin-jouvet

As duas personagens fazem um caminho sincero, e por isso nos agradam tanto. A câmera de Renoir é a ideal para estas figuras. Os seus atores enchem o quadro. A câmera segue-os, precisa deles. Veja-se a cena em que Pépel termina tudo com a sua amante: a forma como o enquadramento é construído a partir dos atores, como as pessoas no fundo enchem o quadro e somam uma serenidade cotidiana ao que poderia ser um simples pastelão melodramático.



O modo como Gabin interpreta este ladrão barato é incrível. Pépel é pobre e criminoso, mas honrado, um ser de valores sólidos, que atravessa a vida e os seus acidentes com uma consciência muito pacífica daquilo que é certo e errado. Ou seja, uma figura de essência chaplinesca. Por isso, não me surpreendeu nada que o final de Les Bas-Fonds invoque do de Tempos Modernos, que Chaplin lançara no início desse mesmo ano de 1936.

Pior, melhor, abrigo

Nada pior do que uma estrada parada.


Nada melhor do que uma sala com amigos.

Nada pior do que chuva em frio.

Nada melhor do que jantar com amigos.

O amor está a um beijo de distância.

Tempo, baton, luz

Há anos que subo a rua do trabalho mais ou menos pela mesma hora, todos os dias. Muitas coisas mudaram. Restaurantes tornaram-se hamburguerias. Lugares mineiros tornaram-se lugares árabes. Um duo de irmãos sapateiros de Viseu veio e foi-se, mas não sem antes me ter feito um trabalho horrível num par de sapatos. O cabelo do manobrista do restaurante italiano está mais branco. O da pet sitter, há uns anos já que deixou de ser liso e cortado à chanel; hoje ela tem-no cacheado e preso num coque alto. Também já a vi passear mais cães ao mesmo tempo do que vejo agora. O problema será da crise ou da minha percepção corrompível?

***


Uma noite, quando eu ainda morava em Lisboa, fui ver o Greil Marcus na Cinemateca. Marcus escreveu um livro chamado Lipstick Traces, (Marcas de Baton na tradução portuguesa da Frenesi) que, ao situar o punk numa tradição cultural e filosófica que inclui o Letrismo, o Dadaísmo e o Protestantismo Radical do século XVI, mudou muito a forma como eu pensava o rock e um monte de coisas.


Nessa noite, ele foi apresentar o Great Rock’n Roll Swindle, ou seja, o documentário do Julien Temple sobre os Sex Pistols (não o mais recente; o outro), mas Marcus também conversou sobre outras coisas e outros filmes.


A dada altura, ele disse algo como Se gostaram do The Warriors, deviam ver o Streets of Fire, o grande filme rock do Walter Hill. Por isso, fui vê-lo logo no dia seguinte.


Streets of Fire está muito longe de ser perfeito e, no entanto, é inesquecível. Até hoje, não me saíram da cabeça esta cena e esta música, meio anos 80 e meio memória difusa dos 50, meio synth pop e meio The Crickets. O plano com o ligeiro tilt sobre o público no 1min, o vermelho e o azul no 1min15 (tão marcados que, por um momento, parece que a Diane Lane foi filmada na frente de uma tela verde), a entrada dos motoqueiros aos 2min54: é tudo uma bela lição sobre o uso da luz em cinema.


E, além disso, ainda me traz a memória da noite em que fui ver o Greil Marcus falar na Cinemateca de Lisboa.


https://www.youtube.com/watch?v=arxD3Ro9mAk

Animais, tempo, azul, conta

Gosto de passar na frente de açougues e de peixarias. O umami toca-me a maçã de adão (ou será o hipotálamo?). Eu não see dead people, mas eu smell dead animals.


***


O passado é presente, mas, enquanto futuro, é próximo demais. Sou adepto de parar para respirar. O ar é distância, e eu sempre prefiro as coisas de longe.


***


O que vê cada um de nós quando vê uma cor? O azul que eu vejo é o mesmo que tu vês? Se a palavra vem antes, quantas palavras cabem dentro de uma cor? Nada ou o mundo inteiro?


O Blue come forth. O Blue arise. O Blue ascend. O Blue come in.

***


O que comprova que eu moro onde moro? Uma conta. Ó malvado e consumista quadrado em que o meu xis foi marcado.

Tempo, Bernardo, Bach

Os historiadores dizem que há séculos longos e séculos curtos. Também os dias podem ser longos e curtos. O meu dia de hoje começou na noite de ontem. Poder-se-ia dizer que uma coisa é o que existe no mundo e outra o que existe nas nossas mentes. Mas dizer 'dia' é pensar naquilo que o 'dia' é. Quando, em algum momento, deixamos de pensar?


***


O passado é também presente e futuro. Às vezes, o que parecia morto e enterrado apenas o parece. Para o mal, para o bem.


(já não falo sobre dias)


***


Não, 'mandar o Bernardo às compras' não é uma gíria para transar em Portugal. 'Afiambrar', sim. 'Pinocar', com certeza. 'Refustedo', admito que mais do que uma pessoa o diga. Bernardos e compras, não.


***


O período é enervante: decisões no horizonte, facadas no estômago e tanta coisa que deveria estar segura e não está. Para este tipo de momentos, recomendo Bach. Não florais, mas suítes. Esta não é nada obscura, acompanhou-me em vários alarmes matinais e proporcionou-me um momento cotidiano de grande beleza, quando começou a tocar enquanto eu corria no Minhocão e, de repente, era como se os telhados dos prédios flutuassem sobre mim e sobre o resto da cidade.


https://www.youtube.com/watch?v=eUtCC5VPwBs

Tempos Modernos, rolezinhos e o fim de Carlitos

Nos Tempos Modernos (Modern Times, 1936), os homens são gado.

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=ZyHOi5lY16M?rel=0&w=560&h=315]

Nove anos antes, Metropolis já falara das lutas sociais. A Grande Depressão ainda não tinha acontecido, mas a Alemanha pós I Guerra Mundial já sabia um pouco de greves e revoltas dos trabalhadores. Arrisco que o filme de Lang tenha sido uma influência para Chaplin, até porque não tenho visto muito mais filmes dos anos 30 que incluam conversas de Skype. Porém, repare-se como, em Lang, só o patrão vê o empregado, num plano inferior; e, em Chaplin, ambos se veem, mas ele prefere a perspectiva do empregado olhando o patrão sobre ele.



[gallery ids="3364,3365" type="slideshow" link="none"]
Já tinha percebido em Luzes da Cidade, mas aqui é mais claro ainda: por resistir ao colocar som nos seus filmes, Chaplin parece ter sido um dos diretores que mais o pensou. Aqui, as falas vêm de gravações ou através de telas, nunca diretamente das bocas das personagens. Ou seja, ele coloca a palavra falada no cinema, a sua grande nêmesis, a assassina da sua pantomina, do lado das máquinas num filme em que as máquinas são fonte de todo o mal. Sutil, senhor Chaplin, mas direto.

