2011

Archive for 2011

Conto inédito: "Carta aberta do Grupo das Sextas Feiras relativa ao falecimento do Presidente da República"


Escrevi este conto em 2010 para uma revista institucional. Compreensivelmente, ela recusou-o e, para o substituir, escrevi uma carta triste. Ele ficou guardado no meu computador, até que hoje, enquanto via o V for Vendetta, me lembrei que estive em Londres no 5 de Novembro, onde me encontrei com manifestações a serem travadas, e que hoje vi um vídeo de estudantes, que se manifestavam sentados e pacificamente, a serem sprayzados com gás pimenta, como quem passa Raid em melgas porque nos vêm perturbar o sono. Por isso tudo, acho que chegou o momento de o dar a ser lido.


Caro leitor, se nada mais fixar deste texto, eu desejo, em representação do Grupo das Sextas-Feiras, que pelo menos fixe a seguinte mensagem: não fomos nós a matar o Presidente da República. Nós apenas operámos a consequência da causa que foi a acção do Governo e de uma classe política corrupta, do mesmo modo que um buraco numa parede é causado, não pela bala que a fura, mas pelo homem que a dispara. Os motivos para o rapto e condições para a libertação do sequestrado foram assumidos desde o início e tinham como principais pontos os seguintes:

- Fiscalização de todos os actos governamentais por uma entidade civil, apartidária e independente;
- Suspensão das quotas de produção impostas pela União Europeia;
- Reforma agrária, com limitação dos hectares apropriáveis pela mesma pessoa singular ou colectiva;
- Obrigatoriedade das multinacionais se submeterem a uma fiscalização prévia de merecimento ético e ecológico antes de poderem actuar no país;
- Possibilidade de expulsão das mesmas, caso esse merecimento se perca;
- Declaração de nulidade de todas as regras de propriedade intelectual;
- Nacionalização de toda e qualquer forma de propriedade em zonas seleccionadas, com especial rigor na ilha da Madeira;
- Definição de intervalos rigorosos que progressivamente anulem as diferenças salariais entre os trabalhadores dentro da mesma empresa, em todas as empresas portuguesas;
- Fim do ensino universitário tendencialmente exclusivo, privatizado e com finalidade lucrativa, com um pedido oficial de desculpas à nossa geração e ao país.


Estes pontos foram ditados ao PR assim que ele acordou do transe que lhe induzimos e repetidos a todos os nossos interlocutores durante o processo de negociação que se arrastou durante uma semana. Recordo que, após essa primeira leitura, o comentário feito pelo PR foi particularmente insultuoso relativamente às nossas boas intenções e, como tal, tivemos de pô-lo a dormir outra vez. Mas isso agora não interessa.

Durante a negociação, ficámos surpreendidos com o modo como o Governo e também a Casa Civil pareceram particularmente indiferentes aos nossos apelos. Os nossos telefonemas não eram atendidos e, quando o eram, não ouvíamos os famosos ruídos que indiciavam escutas. Ao contrário de tantos cidadãos, ninguém se interessava pelo que dizíamos, mesmo que tivéssemos raptado o Presidente. Riram-se das nossas condições, não acreditavam em nós, ainda que (e talvez precisamente porque) não exigíssemos qualquer quantia monetária para a libertação e apenas o cumprimento daqueles nove pontos, que considerávamos, ainda e sempre, necessários para que este país se tornasse, se não recomendável, pelo menos tolerável. Já num período de míngua de soluções que não se resolveu nem quando propusemos que o PR falasse directamente ao telefone com o PM e o presidente da AR – as agendas carregadas deles não o permitiam - vimo-nos obrigados, em desespero, a recorrer à solução que não desejávamos, mas que na altura se apresentou como a única possível.

A primeira orelha do PR foi enviada no dia 18 de Março para a sede oficial do maior partido da oposição e não, como correu nalguns fóruns anarquistas na Internet, directamente para a Primeira-Dama. Reacção: silêncio, apesar de lá estarem bem claros todos os nossos devidos contactos e motivações. Tememos por um extravio postal e, a 20 de Março, cortámos a segunda orelha, que remetemos para a sede do partido do Governo em envelope verde registado, o que, para uma pequena organização clandestina, representou um grande custo… mas não suscitou impacto maior do que os CV que enviámos logo após acabarmos a licenciatura.

Quero salientar o seguinte ponto: todas as intervenções cirúrgicas foram executadas pelos nossos membros estagiários de Medicina, com recurso ao material que conseguiram surripiar dos respectivos locais de trabalho. Somos raptores, mas não somos bárbaros. O sofrimento do PR foi reduzido ao mínimo possível e foi com satisfação que verificámos que, nos seus breves intervalos de semi-consciência, nada de reprovador exprimiu sobre a nossa acção. Enquanto órgão unipessoal, o PR compreendia que o extirpássemos dos órgãos de modo lento e calculado. Isso animava-nos e levava-nos a entender que estávamos no caminho certo.

Considero que, após esta contextualização, o leitor conseguirá entender e, quem sabe, ser compassivo com o nosso acto seguinte, discutido até à exaustão em várias reuniões extraordinárias e levado a cabo com grande esforço e mobilização de meios. O aterrador silêncio que era contraposto às nossas acções só podia ser quebrado, sabíamo-lo, com uma atitude drástica. Como tal, no dia 22 de Março anestesiámos e desmembrámos o PR. Distribuímos os seus membros pelos seguintes locais: as pernas para o centro do campo dos dois estádios da Segunda Circular; o braço esquerdo para o nariz do Cristo-Rei; e o braço direito masturbando um dos leões nas escadas da Assembleia da República.

Concordando ou não com o método escolhido, o leitor diria que isto terá chegado, que esta acção foi suficiente para que pelo menos alguém se interrogasse sobre o se passava. Mas isso não aconteceu. Da noite para o dia, os monumentos foram limpos dos elementos perturbadores, a normalidade foi reposta. Então compreendemos: alguém tinha interesse em que não se soubesse que o PR fora sequestrado, como se pudesse beneficiar de um Palácio de Belém silencioso. Ou então alguém preferiu assistir à lenta decomposição de um homem a fazer cumprir nove simples pontos - presumindo, claro, que saberia fazê-los cumprir.

Quando o estado de fraqueza extrema do PR causou o seu falecimento (ao que parece, ele padecia de anemia crónica, o que nunca nos foi comunicado), o Grupo das Sextas-Feiras foi desactivado e todas as suas actividades suspensas. Colocámos o semi-presidente no chafariz do Freeport de Alcochete, onde considerámos que seria fácil encontrá-lo. Porém, até hoje não ouvimos qualquer notícia que relatasse a descoberta do corpo ou mencionasse os factos enumerados na nota que deixámos com ele. O tempo foi passando e a única conclusão possível é que não nos faremos entender por quem de direito. Ninguém nos vai ouvir, ninguém nos vai ligar. Nem você, caro leitor, que provavelmente estará a ler este texto como se de ficção se tratasse. Passados todos estes dias, percebemos enfim que nem a morte do Presidente da República chega para alguma coisa neste mundo estúpido. Jogando limpo ou fazendo batota, nunca venceremos nada e essa é a única certeza possível.

Cumprimentos.

O poema novo que disse no Slam Lx na semana passada

Eu sou um homem de metáforas
Perdido nas diásporas
Tudo o que digo
Pode ser mal entendido
Tudo o que faço
Pode ser um embaraço

Um dia, disse a uma amiga
“Dás-me frio na barriga”
E ela, agradecida,
Ofereceu-me a perseguida
Mas não era frio de paixão
Era só indigestão

Há pouco, a moça do bar
Fixou em mim o olhar.
E perguntou “queres gelo?”. Não era feia
E falei de mamilos e nove semanas e meia
Porque a mente não me pára
E ela atirou-me o gelo à cara

Eu sou homem de metáforas
Hipérboles e anáforas
Aquilo que falo
Será burro ou cavalo.
E acostumei-me, de murro em murro,
A passar de cavalo pra burro.

Quando ligo a televisão
E vejo o estado da nação
No Parlamento
Não sinto qualquer sofrimento.
Enquanto tomam conta de nós
Não precisamos levantar a voz

Tudo está bem
Não olhes para além
Deixa-te ficar onde estás
As coisas não são más.
Tens a vida assegurada
Não te incomodes com nada.

Sou um homem de ironias
Sarcasmos e alegrias.
Entende-me quem quiser,
O resto só se puder.
Não confundam a minha voz,
Ela é minha, ela é nós.

Eu sou um homem de metáforas,
Digo palavras tão ásperas.
Vagueiam entre o bem e o mal
Como o pecado original
E vêm plenas de prazer
Doam a quem doer.

Eu não sou quem aqui está
Neste palco, pessoa má
Ou boa, depende da perspectiva.
Eu não sou da gente ativa
Que faz o mundo funcionar
Com o Excel a dar e a dar.

Eu sou dali atrás,
Só no escuro estou em paz
E sozinho é que me encontro
Me defino ponto a ponto.
Eu não sou eu.
Eu não sou eu.

Enquanto lucubro, penso:

Há tempos, uma amiga disse-me que esperava que eu não me tornasse cínico. Está muito difícil controlá-lo. Tenho ao mesmo tempo uma confiança muito grande nas pessoas e uma certeza inabalável que elas são incapazes de não errar. Ao longo do tempo, fui trabalhando esse desejo, como vi o David Lynch dizer uma vez que sabe que uma escultura está pronta porque sente-o nas pontas dos dedos. Eu fui trabalhando esse desejo e expetativa até uma condição em que esse erro me aparece carinhoso, do tipo "que carinhosa, esta pessoa, não conseguiu manter a pila dentro das calças e fodeu a cena boa que tinha" ou "que querida, esta pessoa, encheu-se de dívidas e agora vai redescobrir que a natureza humana não é muito melhor do que a da lama" ou "que carinhosa, esta pessoa, fez um casamento e um bebé porque achava que queria ser igual à amiga e agora já olha para o marido e para o filho com ar de quem quer estar longe, longe, longe". Ou seja, não tenho fé nenhuma em ninguém. Ao mesmo tempo, adoro toda a gente. É divertido.

It's funny how things go

Tenho três coisas para fazer, mas não vou citar Pessoa, não vou citar Pessoa, não vou citar Pessoa, não vou citar Pessoa, não v...
Ai que prazer não cumprir um dever.

Foda-se.

Era desnecessário, isto. Até porque não tenho prazer nenhum em não cumprir os deveres. Não os cumprir agora significa ter que os cumprir depois e com menos tempo. Estou velho, está visto.