O filme tem pedigree. Supostamente, Chaplin terá sido sensibilizado para a influência das máquinas na desumanização do trabalho pelo próprio Mahatma Ghandi. Pode-se argumentar se, ao associar a denúncia social ao seu melodrama habitual, ele não terá antecedido o neorrealismo sete anos antes do Ossessione de Visconti. Na verdade, a sua crítica às autoridades, representantes sérias da sociedade burguesa, acaba por encaixar na perfeição com o tema do filme. A mulher do pastor com gastrite tem algo do anticlericalismo de Buñuel. Carlitos nunca foi amigo da polícia, mas não me lembro de ele ter sido preso tantas vezes quanto aqui.

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=KykfDXtZYmI?rel=0&w=560&h=315]

E o que falar da sequência da "invasão" noturna da loja de departamento, que tem ecos ainda hoje? Lembram dos rolezinhos, sobre os quais Eliane Brum escreveu tão bem?  Chaplin já está mostrando os excluídos da sociedade de consumo invadindo as catedrais desta. E brincar com o fogo desta maneira é como patinar ao lado do precipício.

 [youtube https://www.youtube.com/watch?v=vlMFQHbmtpg?rel=0&w=560&h=315]

Chaplin também achou aqui o lugar ideal para colocar algo que ele sabe fazer muito bem pelo menos desde The Gold Rush: filmar uma refeição. Primeiro, Carlitos é alimentado por uma máquina, e não consegue comer nada. Mais tarde, num belo contraponto, ele alimenta um trabalhador que, apesar de preso numa máquina, consegue assim almoçar. Ou seja, um homem sempre conseguirá ser alimentado por outro com boa vontade, apesar da máquina que o sufoca.

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=n_1apYo6-Ow?rel=0&w=560&h=315]

Além de ensaio sobre as dificuldades da classe trabalhadora após a Depressão, Tempos Modernos mostra ter uma importância íntima muito grande para o autor. Primeiro, porque é uma espécie de carta de amor à sua recém-esposa da época, Paulette Godard, com cuja personagem Carlitos se alia e tem momentos dignos de jovem casal apaixonado.

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=Ov--LxnP318?rel=0&w=560&h=315]

Depois, e apesar de tudo que se possa dizer sobre a personagem de O Grande Ditador, para Chaplin Carlitos acabou aqui. Dois momentos marcam esse fim: a primeira vez que ele fala - sem nada dizer, mas fazendo todo mundo rir...

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=0daS_SDCT_U?rel=0&w=560&h=315]

...e o final, que rima com o de O Circo, com a diferença que, desta vez, Carlitos vai acompanhado e sorrindo.

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=J3aQkfIvx6k?rel=0&w=560&h=315]

Chaplin, com 47 anos, deixou Carlitos marchar em direção ao horizonte para, finalmente,  o nome do diretor não ser ofuscado pelo da personagem. Bela forma de ilustrar uma virada na obra.

Filmes, comida, dúvida, cura

Comparado com os giallo jovens e intensos do Argento, os de Mario Bava parecem adaptações classiconas de histórias da Agatha Christie. Mas que fotografia, que direção de arte! Um Visconti do terror.


Já Um Lugar Silencioso, nhec, parece uma adaptação caladinha de Jurassic Park.

***


No restaurante, disse ao garçom que tentei uma adaptação caseira de uma sobremesa deles, mas troquei o requeijão de corte por queijo coalho e, em vez de uma chapa simples, coloquei manteiga para conseguir a casquinha crocante. Ele riu e soltou um "a gente vai inventando". Lembrei-me de Michael Pollan contar, no Cooked, que há quem opine que a humanidade não começou a cultivar cereais para comer, mas porque queria embebedar-se com cerveja. Associamos "civilização" com seres sábios e precavidos; talvez a devamos começar a associar com bêbedos epicuristas que foram inventando, sempre inventando.


***


Na rua, uma mulher contava uma história a outra. Aí ela falou 'Eu me mudei para essa casa e quem deu ela foi Deus!'. E eu falei 'Duvido!!!'.


***


Gente demais para a exposição na Pinacoteca. Fomos então passear no parque, e tirei uma foto com o Garibaldi.


https://www.instagram.com/p/BnfmcMaAdCi/?taken-by=jvnande

Depois ouvi: If you slip going under/ Slip over my shoulder/ So just pull on your face / Just pull on your feet/ And let's hit opening time/ Down on Fascination Street.

Corrida, ave, Coltrane

A vida não pára. Ou talvez ela pare, mas nós não. Feriados eram dias de festejar santos. Os santos de amanhã festejam os dias de hoje?

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Entre dois momentos, liguei Hitchcock a um sonho e pensei no pássaro invisível que ataca as pessoas na rua.

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O feriado acaba e, no documentário, o John Coltrane diz Obrigado, Deus.

Matéria, História, Moby Dick

Lia Moby Dick. Melville falava sobre as antigas espécies de baleias. Pensei numa hipótese comprovável só por uma conta impossível: e se a vida, ou a matéria orgânica, for como a água e nenhuma se perder? E se o número de células vivas for o mesmo desde o início dos tempos, sendo elas só distribuídas e redistribuídas entre vegetais e animais?

***

História é o conto da tensão. Interessam-lhe mais os Grandes Conflitos do que as Grandes Pazes. Enquanto os peixes do Padre António Vieira se perseguem, eles também avançam. Exceto um, que espera num consultório médico por um acompanhante obrigatório entretanto comido.
***

Também de Moby Dick: "é necessário dar-se conta (...) de que os próprios deuses nem sempre são felizes".

Meteorito, sala de roteiro, chuva

Parece que, no Museu, pouco mais se salvou do que o Meteorito do Bendegó.

https://www.instagram.com/p/BnRTb_YBpW6/?utm_source=ig_web_copy_link
Já não é vermelho e liso como o vi há seis anos. Está escuro, coberto de cinzas. Cão assustado no meio das ruínas. Mas penso que ele veio do espaço e que, há muito tempo, ele incandesceu, parou, esfriou. Hoje, assustado, continua. Cão, altivo, presente, testemunha de todo o Tempo.

***

Pouco se diz que salas de roteiro são abrigo na tempestade de horas e confusão. Talvez nem todas sejam.
***

Choveu hoje, mas não chegou para nos lavar.

(diário)

(diário)

Há uma frase que não me sai da cabeça e ainda não consegui escrevê-la. Falta de tempo ou tempo de faltas. Queria que ela saísse bem, na máquina de escrever, da qual não se perde nada. Talvez seja só falta de coragem. Sem fazer, nada se perde.

Fui ouvir o Archie Shepp no SESC Pompeia É a segunda pessoa que tocou com o John Coltrane que vi ao vivo (há seis anos vi o McCoy Tyner na República, num palco da Virada). Jazz à moda antiga, solos, comunhões, entregas, aquele que traduz uma certa forma de ser humano: estar-se acompanhado e sozinho; o esforço é de todos, mas o valor é de cada um. Isso tudo porque achei o pianista pouco inspirado. Talvez por ser o mais jovem ali, sentir-se-ia intimidado. Pena ser solista.

Em casa, apeteceu-me reouvir a Richard Pryor Addresses a Tearful Nation, do Joe Henry. Agora escuto Leonard Cohen.

Cada vez me apetece menos compartilhar coisas. Ou dizê-las. Aqui ninguém, ou quase ninguém, me escuta. Falo só para mim, um pensamento.

A frase está pronta. É tarde. Será hoje?

Black Sabbath, a comunhão e a teimosia

Como há tempos vi a Trilogia dos Bichos, do Dario Argento, e fiquei interessado nas raízes do Giallo e do terror italiano, aproveitei para ver o Black Sabbath do Mario Bava.

(E, sim, o nome da banda veio deste filme)

É uma antologia de 3 histórias. Achei a primeira, sobre uma mulher estalqueada por um homem que não pára de ligar (para o telefone fixo, ainda por cima), monótona. A segunda, sobre uma família acossada por vampiros e com Boris Karloff (que também apresenta o filme), uma imitação pouco inspirada dos filmes da Hammer. Já me estava a perder num loop da Wikipedia quando chegou a terceira história, "A Gota de Água".

Uma enfermeira é chamada para preparar o corpo de uma condessa recém-falecida que gostava de fazer sessões de espiritismo. Enquanto arruma o cadáver, rouba-lhe um anel de safira do dedo e leva-o para casa. Durante essa noite, a condessa morta - ou visões dela motivadas pelo remorso, não se sabe - vem atormentar a moça.

A morta, apesar de ter um visual inquietante, também é claramente tão postiça quanto o Chucky, o Brinquedo Assassino. No entanto, os momentos em que ela assombra a enfermeira são bem arrepiantes.
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=Cdd_LxOGnkY?rel=0&w=560&h=315]

Gosto de terror barato, com uma mudança de plano brusca e um barulho alto repentino, e, por isso, aprecio muito o gênero"assombrações". Sempre pensei no porquê. Além do "bu!" visual, o fantasma não ameaça: a menos que seja um espectrinho teimoso, à Poltergeist, o máximo que ele consegue fazer é dar uns sustinhos nas pessoas. Foi então que me lembrei de uma fala no primeiro episódio d'O Reino, do Lars Von Trier:
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=ryw5vGQjOWM?rel=0&start=1776&w=560&h=315]


Eu afirmo que o medo de ser tocado, de se aproximar das pessoas, é o medo da morte. Porquê? Porque é o medo da comunhão. Sempre que vocês trocam de lugar no ônibus para evitar contato, sempre que evitam pôr o dedo na ferida da um paciente, isso é o medo da comunhão, dessa comunhão maior. Todos em que aqui trabalhamos aceitaram o seu lugar na comunhão.... Um cadáver não tem exigências.  Com generosidade sublime, ele entrega o seu corpo à ciência que pertence a todos nós.

As histórias de fantasma representam numa escala essencial um elemento que, percebi então, faz parte de qualquer história de terror: a teimosia. O stalker não deixa de importunar, o vampiro não deixa de querer morder, o demônio não sai do corpo. A assombração leva esta teimosia ao nível básico da vida e da morte: ela insiste em continuar no mundo dos vivos apesar de já não pertencer a ele.

Em qualquer variante do terror, a vítima reflete e devolve essa teimosia, insistindo num erro (não fugir do lugar mal assombrado, não chamar a polícia, não tirar umas férias, etc) até que não consiga mais sair da cilada que lhe é imposta. Num filme de terror, ninguém pensa em oferecer um café à presença incômoda que o visita; quem é vivo tem medo de dar-se, porque dar-se é ser igual aos mortos, e dar-se aos mortos ainda mais.

É por isso que Les Revenants não é um filme de terror. Quando os mortos aparecem, eles não são uma ameaça, porque eles não querem comer, tocar ou importunar ninguém; eles aparecem, e é tudo. As regras que definem o seu acolhimento são as regras do nosso mundo; não há uma insistência incompreensível e sobre-humana em invadir o espaço de alguém.

Quem diria, o terror não é mais do que emanações extremamente chatas.

Fica a reflexão, e fica também o delicioso final anticlimático de Bava, que homenageia os fazedores de cinema ao mesmo tempo que diz "não se assustem, que isto foi só um filme".
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=Bhs2XVou6Tc?rel=0&w=560&h=315]

O Oscar e os filmes simpáticos

Li há dias que pensam atribuir um Oscar a filmes populares para aumentar a popularidade do prêmio. Coisa de tontos. O Oscar nunca foi mais ou menos visto porque satisfazia o público televisivo. Nós viamo-lo para espiar figuras inalcançáveis e um mundo proibido aos comuns mortais. Isto inclui os mais cinéfilos, prontos a falar mal de tudo, e às vezes com razão (sinceramente, Gladiador?). Por uma noite, toda a gente via de relance o brilho das estrelas e sonhava.

A pouca popularidade do Oscar é um sinal dos tempos. Porque vou ficar acordado até tarde para ver quem todos os dias divulga a sua privacidade no Instagram?

Já que estamos nessa, quero propor uma categoria também: a dos filmes simpáticos. Ou melhor, a dos filmes que são atos de amor. Há meses, vi um chamado Call Me Lucky, dirigido por Bobcat Goldthwait, de quem muitos se lembrarão como o policial drogado da Loucademia de Polícia. Do início ao fim, o filme é um ato de amor ao seu mentor, o incrível Barry Crimmins. Está aqui, para quem quiser ver.


Outro, que acabei de rever, é um filme desequilibrado e bonito e encantador. Chama-se Che Strano Chiamarsi Federico, é o último que Ettore Scola dirigiu e aborda a sua relação de uma vida inteira com Federico Fellini. Dividido em duas partes que têm pouco a ver uma com a outra, pouco profundo, imperfeito e indulgente com as suas próprias imperfeições, vê-se, ainda assim, com encanto, porque percebe-se que é uma despedida e, ao mesmo tempo, uma homenagem querida de um amigo a outro.

O Atalante, espaço mental e duas masturbações

Já tinha visto O Atalante (L'Atalante, 1934) quando tinha uns 20 anos. Foi bom ter tido mais tempo agora - de vida, de espectador e de coisas pensadas.

Algo que não tinha presente quando o vi pela primeira vez é a ideia do filme enquanto espaço mental, uma ideia que me pareceu fortalecida principalmente após os surrealistas. Falei dela, sem desenvolver, quando escrevi sobre A Concha e o Clérigo, Zero de CondutaGanga Bruta.

Por "espaço mental", não me refiro ao modo como o espectador percepciona o espaço mostrado no filme, mas à forma como o cineasta trabalha o espaço e as personagens da sua história de forma a revelar algo não naturalístico; apesar de vermos formas e pessoas concretas, elas são instrumentos usados pelo autor para revelar uma psique, um sentimento ou uma tensão específica na forma como ele ou uma personagem reagem ao mundo. Estou partindo do raciocínio de Carrière e Bonitzer em Prática do Roteiro Cinematográfico, sintetizado nessa frase que qualquer pessoa entenderá:
No primeiro Rambo, tudo acontecia na cabeça da personagem; nos seguintes, tudo acontecia na cabeça do público.