A razão para adiar é não conseguir tirar da cabeça que não me lembro de nenhum equivalente em inglês para as palavras "escarrar" e "escarro". "Spit" é insuficiente, "sputum" é insatisfatório. Mas "escarro" lembra muito "escara", ou "scar", o que faz sentido, de algum modo, porque "Scar" é o álbum que contém uma canção que tenho ouvido muito.

httpv://www.youtube.com/watch?v=vii5ydVSNec

Isso faz ainda mais sentido, até porque este texto começou com música. Vocês não sabem, não podem saber da minha vida, mas tudo tem a ver com ter visto um filme quando era muito novo. Aos 1m55 deste vídeo, fica explicado.

httpv://www.youtube.com/watch?v=ZS_GagmpfvU

Fico feliz por ter esclarecido tudo.

Poema de ler baixo

entre o que vês e dizes
não existe nada
és simples e sem malícia
não sabes nada
de computadores
não temes pedir
ajuda a estranhos

entre o que vês e dizes
não há teias ou
imundície há só
o que és e aquela
transparência
do que é real
e luz

entre o que vês e dizes
sorris porque
achaste enfim quem
te matasse a fome

fizeste um sanduíche
com minhas palavras

e comeste-me
a vergonha.

Quero subsídios estatais para programas de reality!

Cheguei hoje à conclusão que os programas de reality TV promovem a imagem de um país no estrangeiro e é essencial que eles sejam apoiados pelos Ministérios de Turismo. Sinceramente, que país preferiam visitar?

Portugal...
httpv://www.youtube.com/watch?v=10jnI1DtaOY

...o Brasil...
httpv://www.youtube.com/watch?v=CP64KdHAqBs

...ou a Suécia?
httpv://www.youtube.com/watch?v=ZPKacexvc6s

"Brasileiro não é de confiança": negando ideias, 2

Série de posts sobre coisas que se poderão pensar sobre o Brasil e os Brasileiros e que não são assim bem verdade.

Em Portugal, é normal pensar-se que a palavra dos brasileiros não é confiável, que não se pode contar com aquilo que eles prometem, que não se deve esperar muito dos seus acordos. Como em muitos outros mal entendidos entre as nossas duas nações, isto surge de um desencontro que é mais semântico do que psicológico. É o mesmo tipo de engano que leva os brasileiros a pensar que português precisa de ter tudo muito bem explicadinho porque é menos provido de capacidade cerebral. Não é por isso (a menos que seja um português pertencente à classe política), mas sim porque não falamos a mesma língua. A palavra "camisola" em Portugal é como falar "blusa". Tipo, não é uma coisa para as senhoras usarem enquanto dormem, significado de "camisola" no BR, mas à qual a gente chamaria "camisa de dormir". Um português que chega aqui e percebe aquilo que tem para jogar tem duas alternativas: ou é chatinho com explicações ou morre soterrado numa avalanche de confusão.

Quando eu cheguei ao Brasil, o amigo com quem morei uma semana antes de ter arranjado casa (ou seja, antes de ele me ter expulsado), disse-me que, se acontecer alguma coisa, se vir que algo está a demorar muito, que não me estão a dar o que preciso, descontrai. Não te enerves, diz ele, e conversa de boa. Conversar é, realmente, o melhor a fazer. O brasileiro é emocional, comunicativo e dá importância às impressões que vão sendo transmitidas. A partir do momento em que entendemos isso, não há razão para que algo dê errado. É só contar com uma diferente forma de agir. Brasileiro não falta aos compromissos, mas é descontraído com eles, e comprometer-se implica uma diferente forma de agir e de falar daquelas que há em PT. Dizer que "temos de jantar", que "marcamos para sair", que "vamos combinar" não significa que se jante, que se saia ou que se combine. Mas ele está sendo sincero. Se alguém fala isso, é porque quer mesmo que isso aconteça. Porém, a vida no Brasil é um eterno devir e dá muitas voltas. Brasileiro sente que é preciso deixar que a vida aconteça e as vontades se encontrem a certo momento. Por isso, calma.

"O Brasil é um caos para viajar": negando ideias, 1

Série de posts sobre coisas que se poderão pensar sobre o Brasil e os Brasileiros e que não são assim bem verdade.

O Brasil é um país que assenta na necessidade de se movimentar e quem oferece esse tipo de serviços sabe-o muito bem. Os transportes no Brasil são ótimos. Nas grandes cidades, então, nem se fala. O Metro de São Paulo é dos mais eficientes que já vi, com um tempo de espera muito reduzido. Tem muita gente, é verdade, e a hora de ponta é à japonesa, com toda a gente espremida dentro das carruagens, mas funciona relativamente bem mesmo nessas horas. Noutras cidades onde estive, como o Rio, Recife ou Belém, os transportes também são bons, a informação sobre eles é de fácil acesso e fiável e os destinos são inúmeros, para além de lugares de mais difícil acesso terem gerado o um setor que não existe na Europa, o moto-táxi.

Isso é reflexo de um país onde durante muito tempo foi impossível para uma grande parte da população - e não só os mais pobres - comprar um carro. A industrialização dos anos 50 foi feita com um grande companheirismo entre classe política e fabricantes de automóveis e a primeira deixou cair as ferrovias. Com muita gente sem carro a morar nas periferias e a precisar de ir para as cidades vizinhas ou para os centros para poder trabalhar, as empresas de ônibus farejaram a oportunidade.

Sem discutir se o que veio primeiro foi o ovo ou o cu da galinha, há também uma propensão, digamos, psico-social. O brasileiro liga e desliga das relações com facilidade. Pode ter uma conversa super animada e esvaziar a alma com alguém que acabou de conhecer enquanto esperava o ônibus, mas, se o ônibus chega e não dá para conversar mais, se a conversa fraqueja, se algo não bate certo, desliga e, sem problemas, parte para outra. Não há tanto apego às pessoas como há àquilo que o próprio sente. O outro importa na medida do que eu sinto por ele - o "eu" está sempre lá. Movimento, movimento, eterno devir. Também era relativamente normal um homem ter a família oficial num estado e outra noutro. Os soldados portugueses em África nos anos 70 escolhiam se ficavam com a família de guerra ou se voltavam à portuguesa. Aqui não: o homem viajava de estado para estado ou de cidade para cidade para poder estar à vez com toda a gente.

O maior viajante que já conheci na vida é o Claudio Vitor Vaz, que conheci ainda em Coimbra e que já viajou por meio mundo. Ele não precisa de razões: ele vai. E os brasileiros são assim: eles vão correr o mundo, conhecer outros lugares, e voltam. Ou não. Mas a vida é assim mesmo.

Rafinha Bastos faz o que um comediante faz

Rafinha Bastos respondeu à polêmica de que falei no meu texto anterior. E respondeu como só um comediante pode responder. Lamentando-se? Não. Inventando desculpas? Nem por sombras. Zangado? Talvez, mas não importa. Rafinha fez o que é suposto que um comediante faça: comédia. Afinal, é simples assim.
httpv://www.youtube.com/watch?v=zCQHDXe3ENk

Gisele, Rafinha, o humor e o medo

O meu trabalho assenta na liberdade de expressão. Eu ganho a vida a escrever. Se eu não puder escrever o que quero, não posso ganhar a vida. É assim simples. Uma expressão limitada limita-me no meu direito a trabalhar. Por isso, é sempre com alguma aflição e violência que reajo a opiniões que me dizem que não posso escrever ou dizer algo, porque não é "politicamente correto" ou algo parecido. E isso também me acontece sempre que vejo notícias semelhantes sobre pessoas que ganham a vida da mesma forma.

Na semana passada, a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SEPM) pediu a suspensão de uma campanha com Gisele Bündchen, considerando que ela continha conteúdo discriminatório. Vejamos um dos anúncios dessa campanha.
httpv://www.youtube.com/watch?v=nk5H_BdxMz8
Vejamos agora um anúncio anterior da mesma marca, também com Gisele Bündchen.
httpv://www.youtube.com/watch?v=W_i6Kf-8C2c
O copy do anúncio antigo é "ela é brasileira. Sexy. Leve. Natural. Ela é Hope". Parece-me que dizer que a mulher brasileira é necessariamente "sexy, leve, natural" é mais tipificador do que dizer "você é brasileira, use seu charme". Também me parece que o corpo de Bündchen no anúncio mais antigo é mais objeto do que no mais recente, que ao menos lhe dá uma personalidade e voz. Porém, foi esse anúncio o que ofendeu a SEPM. A Secretaria divulgou mesmo um artigo que diz que “as agências publicitárias precisam crescer e aprender com os exemplos de maturidade e de cidadania que as mulheres brasileiras vêm oferecendo ao país. E tudo isso sem precisar tirar a roupa".

Podemos sempre discutir como é que uma marca de lingerie feminina faz um anúncio em que uma mulher não tire a roupa. Pode ser genial, quem sabe. Mas não consigo deixar de pensar no que poderá ter levado a SEPM - e grande parte da opinião pública - a ter reações tão diferentes em relação a dois anúncios com um conteúdo tão parecido. Só consigo chegar a uma conclusão: o tom. O anúncio antigo é sensual, fashion, choque q.b. O recente é cômico. Então, na verdade, não é o que o anúncio afirma sobre a Mulher que causou essa reação, mas o tom com que essa afirmação foi feita. O humor é um meio familiar ao público, que comunica instantaneamente. Pode ser corrosivo, provocador e tudo o mais, mas, acima de tudo, é eficaz, porque vai atrás do espetador. No anúncio antigo, olhamos para Gisele, mas, no mais recente, é ela que nos olha e nos aborda, de uma forma anormal e desconcertante em comerciais de lingerie. Assim, na base, a reação não foi contra a mensagem do anúncio; foi contra o seu tom humorístico, única diferença relativamente ao anúncio anterior com a mesmo conteúdo. E isso leva-nos a Rafinha Bastos.
A primeira parte do caso Rafinha Bastos começou há uns meses com a abertura de um inquérito que lhe foi movido por suspeita de apologia ao crime por ter dito num dos seus shows de stand-up que "toda mulher que eu vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia pra caralho. Tá reclamando do quê? Deveria dar graças a Deus" e “o homem que cometeu o ato merecia um abraço, e não cadeia". Isto foi considerado uma possível incitação ao estupro.

Não assisti a esse número de stand-up, mas o Rafinha é um cultor do humor negro. A sua comédia é toda agressiva, confrontacional e controversa. Ora, ninguém é obrigado a gostar de Rafinha Bastos e qualquer um o pode criticar. Pela natureza do seu espetáculo, ele sujeita-se a isso. Mas a pergunta é: goste-se ou não dele, faz sentido o Estado intrometer-se desta forma naquilo que claramente faz parte de um número de comédia, especialmente um que inclui frases tão inconcebíveis como "desde que sou pai, concordo com o aborto"? Por outras palavras, Rafinha Bastos é um comediante que lida CLARAMENTE no terreno do absurdo da violência e da ironia. Quem o vê sabe CLARAMENTE que está a ver um show de comédia, não uma missa ou um discurso político (apesar de haver muitos discursos e missas que parecem piada). Um mecanismo de suspensão dramática funciona nesse caso, da mesma forma que um espetador do filme A Queda sabe que as palavras que Hitler fala nele não são do ator ou do roteirista, mas da personagem Hitler. Um humorista apresenta-se sozinho com o seu nome e, portanto, arrisca-se mais. Mas É um discurso artístico, É uma expressão que deve ser protegida pelo direito ao abrigo da qual é dita. E se um Estado utiliza um instrumento legal, a abertura de um inquérito judicial, como meio de intimidação a um espetáculo que CLARAMENTE não é uma incitação ao estupro, mas um exagero do que se pode falar sobre ele, o que garante que não a usará para intimidar peças de teatro que considera controversas, filmes que considera desconfortáveis, livros que considera imorais? Quem define o limite e garante que não teremos uma censura encapotada que, sem instrumentos diretos para maneirar alguém, age pela amolação, pelo desconforto, pela pressão?

A revista Veja chamou a Rafinha Bastos "o novo rei da baixaria", mas isso é errado. Baixaria não ofende. Baixaria reduz-se ao que é, todo mundo a reconhece como tal e, por isso, não liga. No Brasil, funk é baixaria. Em Portugal, os Malucos do Riso eram baixaria. Mas Rafinha Bastos é mais do que baixaria: é incômodo. Faz humor perturbante e, goste-se ou não do que ele faz, a comédia deve ser uma forma de expressão livre num estado democrático.

Compreendam-me: não se trata de negar o direito do Estado de atuar contra uma apologia ao crime ou de toda e qualquer expressão ser ilimitada. Eu aceito que o Estado atue contra ações ou palavras que perturbam a ordem democrática - mas não contra ações ou palavras que são meramente malcriadas. O exagero é parte necessária da comédia, a suspensão dramática também. Um comediante tem direito a ser malcriado e ofensivo e a submeter-se ao arbítrio do público, que pode ou não gostar dele. Mas agir legalmente contra más educações é coisa de ditadura religiosa.

É preciso dizer-se que há uma tendência para a educação no Brasil. Há uma espécie de consenso silencioso que diz até onde se pode ir nos comportamentos, na exposição do corpo, no sexo, e um temor, silencioso também, de ultrapassar esse limite. Na praia, não há qualquer problema em usar um bikini de fio dental que expõe completamente a bunda, mas é muito incorreto uma mulher fazer topless. O jogo de casino é ilegal, mas o jogo do bicho (uma espécie de loteria clandestina com figuras de animais) é geral e feito às abertas, apesar de continuar ilegal, ao que se diz porque essa ilegalidade beneficia muita gente, incluindo membros da classe política. Cada país tem as suas hipocrisias, nenhum é melhor do que o outro. No entanto, estejamos onde estivermos, não podemos deixar de chamar as hipocrisias pelo nome.

A segunda parte do caso Rafinha Bastos aconteceu há uns dias, quando ele foi afastado do programa que co-apresentava, o CQC, por ter respondido "comeria ela - e o bebê!" à notícia de que a cantora Wanessa Camargo está grávida..
httpv://www.youtube.com/watch?v=_iRScEQU9p0
Agora vejamos o refrão do último êxito da cantora, que trilha uma carreira internacional:
"You gotta zoom zoom zoom, get in my room room room, you gotta boom boom boom, rock me like vrum vrum vrum".
Sejamos sinceros: a carreira de Wanessa assenta largamente na sua representação sexual. Quando Rafinha Bastos exclama que "comeria ela - e o bebê!", ele está a evidenciar esse fato claro. Por muito que se queira, ainda não se pode ser sexual sem sexo. Uma atriz não pode fazer capas de revista evidenciando o decote e esperar que não se fale sobre isso. Um ator de filmes pornos não pode esperar que o considerem pelo seu conhecimento de Shakespeare. Se Rafinha Bastos se coloca a jeito para que não gostem dele e do seu humor, Wanessa Camargo coloca-se a jeito para ouvir piadas sobre a persona sexual que representa na sua imagem pública. Rafinha Bastos foi malcriado, mas não foi gratuito. Foi duro e agressivo como sempre é, como já se espera que seja, e a piada funcionou - a plateia riu, tal como riu Marco Luque, o colega de apresentação, cuja retratação mostra fraqueza de espírito e um desejo de consenso que é contrário ao que deve ser o instinto disruptivo de um humorista.

Uma amiga fez-me um reparo: Rafinha Bastos não estava a falar num teatro cheio do seu público, que pagou R$100 para o ver, mas na televisão aberta. Ela tem razão. Podemos acusá-lo de falta de bom senso. Mas isto leva-nos a outra pergunta: porque o discurso de uma TV aberta tem que ser normalizador e não expor esses choques sociais? Porque a comunicação que toda a gente pode ver tem que fingir que o mundo é um lugar sem conflitos, sem opiniões, onde nada tem implicações em coisa nenhuma? De certa forma, a televisão esvazia o sentido do que diz para poder sobreviver enquanto entidade comunicativa no mundo. Parece que o ideal televisivo implica que as pessoas se respeitem umas às outras fazendo com que o que dizem seja inconsequente, como naqueles concursos de 3 horas na late night tv em que o espetador telefona para ganhar dinheiro: um discurso que não afirma, se oferece ao consenso, evita todo e qualquer tipo de conflito e em que perder e ganhar não importa, porque tudo é nivelado pela planura da transmissão.

Repito: o Brasil não é diferente de qualquer outro país. Portugal não está isento disto (o caso Rui Sinel de Cordes ainda é recente), nenhuma sociedade moderna o está. Mas as democracias constroem-se com os conflitos acontecendo no aberto e discutidos no espaço público. Estas reações, ao contrário, são reflexo de uma sociedade regida pelo medo. Eu não gosto de medo. Metade do meu esforço de sobrevivência consiste em enfrentá-lo, e não consigo aceitar quem se rende a ele. Deita-me abaixo. Só gostaria que mais pessoas pensassem assim.

Coisas do Brasil: a lei do psiu

No cardápio do Papo, Pinga e Petisco, na Praça Roosevelt, vem uma "curiosidade" entre as cervejas e as caipirinhas:
Aqui, neste local, foi realizado o primeiro show de Elis Regina em São Paulo, no ano de 1964.

Era meia noite e o White Album dos Beatles tocava a altos berros. Na verdade, parecia uma versão condensada do White Album, porque as canções soavam mais rápidas do que o costume. E, talvez, não seja o White Album, porque, no preciso momento em que escrevo isto, está a tocar a Let It Be, que é do álbum homónimo. Enfim. O fato ainda mais curioso do que a "curiosidade" é que, logo por baixo da info sobre a mãe da Maria Rita, vem o aviso a bold:
Nosso Bar respeita a "Lei do Psiu", pedimos que não excedam no barulho.

O que me leva a duas perguntas. A primeira: será que a Elis poderia ter tocado aqui em 1964 se já houvesse lei do "psiu"? A segunda: quem batizou ela de lei do "psiu"? É que "psiu" pode ser "silêncio", mas também pode ser "psiu, ó para mim aqui te chamando...". Porque não lei do "chut"? Ou lei do "calou!"? Ou lei do "eu quero dormir, poha!"? Ou lei da "coña marinera"? Definitivamente, houve falta de imaginação.

Sleep Now In The Fire

Os tempos em que pensava que excessos policiais estão sempre errados já passaram e, felizmente, nunca pensei que eles estivessem sempre certos. Mas olhem o que a polícia fez durante a manifestação Occupy Wall Street.
httpv://www.youtube.com/watch?v=Zgr3DiqWYCI
Lawrence O'Donnell é um homem sem medo, e o fato de se assumir "socialista" nos EUA comprova-o. O principal aqui é: a polícia controlou uma manifestação pacífica com particulares e desnecessários requintes de crueldade, abusando da sua força com gritante mal senso e contra os próprios cidadãos que a legitimam. Ou seja, em vez de defender a paz e ordem democráticas contra os seus inimigos, ela perturbou o povo no exercício de um direito democrático elementar. Pode-se dizer que O'Donnell tem um estilo que puxa para o sensacional, mas as suas palavras são verdades cruas e duras. Parece que, em Wall Street, não fazer absolutamente nada pode justificar uma prisão ou uma descarga direta de gás pimenta no rosto. Só para que, como dizem os RATM no vídeo de Sleep Now In The Fire - gravado em Wall Street e que levou à suspensão da atividade da Bolsa por uns minutos -, nenhum dinheiro seja ferido.

Mr. Guache vende!


Anderson Almeida, aka Mr. Guache, foi das primeiras pessoas que conheci no Brasil. Acho-o muito má pessoa e fraco no que faz [super modo de ironia ligado]. Ele pôs à venda no site Artflakes este FABULOSO portfolio inspirado em cartas de tarot, do qual a imagem em cima é só um exemplo. Vamos todos comprar como se não houvesse amanhã, minha gente?

O poeta é um chocolate


É sabido que o Brasil tem um caso de amor com um funcionário administrativo bigodudo, cegueta e alcoólico chamado Fernando Pessoa. Independentemente da qualidade do tiozinho, tanto amor parecia suspeito: alguma coisa mais profunda tinha que explicar identificação tão próxima. Relendo a Tabacaria, percebi tudo.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Se ele tivesse escrito sobre catupiry, então, tinha a vida feita.

Quero uma canção brasileira de 1983 elevada a novo hino de Portugal!

httpv://www.youtube.com/watch?v=9aHoWTs6xE0
A gente não sabemos escolher presidente.
A gente não sabemos tomar conta da gente.
A gente não sabemos nem escovar os dente.
Tem gringo pensando que nóis é indigente...
A gente faz carro e não sabe guiar.
A gente faz trilho e não tem trem prá botar.
A gente faz filho e não consegue criar.
A gente pede grana e não consegue pagar...
A gente faz música e não consegue cantar.
A gente escreve livro e não consegue publicar.
A gente escreve peça e não consegue encenar.
A gente joga bola e não consegue ganhar...

Uma das coisas de que me orgulho mais de ter feito no Brasil

Uma das perguntas que me fazem mais aqui começa por "lá fala...?" ou "sabe o que é...?". Normalmente, não me importo e até gosto. Conheci muitas expressões tupiniquins assim e, se às vezes me perguntam uma coisa que obviamente existe em Portugal, é, presumo, porque não será tão óbvio para estrangeiros. Foi uma das formas por que fui conhecendo esta língua que, como diz o meu amigo Raphael, é a mesma que se fala em PT, mas não é a mesma que se fala em PT. E serviu-me também para concluir da total inutilidade de discutir o acordo ortográfico. Se alguém acha que é isso que vai fazer com que todos se entendam, chama um príncipe que te acorde, Branca de Neve.

Mas às vezes irrito-me porque, já se sabe, gente burra há em todo o lado. E o mundo sofre. Perdoa-me, mundo. Não consigo deixar de ser um Átila social de vez em quando. Mas nunca contra inocentes, que isso fique claro.