Porém, estou indo além. Não existem apenas filmes que vemos acontecer na cabeça da personagem e os que vemos acontecer na cabeça do público, mas também os que vemos acontecer na cabeça de quem os fez. O autor deve, sim, deixar-se levar pelo filme, como Carrière e Bonitzer defendem, mas não só no sentido de que, enquanto criador, ele deve ser como um surfista levado pela onda/filme/história, e também no de que, enquanto narradoro filme o leva até ao espectador ao mostrar as suas escolhas sobre o ritmo dos movimentos dos atores, o andamento da edição, os diálogos e os sons, a escolha das situações representadas, a forma de enquadrar os espaços, a perspectiva sobre as cenas, a arquitetura dos cenários, as peculiaridades da direção de arte - em suma, todos os elementos cinemáticos (e não apenas os essencialmente cinemáticos, mas também o texto, a representação, a arte estática) que expressam uma ideia de como mostrar. 

Por isso, também estou indo além dos teóricos da Nouvelle Vague e afirmando o "autor" como não apenas o diretor, mas como a mente coletiva que faz o filme, soma das diferentes individualidades que o constroem, do roteirista ao projecionista, e da qual o diretor será o articulador e talvez principal, mas nunca exclusivo, decisor. Ao enunciar-se no filme, essa mente coletiva manifesta uma autoria coletiva ao construir coletivamente o narrador.

O Atalante fez-me pensar muito nisto, porque, desde o início, sentimos que ele é orientado pela presença de um olhar e de uma voz. Por trás das suas imagens, há alguém que nos quer falar da vida enquanto viagem, do casamento enquanto unidade e, mais profundamente, do espaço privado ao mesmo tempo confortável e apertado em contraste com o espaço público da liberdade, mas também do caos e da agressão.

Tudo começa com um jovem casal fazendo a lua de mel no barco em que o marido Jean é capitão. A esposa Juliette atravessa o convés ainda no seu vestido.
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=FAQnONHntIk?rel=0&w=560&h=315]

Aqui, o navio é limite, como no filme brasileiro de 3 anos antes, mas o rio também é a vida, como em Apocalypse Now. Quando, após alguns dias de viagem, Juliette pergunta "Chegaremos em breve?", Jean responde "Aonde?". A sua viagem não tem destino, ou melhor, o destino é a própria viagem.

Dentro do barco, no espaço doméstico, as coisas são apertadas. Há uma luta constante entre os corpos e os espaços, uma tensão permanente entre o desejo de liberdade e a angústia que ela acarreta, assim se antecipando uns anos a O Existencialismo é um Humanismo de Sartre:
Estamos sós, sem desculpas. É o que posso expressar dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si mesmo, e como, no entanto, é livre, uma vez que foi lançado no mundo, é responsável por tudo o que faz.

Por isso é que a figura do imediato, Père Jules, é tão importante: velho, mas forte e viril, ele simboliza a pulsão incontrolável e primitiva da vida invadindo o espaço dos recém-casados. Não é à toa que, a certo ponto, eles não conseguem ter uma saída noturna por terem que esperá-lo; Père Jules é um ser livre, anfíbio, tanto da terra quanto do rio, que traz aquela para este. A cena no quarto, em que ele mostra o seu boneco para Juliette, se despe para lhe mostrar suas tatuagens e acaba tocando acordeão, prenuncia o que espera a moça inocente quando ela se aventurar sozinha na cidade.
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=LihiCx8tDSM?rel=0&start=1788&w=560&h=315]

O que O Atalante nos mostra é, ao fim e ao cabo, pessoas tentando achar o seu caminho através da escuridão. Aquele plano da noiva atravessando o convés germina a construção de toda uma concepção do mundo. Portanto, o que aqui vemos não é exatamente o que vemos; o que acontece e onde acontece estão para servir a razão porque acontece.




Para terminar, duas curiosidades: O diretor de fotografia, Boris Kaufmann, era irmão de Dziga Vertov. E parece-me que ele, Jean Vigo ou ambos gostavam de pôr os atores a subir coisas.

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Por fim, eu poderia dizer essa é a mais bela montagem paralela de duas masturbações que já vi. Só não digo porque não sei se alguma vez vi outra.
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=gGu0WOC-7Cg?rel=0&w=560&h=315]

SPOILER: Terra sem Pão (Las Hurdes, Tierra sin Pan, 1933)

Para alguém que começou a obra destruindo toda e qualquer instituição social, é curioso como Buñuel dependeu tanto da generosidade de oportunos mecenas. Depois de os aristocratas franceses deixarem de financiar filmes de vanguarda para oferecer às esposas no aniversário, ele teve que esperar até que um amigo anarquista vencesse a loteria para produzir o seu filme seguinte.

Há algo fora do lugar em Terra sem Pão. Não Buñuel; ele continua igual a si mesmo. Só este plano de um bebê coberto de ouro durante uma festa religiosa já o prova. Um ser coberto por penduricalhos cujo valor não consegue entender é o símbolo perfeito da hipocrisia de uma Igreja Católica que condena os seus membros à corrupção moral desde a nascença.


A minha questão com o filme é que há muita coisa nele que não é crível. E isso faz-nos questionar todo o resto. Não acredito que a mulher com caxumba tenha 32 anos. Não acredito que a menina com uma simples garganta inflamada estivesse morta quando os cineastas voltaram à aldeia. Não acredito que todas as crianças da aldeia tenham sido adotadas para que as famílias pudessem receber uma pensão estatal.

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Segundo Buñuel, essa é a Miss Juventude de Las Hurdes.[/caption]É que, convenhamos: apesar de já sabermos desde L'Age d'Or que Buñuel não tem muito amor a bichos, se ele é capaz de fingir como acidentais as mortes de uma cabra e de um burro, é bem capaz de fingir muitas mais coisas!
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=-6kQhW-2W_I?rel=0&w=560&h=315]

Eu posso estar sendo injusto, pois ainda estávamos muito longe do cinéma vérité de Jean Rouch. Terra sem Pão é um documentário argumentativo, ou seja, é mais importante aquilo que Buñuel diz do que aquilo que ele mostra. Todos os defeitos humanos cabem à população de Las Hurdes: eles são pobres, doentes, mal alimentados, padecem de toda e qualquer desgraça possível e o mero fato de sobreviverem parece imbuído de uma teimosia miraculosa. Simpatizamos imediatamente com esta gente, seja ela real ou ficcional, e esse é o objetivo do autor: fazer-nos sentir compaixão pelo povo paupérrimo três anos antes do início da guerra civil espanhola. O epílogo da versão de 1936, primeiro ano da guerra, mostra bem os propósitos de Buñuel:
A miséria mostrada nesse filme tem remédio. Em outras regiões da Espanha, os montanheses, camponeses e operários conseguiram melhorar suas condições de vida, associando-se, ajudando-se mutuamente e fazendo reivindicações aos Poderes Públicos. Esta tendência que orientava o Povo para uma vida melhor orientou as últimas eleições e deu lugar ao nascimento de um governo de Frente Popular. A rebelião dos generais, ajudados por Hitler e Mussolini, iria restabelecer o privilégio dos grandes proprietários, mas Operários e Camponeses da Espanha vencerão Franco. Com a ajuda de antifascistas de todo o mundo, a calma, o trabalho e a felicidade ocuparão o lugar da guerra civil e farão desaparecer para sempre os lugares miseráveis que este filme mostrou.