Então, deu-se o caso de uma noite ir ao aniversário do amigo de um amigo na Vila Madalena e estarem lá três moças, não mais de 20 anos, muito contentes por estarem lá. Talvez porque a maconha que fumavam estava enrolada em sedas transparentes, o que só por si já é bastante irritante. E a cara de felicidade nas miúdas quando perceberam que havia um mexicano, um francês e um português com quem podiam conversar! Gente, que da hora, né?

Bom, deu-se o caso de a conversa revelar que, se elas ainda tinham um neurônio na cabeça no início, fora competentemente assassinado pelo THC. O meu diabinho começou a espetar a espada quando elas sacaram um celular e se puseram a gravar a conversa como se estivéssemos a ser entrevistados para a rádio. "É que a gente faz sempre isso quando sai, sabe". Sei, filha, e também sei que devias ter levado mais açoites quando eras nova. Mas quando elas pediram "digam uma gíria do país de vocês que não tenha no Brasil" e, virando para mim, perguntaram "sabe o que é gíria?", o sangue ferveu-me a temperaturas nível Fukushima. O francês lá disse alguma gracinha, o mexicano também. E então o celular feito microfone de rádio virou-se para mim.

"Cunh..a...ni". Os olhos delas arregalaram-se de espanto.
"Chunhani? O que é cunhani?"
"Cunhani... é... é quando estás a cozinhar, derramas algo e dizes 'já fiz cunhani!'".
E elas viraram-se umas para as outras dizendo "nossa, lembra aquela vez que fiz cunhani no jantar do meu irmão? Cunhani! Que legal, gente!".

Só então me apercebi de todo o potencial do momento. E não consegui resistir. Posso ter comprado um lugar permanente e com vista panorâmica para o Inferno, mas tudo isso vale a beleza pungente do que se seguiu.

"Tem ainda uma palavra parecida com cunhani que também se fala em Portugal..."
"Qual?!"
"Cona. Sabe o que é?"
"Cona?! Não! O que é?"
"Então, cona é muito usado entre mulheres. Se você acha que tua amiga ou tua mãe está muito bonita, você fala 'você está muito cona'".
E eu juro que lágrimas correram pelo meu rosto quando nesse momento elas se viraram umas para as outras e disseram "nossa, amiga, como você está cona hoje!". "Ah, não, querida, você está muito mais cona do que eu". "Não, não, amor, você não está cona, você é cona!"

Pude então desligar-me da conversa. A minha função estava completa. Eu sabia que o acaso cósmico me tinha levado até aquele trio por alguma razão. A razão era aquela. E eu desejo ardentemente que uma pessoa que saiba mesmo o que é "cona" um dia ouça aquela gravação e se mije a rir tanto como eu me mijei. Se isso acontecer e eu souber, vou dar mil e uma graças a Deus. Ou ao Diabo.

A vida imita Scolari

Digamos que você, minha senhora, tem um carro e o vende. O carro vale, você sabe, 1000.

Ora, o seu irmão tinha deixado quadros na mala dele. Esses quadros, só eles, valem 2000. Você sabe tudo isso.

Mas você tem um problema de dinheiro. Assim, vende o carro ao seu vizinho. Vende-o por 500. Não sabe explicar porquê, uma vez que o carro valia 1000, mas vende. E não diz nada ao seu marido sobre os quadros.

Porém, o seu marido tinha-a ajudado a comprar o carro e tem a receber 50. Ainda assim, ele só pede 40. E ele também não sabe explicar porquê.

No final, o casal perde 2510 e nenhum sabe explicar porquê.

E quando o vizinho se atrasa a pagar os 500, eles dizem às pessoas a quem devem dinheiro que não conseguem prever muito bem quando vão receber, como quem não se importa muito.

Mais ou menos isto aconteceu entre o Governo Português, o BPN o BIC e Juan Miró. O BPN é o carro, o BIC é o vizinho, Miró é o irmão, o Estado é o casal.

E, como dizia Scolari, os burros somos nós.

Algumas opiniões sobre música house, reunidas em conversa com meu amigo Pablito

House faz-me querer levar um murro nos queixos só para sentir dor e saber que a dor é real.

House faz-me querer partir um copo e enfiar um caco no olho. E depois enfiá-lo no olho do Pablito. O sangue quente caindo pela cara far-nos-á sentir em comunhão com o caos organizado e pulsante da vida.

House faz-me querer dar um pontapé na cara de uma criança e, enquanto a vejo cair, chorar.

House faz-me querer estrangular o amor e enterrar as sobras num pântano de trufa, para que possa ser encontrado milhares de anos mais tarde em perfeito estado de conservação.

House faz-me querer comprar um kilt, para poder rasgá-lo e cavalgar um cavalo à chuva.

House dá-me vontade de comprar todas as revistas da Turma da Mônica numa banca e dá-las a crianças pobres com a condição de lhes poder tatuar "666" na testa.

House dá-me vontade de ver House na televisão. E depois dar um tiro de revólver nela e ficar triste por a série se chamar House e eu estar sem televisão.

House faz-me querer ir numa festa de formatura de uma escola espírita e espetar uma faca na coxa enquanto todo mundo dança à minha volta.

House faz-me querer pegar cachorros abandonados na rua e matar-lhes a sede com elixir bocal.

House faz-me querer organizar uma missa do sétimo dia em que no final toda a gente tenta partir uma piñata.

House faz-me querer mudar meu nome de Jorge para Pablito e dar o cu, só para poder dizer que o Pablito dá o cu.

House faz-me querer que o botão f12 sirva para detonar uma bomba atômica no atol de Mururoa.

House faz-me querer pensar na crueldade do mundo enquanto nado num mar de Pantene, caviar e cocó.

Coisas do Brasil: miojo


Há na arte culinária todo um capítulo à parte intitulado "cozinha para universitários". Fica no mesmo volume da "cozinha para homens solteiros", da "cozinha para pessoas que não se aprecia muito" e da "cozinha para pessoas que se aprecia, mas que por qualquer razão queremos pôr à prova para saber se gostam mesmo de nós".

Mas foquemos os estudantes por um instante. Quando eu estava na universidade, o prato por excelência era a massa com atum. Água a ferver, massa lá para dentro, atum desfeito depois. Ainda que não houvesse sal em casa, não importava, porque o atum tem um sabor Microsoft - que monopoliza tudo o resto. A massa enchia, o atum dava sabor. Matava a fome, era rápido e depois podia-se estudar, ou algo que universitários façam mesmo. Ora, eu tenho morado com muitos universitários aqui no Brasil e posso sinceramente dizer que, nas casas onde morei, não deve ter havido um único dia em que não se tenha cozido um miojo.

O miojo não existe só no Brasil. Eu já o tinha comido em Portugal, onde lhe chamamos massa instantânea. Cup Noodles é uma variante semelhante. Ou seja, miojo é uma massa rápida vendida em porções individuais e acompanhada de um pacotinho de caldo em pó que se deita na massa depois que ela está pronta. O caldo, confesso, é aquilo que me custa mais engolir (literalmente). A massa, inventada pelo senhor Momofuku - que só consigo imaginar que seja o equivalente japonês para "motherfucker" - começou a ser vendida no Brasil com essa marca. É barato. Os supermercados Ronda vendem-no a 60 centavos o pacote, por exemplo. Por isso, e por não exigir grandes cuidados de preparação, o miojo conquistou o país. A marca acabou, o nome ficou e ninguém se parece importar que seja quase igual à palavra "mijo". Que, aliás, é exatamente ao que a massa pode saber se se puser lá o pacote inteiro de caldo em pó.

Apesar de ser uma das iguarias mais simples do mundo, o miojo permite-se toda uma série de variações. Há quem tire a água e deite o pó na massa já no prato. Há quem ponha água a mais do que a receita impõe, para ficar com mais molho. Há quem ponha logo o pacote de caldo todo e quem não aguente nem um pouquinho dele. Há quem junte acompanhamentos na panela e quem os prefira fazer só no prato. Há quem coma miojo cru. E, claro, há quem junte atum.

O miojo, ao fim e ao cabo, é como a tela de um pintor. Importante, mas não é ela que define o que o quadro vai ser. O miojo é democrático: aceita tudo e a tudo se presta. Miojo é amor.

Mas massa instantânea não deixa de ser massa - e, bem vistas as coisas, um macarrão normal não demora assim tanto mais a cozer. A caraterística principal do miojo, bem como de toda a cozinha universitária, é ser prático. Então, aliemos isso aos nossos paladares gourmets. A minha versão pessoal do miojo nasceu do entendimento que não custa fazer um molho à parte com azeite, alho e tomate, escorrer a água em excesso da massa, deitar o molho por cima, ralar parmesão e salpicar com orégãos. Fica ótimo e só demora uns 15 minutos a preparar. Quem sabe, com cuidado até se pode usar o caldo em pó.

As pessoas que te falam onde duas estradas se juntam

Eles dizem que tu deves estar feliz, mas nunca te dizem o que é a felicidade. "Isso varia de pessoa para pessoa", dizem. Mas isso é que seria importante saber, não achas? Podes estar só contente. Podes viver a tua vida contente e isso ser uma máscara, ou petróleo lançado sobre o mar, turvando a superfície, impedindo-te de analisar a profundeza do lugar onde entras, não deixando que vás mais longe. Não é possível teres certezas. Eles não te dizem.

Eles também não te dizem o futuro, mas dizem-te que tens que te preparar para ele. Aquele acaso indefinido e pouco específico, que te ataca como uma avalanche lenta e de repente te faz dizer "estou no futuro". Mas tu sabes que o futuro é presente. Se o pensas, se o planeias, se o inventas. Porque podes inventar o futuro. Tu sabes. Estás a fazê-lo agora mesmo. Mas não vai dar certo. Tu sabes, não sabes? Não vai dar certo e, se der, muitas coisas podem acontecer. Pode não resultar mesmo como tu queres que resulte. Ou podes nem gostar dele. O futuro pode ser um resort de férias aonde chegas depois de poupares um ano inteiro e descobres que é chato. E eles não te avisam.

Eles dizem-te que a culpa nunca é deles e, se algo acontecer, eles não são responsáveis. Mas, se as coisas correrem bem, o mérito é todo deles. Eles não são de confiança. Vão-te dizer o que for preciso e ficar de longe a ver como te comportas com o peso que te puseram nas costas, como um miúdo que ata uma lata ao rabo de um cão e fica a ver o que ele faz para se livrar dela. Tu nunca te vais livrar do peso. Ele vai ficar contigo e lembrar-te de quem realmente és e, o mais triste, que um dia lhes deste ouvidos. E tu arrepender-te-ás desse dia para sempre.

JVN hoje no Zé Presidente


Para quem ainda não sabe: hoje à noite vou ao Zé Presidente dizer poemas meus no V.A.I.A / C.A.I-MAL. Para além de palavras, vai ter performance, cinema e música, muita música. Vemo-nos por lá?

Don Draper e eu

Mad Men ganhou há dias o Emmy de melhor série dramática pelo quarto ano consecutivo. O feito seria de respeito por si mesmo, mas é ainda mais impressionante se pensarmos que ela tem quatro temporadas. Ou seja, desde que começou, Mad Men nunca deixou de ser considerado o melhor seriado americano. E, mais impressionante ainda, é-o com merecimento.

Eu adoro Mad Men. A reconstituição histórica é avassaladora, não só pelos figurinos ou a direção de arte, mas porque reproduz com fidelidade um modo de pensar, principalmente o que foram as relações entre homens e mulheres num tempo em que não se pensava que eles poderiam ter papéis e comportamentos semelhantes. Os argumentistas são inteligentes e fazem coisas espantosas, como uma cena da terceira temporada que nunca mais me saiu da cabeça em que Don Draper, sentado ao lado da mulher vendo os filhos à volta de um Maypole, se apaixona pela professora deles quando a vê, livre, linda, dançando de pés descalços na relva. E como é que eles mostram que ele se apaixona sem uma única linha de diálogo? Fazendo-o pousar a bebida e tocar a relva. É uma escrita poética, subtil, inteligente. Mas há também uma razão pessoal que me faz não deixar de ver a série. Tem a ver com a personagem principal, o próprio Don Draper.

Sem entrar no terreno do spoiler, digamos só que Draper é um diretor criativo com segredos que tem de estar sempre - e mais do que qualquer outro - a vender a imagem do que ele é. Numa série sobre publicitários, nenhuma outra pessoa poderia ser a personagem principal: ele experimenta no conflito da sua vida o conflito essencial da atividade publicitária, por isso é que a domina tão bem. Brilhantemente escrito, brilhantemente interpretado por Jon Hamm, Draper tem ainda uma caraterística de que eu não me consigo desligar: ele é muito parecido com o meu avô que já morreu.

O meu avô chamava-se Eleutério. Nome antigo. Morreu há uns 11 anos. Como Don Draper, ele era um homem alto e bonito. Como Don Draper, ele fumava. Como Don Draper, ele era sério, mas emocional. Como Don Draper, ele tinha o cabelo curto com risco ao lado. Na casa dos meus avós, havia uma foto deles jovens pendurada na parede. Não era um retrato em que eles estivessem conscientes da câmara, mas um momento de descontração, longe da fronteira que ele guardava enquanto Guarda Fiscal e das atribulações do negócio de peixe que a minha avó montou sozinha. Estavam de pé, olhando um para o outro e sorrindo. O meu avô, gravata, cigarro na mão. Don-Draper-like-íssimo.

O meu avô era uma pessoa simples, de hábitos regulares, que não abusava de comida ou bebida e que foi deitado abaixo por causa de uma estadia longa demais no hospital por um problema que talvez não fosse tão grave. Foi o início de uma fase de uns dois anos em que o corpo dele foi de choque em choque até chegar no ponto em que já não se conseguia levantar da cama. Esteve muito tempo acamado, a mente atrofiou-se-lhe e morreu confuso, mas não senil. Ele assistiu com consciência à deterioração do próprio corpo.

Como eu já estava a estudar na Universidade, morava longe e nem sempre o via, mas lembro-me perfeitamente da última vez que estivemos juntos. As noras tomavam conta dele e eu fui lá com a minha mãe. Ele dormia e ela disse-me para eu o acordar. Fui lá, chamei-o, mas ele não me reconheceu. Estava acostumado a que a minha mãe o acordasse de certo jeito, por certo ângulo, com certa ênfase, e eu não os conhecia. Apesar de estar ali mesmo ao lado, as rotinas dos movimentos já tinham tomado conta dele. Deixei-o voltar a dormir até que a minha mãe chegou e lhe disse que eu estava lá. Ele virou a cabeça, viu-me e abriu-se num sorriso tão grande que eu pergunto-me se alguma vez verei alguém fazê-lo de novo só por me ver. Conversámos um pouquinho, disse-lhe que as coisas estavam a correr bem, que ia entrar em exames e não ia poder voltar durante um mês ou dois, mas que ele tinha que se pôr forte para quando eu voltasse. Ele sorriu de novo, orgulhoso por ver o neto mais novo bem, Direito em Coimbra, um orgulho. A minha primeira lição desse dia foi que às vezes basta viveres a tua vida para fazeres alguém feliz. A segunda começou no momento em que lhe dissemos que nos íamos embora.

O meu avô dava sempre uma nota aos netos quando o iam visitar. Às vezes, os meus pais reclamavam, "ele não precisa, não se esteja a incomodar", mas ele fazia questão. E, nesse dia, quando a minha mãe lhe disse que nos íamos embora, ele virou-se para ela e murmurou algo como "naquela gaveta, há notas, tira uma e dá-lhe". Aí fui eu quem reclamou. "Dás-me para a próxima, avô, daqui a umas semanas eu dou aqui um salto". Eu não quis aceitar, e ele não se podia levantar e dar-me a nota, senão tê-lo-ia feito. Acho que queria mostrar-lhe que estava independente, ou dar-lhe força para aguentar até à próxima vez que nos víssemos. Quando lhe fui dar um beijo e abraçá-lo, ele olhava-me com um sorriso de conformação. Ele sabia que provavelmente não me veria de novo. Umas semanas depois, antes que eu voltasse a Monção, morreu. Nunca mais o vi vivo.

A minha segunda lição desse dia foi perceber que aceitar o que te dão às vezes faz mais bem a quem te dá do que a ti. Ou seja, aceitar o que a vida te oferece é um segredo tão grande como dar-lhe o que ela te pede. São duas das coisas que estamos sempre a aprender, sempre, constantemente a aprender.

O cadáver do meu avô foi vestido de fato e gravata para o funeral. Elegante, como o Don Draper, por baixo da mortalha translúcida que o tapava. Toquei-lhe na mão. Estava fria e dura, como pedra. E essa foi a terceira lição. Aquilo já não era o meu avô, era outra coisa. Somos o que somos enquanto estamos na vida, esse é o nosso presente. Depois, o nosso corpo é só uma prova do passado. Como uma série de televisão. Ou, ainda melhor, como uma fotografia na parede.

Red Hot Chili Peppers em São Paulo, ou o turista rock

Sabem aquela coisa de turista e viajante serem diferentes? O turista frequenta, o viajante está. O turista quer conforto, o viajante quer experiências. O turista passa férias, o viajante passa riscos. Etc, etc, já entenderam. Basicamente, ponham um japonês de máquina fotográfica ao lado do Bill Bryson e está feita a distinção.

Ia mostrar agora a batalha de lama durante o show dos Greenday no Woodstock de 94, mas não simpatizo especialmente com Greenday, porque acho que eles castraram o rock e foram o peido que espoletou essa série de bandas de pop proto punk que andam por aí aos caídos, como os Blink 182. Por isso, vai o vídeo de Primus do mesmo festival.

httpv://www.youtube.com/watch?v=IaCXxqRNNcc

A espiral confusa e autofágica que o público faz e o fato de estarem pouco a cagar-se se a lama os suja desde que estejam no meio desse círculo moshante quase xamânico era normal. Grunge, início da era Clinton, anos de escuridão republicânica, extravasar a depressão criada pela felicidade synth pop dos anos 80.

Agora, vejamos este vídeo do show de ontem dos Red Hot Chili Peppers em São Paulo.

httpv://www.youtube.com/watch?v=V2J3Iz6aMJo

Este vídeo foi tirado da área VIP. Só por si, já é uma descoberta do caralho. A ideia que um dia um promotor de concerto pensou, "se nós criarmos uma área cercada à frente, conseguimos meter lá toda a gente que está disposta a pagar mais do dobro do bilhete normal só para ter esse conforto, para tirar fotos e ouvir melhor o som", foi tão boa como se Van Gogh tivesse cortado a orelha para ficar mais bonito. Rock é liberdade e energia - não é a porra de uma grade que te impede de ir para onde queres e te dá mau som se estiveres mais atrás. A ideia de um show como experiência terminou. Parece que vendemos uma simulação do que o rock foi em pílulas leves que qualquer um pode tomar, em vez do real deal.

Mais: contem o número de pessoas que estão a gravar o show com o celular/câmera. Dezenas. E isto só na área VIP. Eu, que estava na pista comum com o povo que só pagou 200 reais, queria moshar. Moshei pela primeira vez aos 15 anos em Vilar de Mouros. Cheguei a casa com a cara coberta de pó, funguei uma mistela negra durante 3 dias, mas, porra, senti-me vivo. E ontem mesmo os putos fixes com metade da minha idade que estavam ao meu lado só mosharam um bocadinho, durante a By The Way. Nem na Give It Away arrancou grande coisa. Ao menos não gravaram nada com o celular.

Ou seja: de 94 a 2011, alguma coisa aconteceu que transformou os ouvintes de rock em turistas de rock e tornou os Red Hot Chili Peppers, que no Woodstock de 99 foram acusados de incitarem ao estupro de mulheres e invasões e destruição de propriedade só por terem tocado a "Fire" do Jimi Hendrix, num espectáculo em que não se participa, antes se fotografa a partir da pista VIP. Um espectáculo equilibrado, em que se sabe o que vai ter, e que não é mau, mas não surpreende. Porque não tem descontrolo. E o descontrolo importa muito nestas coisas.

O café Santa Cruz em Coimbra

Tenho-me lembrado dele. Um café antigo, em que os empregados andam de uniforme, construído na antiga sacristia da igreja com o mesmo nome. Parece um daqueles lugares que se vê nos guias turísticos de Praga: reposteiros, paredes de pedra, antecâmaras altas, espelhos debruados. O corpo de Dom Afonso Henriques está sepultado lá ao lado enquanto turistas, estudantes e os advogados das redondezas tomam cafés, águas e a dose diária de álcool. Há quem escreva coisas em caderninhos. Eu fi-lo. Tê-lo-ia feito mais, se ainda assim ele não fosse caro para bolso de alumni.

Um dia, entrou lá o Hélder Wasterlain e sentou-se na minha mesa. Trocámos as novidades e então ele disse-me "Olha para cima". Nunca o tinha feito, nunca me tinha lembrado. O teto é escurecido, negro, como se tivesse sido queimado com um maçarico gigante. "Fumo", disse ele, "primeiro dos incensórios, depois dos cigarros". Décadas e décadas de cigarros fumados por baixo daquele teto maciço criaram uma capa negra (muito a la Coimbra) impressionante. E essa colaboração inconsciente dos clientes do Santa Cruz teve o efeito precioso de impedir que a pedra erodisse e caísse em pedaços sobre as mesas.

Às vezes, comportamentos aparentemente viciosos podem aguentar algo durante anos e anos. Isso é assim para o teto da sacristia de Santa Cruz. E também o é para pessoas.