Não deu muito certo, mas uma coisa é certa: Franco já se foi há muito tempo e o filme ainda é visto hoje em dia.

SPOILER: Ganga Bruta (1933)

O diretor de fotografia se chama Afrodísio, nome deveras interessante e cuja revitalização eu defendo.

Se em Limite a gente tinha um piano, aqui temos um órgão de igreja. Não sei porquê, mas o cinema brasileiro do início dos anos 30 adorava um teclado.

O filme foi gravado como mudo, e falas foram adicionadas depois para garantir a sua viabilidade comercial numa época em que o som era a novidade. Gostaria de saber, no entanto, qual foi o critério de seleção para decidir quais as falas merecedoras de gravação. Gostaria mesmo muito.
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=AYtivnLIz64?rel=0&w=560&h=315]

Antes de ser recuperado pela geração do Cinema Novo, o filme era conhecido como "o abacaxi da Cinédia", que, fundada 3 anos antes, fora a primeira produtora de cinema brasileira. Foi caro para fazer e o pouco público que o viu não ficou muito agradado. Não entendo o porquê: afinal, o protagonista apenas assassina a própria esposa na noite de núpcias e é absolvido pelo tribunal porque a morte se deveu a ele se descobrir corno involuntário. É uma história que hoje teria certamente muita mais aceitação.

Existem três cinemas em Ganga Bruta: um cinema burguês, de salão, que filma as personagens em planos quietos, em interiores, a uma distância respeitável; um cinema futurista, de máquinas e construções, com travellings feitos a partir de trens e de guindastes, com planos picados em que os personagens viram pormenores no meio da paisagem industrial; e um cinema onírico, como nas cenas de jardim, com foco suave,  oscilações de uma câmera no ombro e que segue as personagens de perto, como se fossem reflexos de suas próprias psiques.

A influência freudiana de Humberto Mauro foi admitida. O filme é cheio de símbolos fálicos, como pedestais e coisas sendo erigidas. A ninfeta Sônia parece extremamente interessada em agradar o engenheiro assassino (aliás, todo mundo esqueceu que o homem é um assassino?!), apesar de estar envolvida com Décio, o colaborador próximo do homem. Então, ela própria está sendo adúltera, como se o filme dissesse que não dá para confiar em mulheres. Hoje em dia, parece piada, mas lembra-me algo que li uma vez sobre como o machismo nem sempre se expressou pelo binômio "homem com libido descontrolada e mulher que o constrange": há muito tempo atrás, numa galáxia distante, era o ventre feminino que deveria ser domado pelo homem como se fosse um animal selvagem. Sabemos que Freud começou a carreira tratando pacientes de histeria (do grego hystéra, ou seja, "útero"): a conexão é clara.

É um filme ótimo para analisar os estereótipos de gênero construídos no início do século 20. Os homens são seres brutos que constroem, destroem, bebem, lutam e são motores e decisores. As mulheres são seres delicados e submissos que seguem as suas vontades volúveis e sentimentos inconstantes. Homem-fogo e mulher-água: Ganga Bruta não se acanha nada para construir esse simbolismo.

O nosso engenheiro assassino envolve-se numa luta com os trabalhadores numa taberna. Vitorioso, sai dela com a camisa rasgada, como uma espécie de Rambo dos anos 30.

Ganga-rambo 
O tema de Ganga Bruta é o ciúme e o desejo ou, mais propriamente, o Intruso: intruso em lugares e intruso em relacionamentos. Isso misturado com símbolos fálicos freudianos e um engenheiro assassino, claro.
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=X7-W-O7f3RY?rel=0&showinfo=0&w=560&h=315]

O que seria do cinema se os atores não tivessem costas para fazer um fundido de vez em quando?
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=8ktAFDAdsms?rel=0&showinfo=0&w=560&h=315]

Sempre tive a impressão que o brasileiro é muito melhor fazendo escândalo durante uma briga do que efetivamente brigando. Esse murro não me vai fazer mudar de opinião.
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=ZlGneo3QHgw?rel=0&showinfo=0&w=560&h=315]

Ganga Bruta é um filme dos anos 30, um pouco datado e fácil de ridicularizar. É notório que eu próprio não consegui resistir a esse exercício. Porém, ele está cheio de coisas interessantes e tem vários momentos brilhantes. Esta cena da vigília é incrível: a relação fotográfica entre as personagens e o espaço faz-nos entender que estamos em pleno espaço mental, conceito ao qual já aludi falando sobre Zero de Conduta e de que falarei melhor depois.

O filme termina com o casamento da ninfeta e do engenheiro assassino. Auguro um destino incrível para esse casal.

O que eu, homem, português e heterossexual, aprendi com Alan Ball

Lamento não andar com muita vontade de falar sobre as tropelias dos políticos no Brasil ou em Portugal. Não vejo nada de muito novo ou particularmente interessante. Além disso, ando a pensar bastante sobre a nova série do Alan Ball para a HBO, Here and Now.

A primeira razão é do mundo e do ofício. Six Feet Under (A Sete Palmos/Sete Palmos de Terra) foi a minha série preferida do início da Nova Era Dourada. Li todas as críticas contra Beleza Americana, mas continuo a achá-lo um filme lindo e uma história maravilhosamente contada.

Ver Alan Ball hoje é, de certa forma, ver o anti-Netflix. Here and Now não tem um gancho incrível como as séries da plataforma. "Um rapaz começa a alucinar com o número 11:11 e isso tem implicações para toda a sua família" não é uma premissa high-concept como "um político capaz de tudo para se tornar presidente dos EUA" ou "Really dark Amblin".

Porém, onde cada vez mais séries do Netflix falham - no desenvolvimento da premissa sonante - é onde Alan Ball brilha. As personagens são cheias de contradições, defeitos e, por isso, profundamente humanas. A família, núcleo da série, evolui ou regride como um grupo em que cada um cumpre uma função. Já não temos homens difíceis, temos pessoas difíceis. É difícil recomendar uma série de Alan Ball para um amigo, porque humano é um conceito difícil de recomendar - embora seja ótimo para assistir.

A segunda razão é minha. Here and Now lembra-me de assistir Six Feet Under com 20 e poucos anos e de pensar, por exemplo, que nunca vira uma série com personagens usando drogas sem ter moralismos atrelados. E lembra-me também que, assistindo-a, me tornei uma pessoa melhor.