Angry Birds e o mundo


A natureza humana é adorável, porque é sempre contraditória. A única certeza que todos temos é que os nossos dias neste mundo estão contados, ninguém conhece a conta certa e temos de aproveitar todos os momentos, porque podem bem ser os últimos. E, ainda assim, ninguém hesita em "matar tempo" de vez em quando. Matar tempo, como se nos vingássemos daquilo que, no fim das contas, nos matará a todos. Mas isto não é desconsideração. Impérios são construídos à volta da matança de tempo. O Facebook é um exemplo. Qualquer atividade artística, na criação ou fruição, também.

Um dos casos mais marcantes de matar tempo da modernidade é o Angry Birds. Neste jogo, atiramos pássaros contra edifícios rudimentares construídos de gelo, madeira e pedra, para fazer explodir uns seres em forma de balão gelatinoso. Os pássaros variam de peso e poder. Alguns multiplicam-se em três, que nem zagalotes de caçadeira. Outros podem explodir como bombas e outros têm a capacidade de ganhar um efeito turbo especialmente destruidor a meio do salto. O jogo é simples e ingénuo, mas eu acredito que muitas coisas se escondem nas suas entrelinhas. Sim, isso mesmo. Angry Birds é metáfora.

A primeira coisa que eles nos ensina é que pássaros não têm que ser os bichos pequenos e delicados a que estamos acostumados. Sim, pássaros podem ser maus. Sim, pássaros podem ser fortes. Sim, pássaros podem estar zangados. Hitchock já nos tinha dito tudo isto, mas há uma diferença: em "The Birds", os pássaros são a mão do mal. E em Angry Birds nós próprios os manipulamos para os ajudar a chegar ao seu objetivo. Ou seja, o Angry Birds diz-nos que as armas mais fortes estão onde menos se espera. Angry Birds é auto-ajuda.

Ao mesmo tempo, o Angry Birds mostra-nos que o trabalho em equipa pode destruir o edifício mais forte. Uma espécie de "fuck you, I won't do what you tell me" subliminar, o que é de louvar, pois muita criançada joga isto. Angry Birds é um instrumento fundamental na aprendizagem da próxima vaga de anarquistas. Por isso, Angry Birds é política.

O Angry Birds também nos diz que a destruição é uma força tão grande no mundo como a criação. Afinal, eles só estão zangados porque uns seres gordos, verdes e repugnantes lhes roubaram os ovos. Demolir os edifícios e matar os vilões significa recuperar a ninhada e a nova geração de birds, que, espera-se, serão tão angry como os pais. Ou seja, a destruição abre o caminho para uma nova criação - exatamente o papel que o deus Shiva tem no Hinduísmo. Assim chego à minha última conclusão: Angry Birds é cultura. Viva o Angry Birds.

Coisas do Brasil: catupiry e chocolate


Aprende-se na catequese e na igreja e nos vídeos do padre Marcelo Rossi que Deus é diferente, porque é omnipotente, omnisciente e omnipresente. Das primeiras caraterísticas, não tenho muito a dizer. Mas na terceira, no Brasil, ele não tem o primeiro lugar indisputado. Duas coisas estão, se não mais, pelo menos tão presentes na vida neste país: o catupiry e o chocolate.

Há dois momentos na vida de um homem: antes de ele saber o que é catupiry e depois. A coisa parece respeitável de início. Uma espécie de creme de queijo, um pouco à la Philadelfia, mas sem sabor sintetizado, inventado por um italiano em Minas Gerais há 100 anos. Um amigo mais velho disse-me que o catupiry não é assim tão antigo na sua ubiquidade. Foi só nos últimos 20 anos que a hotelaria descobriu todo o seu potencial e o começou a utilizar em tudo o que é possível. Hambúrgueres, sanduíches, tortas, pizzas, coxinhas e todo o tipo de salgados, acompanhamento em dezenas de pratos, doces e sobremesas várias. A sofisticação das casas vê-se no fato de utilizarem "o verdadeiro Catupiry" ou só um sucedâneo e "com ou sem" catupiry é uma pergunta da praxe em qualquer lugar que venda comida. Ou seja, no Brasil há toda a comida, por um lado, e, pelo outro, há catupiry. Ele é um continente à parte. Se fosse um país, era a Austrália.

Foi numa novela brasileira que ouvi pela primeira vez a expressão "chocólatra". Era uma dona de casa loira que, se me lembro bem, enganava o marido. E, se é verdade que nunca deixará de haver maridos cornos, também o chocolate não vai abandonar o Brasil tão cedo. O brigadeiro é o doce nacional por excelência; comer brigadeiro de colher (que todo mundo come da mesma panela, juntando o prazer do chocolate e do açúcar ao da saliva dos amigos e colegas de trabalho) é um ato comunitário só comparável à matança do porco. Bombons aparecem do nada, como os ratinhos que dantes se pensava nascerem em caixas fechadas com palha dentro. Brownies são devorados diariamente pelas ruas. Há quem não tome café, mas não abdique do cupcake depois da refeição. E os cardápios de sorvetes afixados em padarias têm uma monotonia cromática tão forte de cacau que os designers gráficos devem odiar fazê-los. Não é o etanol que faz o Brasil mexer-se. Não é o samba ou o futebol. É o chocolate.

A minha pergunta é: porque é que o catupiry e o chocolate nunca se encontraram. Talvez numa pizza, algum dia, alguém o tenha feito. Talvez um dia um molho de chocolate tenha caído sobre uma torta com catupiry, alguém provou e disse "hmmm, que bom, descobri algo novo". Se isso aconteceu, eu quero saber. Contem-me. Pode ser que façamos negócio.

Sério, você estuda na Usp?

Um poema novo que li ontem no ZAP!.

Sério, você estuda na Usp?
Eu estive na Usp já
olhando as árvores tapar a estrada
cheia de carros parados por onde
os líderes médicos doutores futuros desse país e além fronteiras
derramavam seus excessos
porque os banheiros estavam fechados
e eu pensando
"estou vendo os futuros líderes desse país e além fronteiras
mijando e cagando e vomitando
indefesos como eu fui
nus como eu já estive
quando há muito tempo eu pensava ainda
que o futuro é previsível e eu
sou mais que um joguete
bola de gude invisível
atirada das mãos do acaso".

Que legal, você estuda na Usp.
Como você sabe, né
Como você olha com olhos que sabem
toca com mãos que sabem
fala com boca que sabe enquanto
teu corpo se esparrama pela terra
e faz malabares com fitas noturnas
alguém te pôe na boca o remédio da alice
és a melhor pessoa do mundo
teus olhos brilham
tu sorris
podemos ser diferentes
essa noite
do que somos no resto do tempo
podemos nos ver um no outro como quem se olha num lago e sabe
que as ondas vão e vêm distorcendo-nos como pensamentos
e talvez amanhã acordemos
e te sintas vulnerável no silêncio
que nos cobre
no lençol
que nos cobre
sempre o mesmo lençol que me cobre
sempre e cobre e sobe sempre
mais alto até me tapar completamente
e estares
vulnerável no silêncio e nua e eu
indefeso sem segredos
sufocado
e teu

Mas eu sou só este momento
dente de leão transformado a cada golfada de vento
e você estuda na Usp
és mais o que vais ser do que aquilo que és
teu futuro é grande
e eu não caibo na mesma sala que ele
tens muito para fazer na vida
tens uma orientação política de esquerda a alimentar
com o dinheiro que toda semana teu pai dá
e anos até descobrires que nada no mundo é bonito
ou bondoso e tua vida é só a estrada possível
por entre árvores cruéis de carne e sangue
e gigantes cínicos falando merda
por isso fala coração fala
amanhã combinamos algo
não te preocupes
sucesso
combinado
e até mais

Coisas do brasil: como usar o papel higiénico

httpv://www.youtube.com/watch?v=OrWcEGDXOUg
Nesta cena desse clássico da Sétima Arte intitulado "Demolition Man", Stallone, que interpreta um polícia do século XX conservado criogenicamente e reavivado décadas depois, descobre que no futuro já não se usa papel higiénico, mas três conchas - que, obviamente, ele não sabe usar. Com as devidas diferenças, ela veio-me à memória há meses, quando o dono do lugar onde moro me perguntou "vocês lá na Europa jogam o papel na privada, né? Aqui não pode". A sensação de, de súbito, um hábito íntimo praticado desde a infância ser posto em causa é avassaladora. Como não se pode jogar o papel na sanita?! Não estamos falando de folhas de papel duro, de embalagens, mas de fino, frágil e dissolvível papel higiénico. Como tudo no mundo, até o novo partido suiço que quer abolir o uso de Powerpoint, há boas razões. As descargas brasileiras - ou seja, os autoclismos - não são muito potentes e uma acumulação de papel mínima pode significar entupimento. Por isso, a técnica consiste em efetuar a limpeza, dobrar o papel para não ficar a cheirar mal e pôr no cestinho do lado, que será mais tarde esvaziado por duendes do pântano que vão deixar uma moeda de ouro por cada depósito. Ou não. Seja como for, como a Internet é para facilitar a vida, aqui fica o conselho para quem se quiser aventurar por terras tupiniquins. Não deixem cair o papel na água e, acima de tudo, não se esqueçam de lavar as mãos depois. Ser arrumado é bom, mas ser lavadinho é fundamental.

Isto hoje equivale a cantar o hino nacional

httpv://www.youtube.com/watch?v=G1JFTK69wMA
Se é para ser assim, talvez fizesse mais sentido votar no presidente da Moody's do que no da República, não?

Ontem à noite

httpv://www.youtube.com/watch?v=bgdy8OJ_tmM
Eu sonhei que ela sabia tocar piano. Enquanto coisas terríveis aconteciam no mundo, homens maus faziam maldades às bondades dos homens bons, ela sentava-se ao piano e tocava. Às vezes, duas pessoas com quem ela trabalhava sentavam-se ao piano com ela e tocavam as três juntas, uma delas murmurando qualquer coisa, como o Glenn Gould. Era Bach, via-se nisso e nas teclas que premiam, mas não conheço a canção.

Também sonhei com Cesariny e com versos breves com perguntas. Vi os versos, curtos e a terminarem com pontos de interrogação, a resposta imediatamente depois, mas eu não sei se alguma vez Cesariny escreveu um ponto de interrogação num verso. Assim de cabeça acordada, não me lembro. Mas no sonho ele fazia perguntas e dava as respostas, como uma conversa contigo mesmo que estás sempre a fechar e a recomeçar porque te lembras sempre de algo novo a perguntar. E eu apercebo-me agora que há pessoas que me lêem que não sabem quem é Cesariny. Cesariny é um poeta português, um dos que fez o Surrealismo, e que escreveu coisas como
Vem, Vulva antiqüíssima e idêntica
Vulva Rainha nascida destronada morta
Vulva igual por dentro ao silêncio, Vulva
Com teus pentelhos lantejoulas rápidas
No teu Ôlho franjado de infinito.
no Virgem Negra, um livro que se propõe explicar Fernando Pessoa às criancinhas, mas também escreveu
Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
em You Are Welcome To Elsinore. Elsinore era o castelo do Hamlet, mas nem toda a gente se lembra. Nem eu me lembro às vezes. Quando atuei no São Luiz agora da última vez que estive em Portugal, mesmo na véspera de voltar para o Brasil, só o JP Simões se lembrava. E por acaso não sei se o JP Simões sabe tocar piano, acho que nunca o vi tocar piano. Talvez uma vez, em Coimbra, a tocar a Living Room. Será? Seja como for, não era Bach, esse era outro sonho e uma outra pergunta. Este texto é a resposta.

Tudo o que precisas saber

Podes ter uma vida só, que não se mexe e não sai do lugar.

Podes ter muitas vidas ao mesmo tempo. Isso não é necessariamente bom. Uma pessoa que conheci em tempos e que hoje passa na TV e tudo disse-me que tu podes ser qualquer coisa que quiseres, desde que sejas suficientemente bom a manipular a aparência do que és. Eu quis acreditar que a essência é mais importante, mas isso não é verdade. Tu não tens controlo sobre a tua essência. Tu és aquilo que o mundo te deixa ser e só podes decidir o resto dentro desse quadro de limites. Se cresceste a ouvir coisas más sobre ti e com a paranóia de que te comentassem, vais aprender a ligar pouco às opiniões dos outros. Vai ser a tua estratégia de sobrevivência. Claro, isso faz-te dizer "o importante é o que sou". Mas tu só o dizes em reação ao fato de não poderes contar com ninguém. Se o mundo te ensinou a estares sozinho, é isso que vais aprender, quer queiras quer não.

Podes ter muitas vidas seguidas. Podes ser um pai e um marido num determinado lugar e tempo. Podes estar sem família e sem amigos noutros. Não é tão impossível que, num ano, sejas engenheiro e Israel e no próximo um vagabundo em Barcelona. Não é mesmo impossível e, quando for assim, vais pensar em tudo aquilo que já foste antes. Filho dedicado, mau trabalhador, bom trabalhador, agredido, agressor, santo, assassino, contabilista dos dias, pintor da vida dos outros. Tudo isso se soma. Tu estás sempre a superar o que foste, a caminho de algo que não prevês nem antecipas e, provavelmente, não desejas particularmente. É uma viagem cujo destino te é escondido: uma versão ou sequela, não particularmente valiosa ou especial, do que já és. As memórias, tem-las sempre. E a esperança também.

Coisas de Portugal: João César das Neves


Desde que moro no Brasil e faço os possíveis para aproximar as duas margens deste lago atlântico, tenho principalmente falado aos portugueses sobre coisas brasileiras. Por isso, talvez tenha chegado a hora de falar aos amigos brasileiros sobre Portugal. E escolhi para começar algo bem especial, tanto que me intriga saber se conseguirei explicá-lo bem: João César das Neves.

Então, digamos assim: César das Neves é professor universitário, doutorado em economia pela Universidade Católica Portuguesa. É uma das caras mais conhecidas do conservadorismo português pelas suas aparições frequentes na TV e a sua coluna de jornal Não Há Almoços Grátis, sendo populares as suas apologias da família e dos valores tradicionais. César das Neves tem algumas ligações com pessoas importantes do Partido Social Democrata, o partido de centro-direita que está agora no poder. E ele tem uma barba muito viril e cara de quem não muda de roupa interior muitas vezes só para a poder usar como ataque para com interlocutores adversários, do estilo "este gajo a falar e a sentir-me o cheiro das cuecas: como lhe deve estar a custar!". Mas César das Neves é, além disso tudo, capaz de algumas das afirmações mais corretas e certeiras na história das afirmações. Peguemos por isso nalgumas da sua crónica de 20 de Junho, de título "O poder dos bobos" (sendo que "bobos" não deve ser tomado necessariamente no sentido brasileiro de "fracos de espírito", mas mais no de bobos da corte, jograis, ou seja, gente do entretenimento em geral).
Hoje a opinião mediática despreza e ridiculariza as referências morais tradicionais - pais, professores, sacerdotes, chefes e responsáveis - enquanto exalta as opiniões de artistas, bandas de música, comediantes e celebridades.
Reparem que César das Neves aqui não fala especialmente mal da autoridade moral destas últimas categorias de gente. Ele só não gosta que eles não sejam tradicionais. Se estivermos a falar de um ator com 80 anos, ele já é tradicional. Aí tudo bem. O único problema desta afirmação é que permite uma série de situações ambíguas. Como é que os media devem tratar alguém que é artista, mas também é pai? Ou um sacerdote que é também celebridade? Um comediante que é chefe numa empresa? E o meu pai, que é músico - como é que eu o devo tratar? Deverei sempre tentar entender se ele me está a falar como pai - e aí devo ouvi-lo e considerá-lo - ou como malvado e perigoso boémio? Seja como for, ao colocar "responsáveis" de um lado e os entertainers do outro, César das Neves implica que estes não são responsáveis, o que só lhe fica bem, pois é bem sabido que todas as pessoas do meio artístico não são sérias, não cumprem compromissos e, no geral, não merecem a confiança de ninguém.
Será que as séries, filmes e canções que hoje nos inundam a vida moldam o nosso comportamento? Se o fazem, não será para o bem. As preocupações oficiais com a moralidade nos filmes perderam-se nos anos 1960, passando a liberdade de expressão a critério ético absoluto, acima de todos os valores. Como os bons exemplos e temas educativos não criam emoção, cinema e televisão entraram numa espiral imparável de crime, vício, erotismo e aberração. Tem graça que os jornais, que mais apregoam essa influência, sejam os primeiros a declarar a inocência do espectáculo quando se verificam consequências nefastas.
César das Neves tem, mais uma vez, toda a razão. Monstros, vampiros, sexo e crime nunca tinham sido representados em momento algum da história da narrativa visual ou literária e não se compreende essa mania dessas séries e filmes agora andarem com esses temas que nada têm de apologético à saudável e fabulosa família tradicional, trabalhadora, casada e heterossexual. Foi só desde que as preocupações oficiais com a moralidade terminaram que eles começaram a ser tratados por esses perversos artistas, o que nos leva a pensar no que poderá ter levado sociedades inteligentes e racionais a terminar com os controlos prévios que impediam que eles surgissem antes dessas famigeradas revoluções - ou deveria dizer involuções? - morais dos anos 60. Na Bíblia, meus senhores, não existe nem um indício desses patricídios, fraticídios, infanticídios, mutilações, seduções, decapitações, purgas coletivas, onanismos e prostitutas que pululam na cultura atual.
A promoção de aborto, divórcio, promiscuidade e pornografia tem no espectáculo sólidos aliados. A enorme campanha à volta do casamento homossexual deve-se à influência dos artistas, principal meio poderoso e endinheirado onde essa orientação domina. Assim se entende que uma questão que interessa apenas à ínfima minoria, com implicações só na imagem, consiga mudar em poucos anos as regras seculares das sociedades. O suicídio colectivo do Ocidente por destruição da família sustenta-se por este meio.
É incrível o poder de argumentação de César das Neves. Afinal, como é que esses artistas se atrevem a encher este mundo de casais desfeitos, fetos abortados, sexo e perversão? Isso não é forma de se construir uma civilização. Para ajudarmos o progresso, temos de nos organizar, a todo o custo e independentemente dos nossos sentimentos, desgostos e situações particulares, em casais unidos, com uma prole gorda que aumenta a cada relação sexual (na razão de um filho a cada dois anos) e a quem a masturbação é interdita. Homossexuais, que não podem procriar, não deveriam estar casados, ou melhor, deveriam estar casados com mulheres, a quem eles encheriam o ventre frequentemente, estando depois livres para fazer o que quiserem com os amigos do café, onde, claro, recusariam beber tudo o que fosse alcoólico. São eles que nos matam enquanto sociedade. Se eles recusassem a sua homossexualidade, haveria muito mais crianças no mundo e a Europa poder-se-ia impor a todos os outros países como o avançado, educado e cristiano colosso que já foi em áureos tempos.
Esse poder traz horríveis efeitos sobre os próprios. O filme Sunset Boulevard, de Billy Wilder (1950), com William Holden, Gloria Swanson e Erich von Stroheim, revelou a miséria humana escondida atrás do brilho de figurinos e cenários. (...) A Forbes Magazine declarou a 18 de Maio Lady Gaga a celebridade mais poderosa do ano. Elton John, de 64 anos, e o seu parceiro David Furnish, de 48, foram nomeados candidatos ao prémio de Pai do Ano, (...) Que significa isto? Nada. Meros truques mediáticos que escondem mal a miséria de pessoas infelizes, embriagadas ou sacrificadas à imagem.
É por isso que tenho saudades de Portugal: porque lá, posso ver César das Neves vezes sem conta na televisão a falar sobre pessoas embriagadas pela própria imagem. E a sua autoridade, neste particular, é incontestável. Há muito pouca gente que sabe disto, meus amigos... mas a verdade é que César das Neves é o único português amigo tanto de Lady Gaga e de Elton John, a quem liga frequentemente sempre que anda de autocarro ou a sua higiene íntima está a demorar um bocadinho mais. Se alguém sabe se Elton John e o seu companheiro de 18 anos estão míseros depois de terem casado, assumido uma relação estável e adotado um bebé a quem darão uma vida confortável enquanto pais, é César das Neves. Se alguém sabe se Lady Gaga, a mais brilhante esteta pop da atualidade, é infeliz e sacrificada à imagem que ela parece fabricar e manipular sem problemas, é ele.

César das Neves deveria ter uma estátua erigida - uma estátua falante, no centro de Lisboa, que todos os turistas pudessem ouvir, só para levarem um pouquinho dos seus ensinamentos de volta para o seu país. E, só para um esclarecimento final, este texto não contém nem um pingo de ironia e eu não penso que João César das Neves é um aglomerado de qualidades ridículas e ignóbeis, das quais a pior é o modo como ele critica os media por estarem comprometidos com uma agenda de perversa imoralidades, os mesmos media que lhe dão repetidamente espaço para ele libertar as suas frustrações em diatribezecas baratas que atira para um mundo que felizmente, se está a cagar para o que ele diz. Não penso isso mesmo nada. Ouçam-no, meus amigos, ouçam-no bem.

This is the end

Angélico Vieira não era uma pessoa que me dissesse muita coisa. Sim, vi em 2005 a meia temporada em que ele espontou nos Morangos com Açúcar, a mesma que revelou a Cláudia Vieira e a Rita Pereira, o que só prova que trabalhar como jurista no setor público não me estava a fazer muito bem à cabeça. Enfim, ele era uma celebridade, famoso não por ter algum especial supertalento. A música que fazia não era especialmente inovadora e, enquanto entretenimento, não era particularmente espetacular. As suas participações na televisão foram em novelas, onde interpretava tipos. No cinema o título mais respeitável que fez foi o 20,13 do Joaquim Leitão, que sinceramente não vi, mas nunca me constou que ele fosse impressionantemente bem nele. De resto, namorava com atrizes e mulheres cobiçadas, publicitava moda, as revistas publicavam fotografias dele em eventos.