Explico-me. Cresci numa vila pequena, num Portugal pequeno. Felizmente, fui educado bem o suficiente para reconhecer e matar na base a maioria dos preconceitos que vinham com a cultura em geral (obrigado, família; obrigado, professores). Por isso, nunca achei que afetos íntimos ou públicos fossem coisa a ser ditada por terceiros.

Ainda assim, raramente eu vira dois homens beijarem-se na rua. Não na minha terra, pouco no meu país. E, no íntimo, bem no íntimo, a imagem causava-me estranheza. Não reprovação ou incômodo, reparem, mas era algo que me suscitava reflexões silenciosas e condescendentes, ao estilo "que bom que estas pessoas se estão amando livremente, olha que gesto de coragem, muito bem!".

Eu não gostava disso, porque - eu sabia - enquanto não sentimos algo como banal, não conseguimos senti-lo por inteiro como normal. O normal tem que ser um pouco banal.

Six Feet Under tinha sexo. Muito sexo. Heterossexual, homossexual, entre adultos, jovens adultos, velhos adultos, dentro de relacionamentos, fora de relacionamentos, à missionário ou com fetiches. Como as drogas, o sexo não era apresentado com moralismo; era mostrado assim como ele é, como algo que acontece.

No primeiro episódio, ver David beijar Keith fazia-me pensar "que afirmação, que autor corajoso, muito bem!". No último, David apenas beijava Keith, e nada mais. Lembrei-me disso aqui no Brasil quando a novela mostrou o primeiro beijo gay e todo mundo aplaudiu (mesmo; escutei na minha vizinhança). Gostaria que chegasse o dia em que já se viram tantos que nem dá vontade de aplaudir.

Acho que, para assistir Alan Ball, é preciso gostar de pessoas. Eu gosto de pessoas. Graças a ele, pude gostar um pouco mais de mim também.

A Croácia é nazista?

Há uma coisa que me inquietou durante a Copa, que foi a insistência em dizer que os jogadores e a presidente croata eram fascistas e nazistas. Eu já estive na Croácia. Achei um lugar muito bonito e com pessoas muito simpáticas. Vi muitos sorvetes e nenhuma suástica. Depois de ver o seguinte vídeo, pesquisei o que queria ter pesquisado semanas atrás.

[facebook url="https://www.facebook.com/playgroundenglish/videos/715731325426867/" /]

PRÉVIAS
O lixo do passado caiu forte nalguns lugares.

Uma vez vi um documentário chamado What Our Fathers Did: A Nazi Legacy, sobre dois filhos de criminosos de guerra nazistas.

Há uma sequência que foi particularmente reveladora: um deles vai a uma festa de aldeia na Ucrânia onde o pessoal fazia uma reconstituição das Wafen SS. Tipo Meu Querido Mês de Agosto, mas com suásticas.

Sempre tinha pensado os nazistas como invasores. Foi a primeira vez que percebi que há gente que os associa a libertação e independência, principalmente quando comparados com os comunistas que vieram depois.

Imagino que isso, misturado com os nacionalismos exaltados com a guerra da Jugoslávia, deu uma bela duma salsada.

(aliás, se tiverem estômago, vejam A Serbian Film e curtam a metáfora sobre a insustentabilidade da vida após uma guerra civil)

Uma maravilha, a confusão que o lindo do século XX deixou pelos Balcãs e Leste Europeu, né?

SOBRE O VÍDEO E AS ACUSAÇÕES

O HDZ, partido da presidente, não é exatamente de extrema direita. É um partido de democracia cristã, tipo CDS-PP em Portugal ou - surpresa! - o Democracia Cristã no Brasil. Isso não é grande coisa, mas também não é lá essas coisas (coisas nazistas, bem entendido).

A Croácia é um regime parlamentarista, então, a presidente não terá tido grande responsabilidade no péssimo tratamento dos refugiados. Nem sei se ela ratifica as leis do governo. É verdade que este também é HDZ e que governa em aliança com partidos mais nacionalistas e radicais.

Porém, a Croácia não é de todo um país entregue à direita: a coligação do SPD (o maior partido da oposição, continuação da antiga Liga dos Comunistas e que estava no poder antes) perdeu por uns meros 3 pontos.

Curiosamente, o senhor do SPD, de esquerda, só perdeu porque foram vazados uns áudios dele numa reunião com veteranos de guerra a dizer que a Bósnia não é um país de verdade e que os sérvios são lamentáveis.

(repito: salsada, salsada)

Sobre a bandeira, eu até fui pesquisar quando isso começou a aparecer, mas, parafraseando o Trumpa, acho que é fake news.

A bandeira da Croácia nazista tinha sobreposto o "U" da Ustase.

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Essa da foto parece-me mais a que eles adotaram em 1990, imediatamente após a queda do comunismo e logo antes da independência, e era a bandeira da oposição ao comunismo no exílio. A bandeira atual é uma atualização dessa. É verdade que o brasão é semelhante, mas também é verdade que esse brasão já era croata vários séculos antes de Hitler ser bebê.

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A minha conclusão é que a Croácia é claramente um país com uma série de contradições agudas após guerras e totalitarismos vários, que deram em nacionalismos exacerbados e políticos que se aproveitam deles.

Nazista e fascista, não me parece.

SPOILER: Zero de Conduta (Zéro de conduite, 1933)

Vi este filme depois de ter revisto A Vida de Brian, o que me deixou pensando: o banimento de um filme significa que ele será considerado obra-prima décadas depois? Será esse o destino da peça recentemente banida em Pernambuco?

Zero de Conduta foi uma grande influência de Truffaut em Les quatre cents coups. Vejo-o integrando uma linhagem francesa exímia em filmar e mostrar os dilemas de crianças e adolescentes, onde incluo também NapoleãoEntre les mursÊtre et avoirLes Choristes, Un sac de billes. Filmar com crianças é difícil, mas está cada vez mais claro que os franceses criaram uma tradição e dominaram essa arte.

Jean Vigo era filho de um anarquista espanhol que morreu torturado e talvez isso explique o simbolismo que se monta desde muito cedo: os alunos são bagunceiros, mas espontâneos, solidários e bons, enquanto os professores e diretores já se deixaram corromper pela autoridade da vida adulta.

  •  Um dos alunos tem um ataque de sonambulismo no dormitório. Os outros são solidários com ele, como se eles soubessem quão precioso é manter um sonho no meio de uma realidade dura.

  • Há um adulto que está mais próximo dos alunos do que dos professores: o jovem monitor, que, como diria Capitão Nascimento, ainda não entrou "no sistema". Ele imita Carlitos, brinca, persegue uma paixão no meio de um passeio escolar, faz um desenho de Napoleão que vira uma personagem animada. Tudo é possível para quem não perde a imaginação, parece dizer Vigo.

  • O diretor da escola, a figura de maior autoridade, é um anão. Na sua primeira aparição, vemo-lo guardar o seu próprio chapéu sobre uma redoma de vidro. Ou seja, a autoridade é um adorno que se adquire e se guarda para ser exibido. Há lugar para a ostentação, mas não para o sentimento - por isso, mais tarde, o diretor censura alunos por serem amigos, dizendo que algo assim não pode ser.

  • Um professor gordo e asqueroso, que fica cheirando as coisas sem motivo, toca inapropriadamente nos alunos. Um deles, claramente farto de aguentar o velho, fala que ele é "um monte de merda". Estamos falando sobre abuso infantil em 1933 e mostrando como a consciência de que ele o é existe desde sempre. Nunca mais aceitem o argumento "antigamente era diferente" para nada.

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O que é essa câmera lenta, meu Deus? As penas voando como flocos de neve. Os alunos marchando como soldados em plena campanha militar. Que coisa bela.
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Durante a comemoração, eu penso em Fellini. Eu sei, eu sei: penso em Fellini muitas vezes. Mas é sério: só falta uma multidão ruidosa fazendo uma procissão para ser uma cena do mestre italiano. Repararam que a audiência é composta por bonecos? Este é só mais um dos momentos em que o filme nos diz que não estamos num espaço naturalístico ou concreto, mas mental, uma mistura assumida das memórias de Jean Vigo do colégio interno com as fantasias de como poderia ter sido. Depois dos filmes franceses desta época que já vi, parece-me claro que a influência surrealista e o seu tom onírico pesado foram marcantes, ainda que aqui o sonho venha filtrado pela memória.

No final, os alunos revoltosos são vitoriosos. Mas será que são mesmo? Enquanto eles escalam um telhado-montanha e festejam a sua vitória, os adultos observam-nos, protegidos no conforto de uma sala e com um certo orgulho paternalista. Parece que, a qualquer momento, eles podem sair para interromper a festa. Parece que eles pensam "oh, como nós também já fomos assim" e que o que espera os jovens do outro lado é transformar-se no que eles mais odeiam. No entanto, esse momento posterior já não entra no filme: ele é um recorte e a lembrança boa daquele dia em que tudo parecia poder ser diferente

SPOILER: O Vampiro (Vampyr, 1932)

Carl T. Dreyer já provara que sabia fazer imagens com força, mas em 1932 o jogo tinha mudado. Para os diretores desta época, considerar o som parece ter sido tão melindroso quanto considerar a televisão 30 anos depois ou a internet hoje em dia. Vampyr até pode ter som, mas os intertítulos frequentes e a forma de filmar fazem-nos pensar que estamos vendo algo que, formalmente, está ainda no reino do mudo.

Dá para entender o porquê. A dublagem ainda não era uma solução tecnicamente perfeita, e os atores tinham que dizer as suas falas em duas ou três línguas diferentes para encaixar direitinho as vozes que vinham depois. Aqui, Dreier filmou em francês, inglês e alemão - e talvez por isso reduziu ao mínimo o número de diálogos.

Não sei se Dreyer confiou que o público já conhecesse os contos de Sheridan Le Fanu aqui adaptados ou se nem quis se incomodar com isso, mas a verdade é que este filme é muito menos uma história e muito mais uma coleção de inquietações visuais assentes no ritmo, tanto da edição quanto do movimento.

O ator protagonista é creditado como Julian West. Na verdade, ele é Nicolas de Gunzburg, um riquinho de ascendência russa, brasileira, portuguesa e polonesa. Na época, era moda entre os aristocratas financiar curtas de diretores de vanguarda (já tivemos aqui outro exemplo, no profundamente antiaristocrata L'Age d'Or). No seu entendimento particular de lei Rouanet, Gunzburg, que queria muito convencer a família de sua vocação para representar, prometeu financiamento a Dreyer com a condição de ser o ator principal do filme. O diretor acedeu e soube aproveitar as capacidades limitadas de Gunzburg para o papel de um homem que não faz muito mais além de observar coisas estranhas com uma expressão nula.

Estamos vendo aqui o início do cinema de terror (não por acaso, a estreia do filme foi atrasada para não competir com o Dracula de Tod Browning e o Frankenstein de James Whale, ambos de 1931). O suspense ainda não é bem construído: momentos que esperaríamos lentos são rápidos demais, como uma porta misteriosa se abrindo; e momentos que esperaríamos rápidos, como a leitura de um texto escrito, são lentos demais.  Mas vamoquevamo. A direção e o ritmo são hipnóticos, lembrando o paralelismo entre cinema e hipnose que Lars von Trier (admirador confesso de Dreyer, que até dirigiu um roteiro que o este deixou incompleto) fez nos seus primeiros filmes. Os planos são cheios de sombra, movimentos sinuosos, imagens misteriosas, e fascinam tanto que até nos permitem ultrapassar a falta de empatia com o protagonista. Vejam esse trabalho com a sombra, por exemplo. Boa sorte para os filmes da Marvel em fazer em alguma coisa que deixe você mais inquieto.
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A primeira vez que vemos alguém sorrir é quando uma mulher se torna vampira na nossa frente, como se o sorriso fosse coisa do demônio e a melancolia e a tristeza a condição natural do ser humano. Um sorriso na mão de Dreyer é tão ou mais inquietante do que uma dentadura na mão de Coppola.
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Mais do que um filme de terror, Vampyr parece uma exploração da psique de um homem que perdeu a noção de limites entre a realidade e imaginário, uma espécie de Dom Quixote das trevas. Dreyer constrói o filme como um mistério surrealista, onde o protagonista anda por um mundo desconhecido e ninguém questiona a sua presença. Mas, quando um livro relata que os vampiros andam por um reino de sombras, percebemos que é precisamente isso o que ele está fazendo. E, então, apercebo-me: é também isso que eu, espectador, estou fazendo. Então, o filme é a fantasia tanto do protagonista quanto a minha; e somos, tanto eu quanto ele, vampiros dessa fantasia que observamos.

Eu disse "fantasia"? Leiam "pesadelo".

SPOILER: Limite (1931)

A princípio, temia falar sobre cinema brasileiro, porque isso significa admitir o meu desconhecimento de grande parte da cinematografia do meio onde trabalho. Mudei de ideias. Primeiro, porque esta é uma viagem de conhecimento - que não deve ser confundido com o autoconhecimento da moda; esse é circunscrito a nós mesmos, o que me parece um campo bastante limitado. Segundo, porque imagino que muito boa gente (excluindo os meus bons amigos bacharéis da ECA-USP) também não viu as obras de que vou falar aqui.

A pergunta surgiu-me: devo assistir estes filmes antigos como um espectador da época em que eles saíram ou como eu, JV Nande, vivo décadas depois e com uma cultura visual completamente diferente? A primeira hipótese seria impossível para mim. A segunda, injusta para os filmes. Então, tento fazer as duas coisas: contextualizá-los no tempo do mundo e da arte, sim, mas sendo fiel ao meu gosto. Afinal, sou cinéfilo, não professor.

Li um pouco sobre Limite antes de o ver, mas expressões como "proto-imagem", "estado amorfo fluido" ou "cérebro-câmera" não me entusiasmaram por aí além.

À primeira vista, ele me lembra muito A Concha e o Clérigo: plástico, cheio de fundidos, enquadramentos fora do comum, o espectador sendo convidado a construir o significado do filme. O ritmo é lento, bem mais lento do que o dos filmes mudos sobre que escrevi até agora. Nota-se a sua intenção de fazer arte pela arte e os poucos recursos com que foi filmado. Talvez o título seja uma piada com o tamanho da produção.

Em todos os sentidos, este é um filme experimental, porque faz experiências com a linguagem cinematográfica, mas também porque Mário Peixoto experimenta o cinema. O fotógrafo Edgar Brasil parece livre para fazer o que quer, e os seus travellings e planos picados e enviesados lembram o que, menos de uma década depois, Orson Welles, suposto admirador, faria no cinema americano. Porém, às vezes, parece que o filme nos diz "olha eu filmando isso aqui, que legal!", ou porque nos quer fazer ter a noção da câmera ou porque o câmera padecia de TDAH.  Veja-se este plano, por exemplo, a que gosto de chamar "mas que linda florzinha!".
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Limite tem 87 anos, a mesma idade de Fernando Henrique Cardoso e de Paulo Maluf. Todas as pessoas que nele aparecem e que o fizeram estão mortas.  Porém, digam lá se esta rapaziada não parece os vosso amigos hipsters com um belo filtro Moon por cima.

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O cinema é uma arte de fantasmas. Ou, como melhor diria André Bazin:
Essas sombras cinzentas ou sépias, fantasmagóricas, quase ilegíveis, já deixaram de ser tradicionais retratos de família para se tornarem inquietante presença de vidas paralisadas em suas durações, libertas de seus destinos, não pelo sortilégio da arte, mas em virtude de uma mecânica impassível; pois a fotografia não cria, como a arte, eternidade, ela embalsama o tempo, simplesmente o subtrai à sua própria corrupção.

Pergunto-me se, surgido em plena ditadura Vargas, Limite não terá um viés político. De qualquer forma, o sentimento que nele domina parece-me endêmico no Brasil: neste país gigante, as pessoas sentem-se presas e sem escolhas perante um destino do qual não conseguem escapar. Será que os amigos de Mário Peixoto entenderam isso na primeira sessão do filme? Ou será que saíram sem terem entendido absolutamente nada e falando para o diretor Nossa, muito bom, que filme maravilhoso você fez?

Se há um defeito que se poderá apontar a Limite é que ele é visualmente repetitivo. Um nadica de nada, assim. Não precisamos ver o mesmo plano duas, três, quatro vezes para entender o que ele quer dizer. Não precisamos de tantos cactos para espicaçar nossa curiosidade. Não precisamos de planos intermináveis das ondas do mar para sacar que está sendo tratada a transitoriedade do humano em contraste com a violência perene da Natureza (quem falar que Mangaratiba, onde o filme foi gravado, é uma das suas personagens principais não vai ganhar o prêmio de Frase Mais Original e/ou Menos Óbvia do Ano).  Limite é como um amigo teimoso que suportamos para ouvir a novidade interessante que ele tem para nos contar.

Não sei se é devido à Depressão americana ou ao avanço dos fascismos, mas sinto nas obras deste período um pessimismo enorme. Em Limite, uma mulher que foge da prisão e uma esposa que abandona o marido abusador ganham o prêmio de ficarem presas num barco com um homem cuja amante morreu. Já ouvi histórias mais alegres. Aliás, um dos livros que mais me fez rir na vida chama-se Três Homens e Uma Canoa.

Dá para entender a importância de Limite, uma obra tão sensível, pessoal e delicada, para o cinema brasileiro, principalmente pelos caminhos que abriu. Glauber Rocha e o Cinema Novo não teriam sido o que foram sem ele. Faz todo o sentido que a Abraccine o tenha colocado em primeiro lugar na sua lista dos 100 melhores filmes brasileiros.

Ainda assim, gostava que alguém me dissesse que, na época em que foi gravado, já havia protetor solar, porque, se não havia, coitadinhos desses atores...

SPOILER: Luzes da Cidade (City Lights, 1931)

O filme é definido na abertura como um romance cômico em pantomina. Chaplin, pantomineiro incorrigível, resistiu por uns 10 anos a integrar diálogos falados nos seus filmes. Havia um lado de sobrevivência: a figura de Carlitos/Charlot fez dele uma estrela global, uma das primeiras, precisamente porque Carlitos não falava uma língua específica. A sua magia é que ele poderia ser qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo.

Ora, isto é sabido e repetido. O que não é tão sabido e repetido é que, ainda que resistisse a usar diálogos, Chaplin usou muito bem os recursos do som! A trilha, pela primeira vez escrita por ele e pensada para não ser tocada ao vivo por uma orquestra, acompanha as inflexões e movimentos dos atores. Se alguém bate num piano em cena, o som de um piano sendo batido entra na trilha. Mais do que alguém que nega um recurso, parece que vemos um perfeccionista aprendendo a usá-lo. Veja-se a cena em que ele engole o apito para entender.
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Neste filme, Chaplin já não faz de si o centro de todos os enquadramentos ou de todas as cenas. 10 anos antes, em The Kid, ele olhava diretamente para a câmera para enfatizar piadas; agora, ele é cada vez menos performer e cada vez mais diretor/autor. Três sequências me chamam a atenção.

O filme abre na inauguração de uma estátua pelas autoridades da cidade. Quando elas dão os seus discursos, as suas vozes são cornetas desafinadas (a professora dos Peanuts claramente foi inspirada neles) e, quando levantam o lençol da estátua, descobrem que Carlitos/Charlot está lá dormindo. Enquanto ele tenta descer da estátua, a sua atrapalhação quebra ainda mais a solenidade e a convenção do momento. Eu diria que é uma das cenas mais subversivas que alguma vez se filmou.

A mise-en-scène desta sequência no restaurante é - não há outra palavra - perfeita.

Já ouvi dizer muito que Chaplin é um bailarino. É verdade, mas só meia verdade: ele é um diretor bailarino, porque a dança é dele com a câmera. A famosa cena do ringue de boxe é um claro exemplo disso.

Começa-se a notar a curva descendente da personagem de Carlitos/Charlot. Quanto mais poderia render esta figura, inspirada nos bêbedos e no vaudeville londrinos da virada do século XIX para o XX, quando o seu cenário da cidade americana estava em plena transformação e a Grande Depressão criava todo um novo e cruel tipo de miséria? Por enquanto, ele retém o encanto de quem parece, simultaneamente, estrangeiro de país e estrangeiro de tempo.

Mascarada sob uma história romântica, Chaplin dá-nos uma moral que, embora cheia de sentimento, é, na verdade, bem pesada: se o valor de um homem é medido pelo bem que ele faz aos outros, mas a lei, a justiça e os poderes não querem nem saber disso, porque devemos então considerar esses poderes?

Ainda assim, é a terceira vez que chorei no final deste filme - mesmo número de vezes que o vi.