Mas há uma coisa que não se está a dizer muito acerca desta morte pública. Angélico Vieira, bom ou mau gosto à parte, era um homem bonito. Ele tinha uma cara bonita, ele tinha um corpo bonito. Era isso que subjazia a tudo o que ele fazia e, às vezes, uma cara bonita vende uma canção melhor do que uma grande voz ou uma personagem-tipo numa novela melhor do que um ator do Método. A questão é que ele era uma celebridade, mas não era grande. Marylin Monroe será grande, porque havia uma dor enorme dentro dela: a de querer provar ser mais do que a loira burra que toda a gente pensava que ela era. Angélico Vieira não teve tempo para ganhar essa dor ou, pelo menos, para integrá-la no seu percurso de artista. Assim, ele acabou por ser só a superfície em que sempre foi representado.

Enquanto artista e figura pública, ele nunca teve complexidade e até pode ser que ela nunca lhe chegasse. Mas, ao rapiná-lo assim, a morte tirou um homem bonito a oportunidade de explorar tudo o que podia ser. A morte tirou a Angélico Vieira a oportunidade de ser interessante, de ser grande. E isso tem tudo a ver com toda a gente.

Criatividade e coiso

Às vezes perguntam-me como é que posso ser criativo (e o fato de ser sempre a mesma pessoa e só quando está bêbeda não importa para o caso). Eu, na verdade, não sei. Conheço pessoas muito mais criativas do que eu e com qualidade muito mais consistente. O que posso dizer é que grande e irrefletida parte da minha vida é ter ideias estúpidas sobre tudo aquilo que estou a ver. A minha cabeça insiste em ver pilas e mamas em arranjos de frutas, pensar "bucetinha" quando ouve "você tinha", ver um homem quase nu a curtir a Rua Augusta à noite e incomodar-se principalmente porque ele pode pisar um caco de vidro com os pés descalços. Para mim, essas coisas estúpidas são o primeiro estádio do que significa ser criativo e todos os artistas e escritores da História têm facilidade em aceder a ele. Por isso é que acredito piamente nas histórias que dizem coisas parecidas com Kafka se mijar a rir sempre que olhava para um par de tomates.

O segundo estádio é um de implicação e de reação contra o mundo. Apetece-te perguntar um "porquê?" permanente, que faz com que perante uma situação simples, como, digamos, um amigo que está com problemas com a namorada, comeces por perguntar quais os problemas e acabes a questionar-te sobre a verdadeira natureza do amor e das relações humanas. É o momento de fedelho ingrato da criatividade, o que demonstra uma superação mal resolvida. Não, à Freud, da fase anal e oral, mas da idade dos porquês, que é muito mais fofinho. Pensando bem, talvez isso venha de as perguntas feitas durante esses anos formadores não terem ficado bem respondidas. Outra característica das pessoas criativas, afinal, é que são teimosas. Daí, quando algum apreciador diz que não gosta, vir a tão criativa resposta "era mesmo essa a intenção".

E isso leva-nos ao terceiro estádio, em que as conexões atrás de conexões deixam de ser ocasionais e se juntam na forma de uma filosofia pessoal sobre o mundo e as pessoas. Toda a filosofia exige uma linguagem, porque o pensamento não existe sem palavras, e a linguagem não se fixa sem registo. Portanto, é a própria visão que exige a sua expressão através da linguagem artística. Este é um estádio ao que se ambiciona chegar e cujo valor só pode realmente ser avaliado por outra pessoa que não o autor, porque não adianta de nada dizer "reparem no valor tão grande daquilo que eu fiz, suas grandes bestas". Essa elaboração, por um lado, e esse apreço, por outro, são ambições permanentes do ser criativo que explicam a sua permanente frustração e o fato de com frequência eles não serem mais do que tristes attention freaks. Ainda, ressalve-se, que o sejam com génio.

Obviamente, há uma questão mais profunda que subjaz a tudo isto: por que fazer o que faço? Por que algumas pessoas se mantém no lado operativo e útil da vida e outras preferem andar a discutir criatividade e fixar em papéis e telas e celulóide coisas que lhe saem da cabeça? Uma reportagem que vi há tempos explicava a criatividade através de uma falha - efetivamente, uma falha - que levava o cérebro a não dar respostas diretas aos problemas e o fazia, em contrapartida, encontrar respostas inusitadas e novas para eles. É uma explicação curiosa, que explica o retardo mental de muita gente genial por esse mundo fora (veja-se Galliano). Mas eu prefiro acreditar que a criação de algo que mexe com os nossos sentimentos, preconceitos e, se tivermos sorte, com os fundamentos com que pensamos e vivemos a vida é tão necessária como aquilo que faz o mundo meramente funcionar. Como disse Oscar Wilde no prefácio do Dorian Gray, "podemos perdoar um homem por fazer uma coisa útil não admirável, mas a única desculpa para fazer uma coisa inútil é que alguém a admire intensamente. E toda a arte é bem inútil". E aí está a resposta à pergunta com que comecei este texto: uma pessoa criativa é uma apaixonada fazedora de coisas inúteis. Parece-me tão boa como outra qualquer.

Sobre não saber falar com as pessoas

Eu sou daqueles que têm algum jeito com palavras, não tanto com pessoas. Ou seja, quando inspirado, consigo comunicar bem as minhas idéias e até, quem sabe, divertir ou emocionar os outros. Para mim, comunicar tem sempre um objetivo. Eu quero que esta pessoa se sinta melhor com ela própria ou com o mundo, quero combater o ponto de vista dela ao ponto de ela se sentir humilhada por ter dito tamanha idiotice, quero convencê-la de que há melhores maneiras de pensar nas coisas e na humanidade. Ou, se ela for o Durão Barroso, quero ridicularizá-lo na frente dos outros. Nessa perspetiva, tudo é válido.

Mas entender, em relações ou momentos concretos, o que é que as pessoas querem sentir é sempre um mistério para mim. Um desafio permanente, como um jogo de xadrez que nunca acaba. Esse desencontro entre o conhecimento do objetivo e o da técnica é uma equação que estás sempre a tentar resolver. E por isso às vezes magoas quem não queres, e por isso dizes as coisas erradas.

A tua ingenuidade pode ser de diversa ordem. Não entenderes o que as pessoas querem de ti pode fazer com que peques por excesso ou por defeito, por dizer demais ou por dizer de menos. E, por muito que gostasses de pensar o contrário, entre a sinceridade e a mentira existem muitos níveis. O fato de não teres sentimentos maus dentro de ti contra alguém (exceto, ocasionalmente, o Durão Barroso) não quer dizer nada. Tens constantemente que escolher as palavras. Ou, então, escolher o silêncio. Isso pode significar pecar por defeito. Mas às vezes é a melhor solução.

O passado roubado na algibeira

Eu tive uma banda dos 15 aos 16 anos. Chamávamo-nos Spinning e tocávamos quase só originais. As nossas influências eram Nirvana, Pearl Jam, Rage Against The Machine, Red Hot Chili Peppers, Soundgarden, Faith No More, Rollins Band, Primus, Primitive Reason. Éramos os rockeiros da vila, tínhamos cabelo comprido e, por causa do grunge, não pensávamos muito no que vestíamos.

Uma vez, demos um concerto num bar de Monção. Descarregámos os instrumentos, esperámos que a sala enchesse, tocámos. Tínhamos muitos amigos na vila, que faziam as vezes de fãs encorajados. Era verão, estavam as meninas de Lisboa a visitar a terra dos pais, toda a gente se divertia. E tu sentes-te em cima do mundo durante uma hora. Tens 16 anos, o corpo não te pesa, tens o cabelo comprido para abanar enquanto tocas guitarra. É como se o Hendrix baixasse em ti e te fizesse sentir como ele durante esse tempo. Durante uma hora, és a maior pessoa do mundo.

Mas depois o som termina, a tua adrenalina baixa. As pessoas voltam às suas vidas normais, viram-te as costas e continuam a conversa que estavam a ter antes. E tu carregas os instrumentos para o carro, fechas a porta e pensas: terminou. Num momento, és o maior. No outro, és um merdas. Ficas à espera do próximo concerto, se houver, e a tentar reproduzir o sentimento durante os ensaios. Nunca é a mesma coisa.

Isso foi uma lição para a vida. Sempre que te sentires o maior, lembra-te que em breve te sentirás um merdas. O grande segredo é não deixar que o concerto termine. Mas isso, lá está, não depende de ti.

MEDIANO vencedor no Festival Silêncio

http://vimeo.com/25535394
A curta metragem que eu e o Victor Lemos preparámos para o Filmagens, do Festival Silêncio, arrecadou ontem o Prémio do Público e o Primeiro Prémio do júri. Estamos muito contentes e agradecemos a todos os que nos apoiaram, incentivaram, votaram ou simplesmente nos manifestaram o seu apreço, seja lá por que forma. Significou muito para nós.

Eu tenho que dar uma palavra especial aos Social Smokers. Sempre pensei que ler em público não é um mero ato em que um público aprecia, passivo, um texto lido para ser admirado, mas tem de ser necessariamente uma forma de entretenimento no mais nobre que a palavra implica. Por muito slam que tenha feito ou continue a fazer, foram os meus concertos com o Alex Cortez, o Silva o Sentinela, o B.I.R.U.L.ex, o Zé Lencastre, o João Pedro Gomes e, mais tarde, com o Ivo Palitos e o Sérgio Costa que fizeram com que realmente começasse a pensar no público que tinha à frente e nas soluções para que o ato performático ganhasse força junto dele. O MEDIANO, que adapta o texto com que abri a minha performance na Casa das Rosas em Abril, é um exemplo dessas soluções. Não o teria feito assim se os Smokers não me refrescassem a cabeça. Um grande abraço, amigos.

MEDIANO a concurso no Festival Silêncio


Depois de ter sido exibido na sexta-feira no Filmagens, no Festival Silêncio, MEDIANO, a curta-metragem que gravei com o meu grande amigo Victor Lemos, está a concurso para o Prémio de Público. Para votar, é só clicar na imagem acima (ou aqui) e fazer "Like" ali do ladinho direito.

O Festival Silêncio é um evento pelo qual tenho muito carinho. Foi lá a primeira vez que fiz slam e que conheci o resto dos Social Smokers. Foi ele que me permitiu ir ao European Poetry Slam em 2009, a Berlim, e chegar à final para dizer o meu poema à frente de 500 pessoas. É uma honra ter um filme lá. E é uma honra estar a pedir-vos para o verem.

Retrato do artista enquanto Zapeão


Foto de Tide Gugliano
Fazer crescer uma cena nunca é tarefa fácil, ainda para mais se estivermos a falar de algo que, pura e simplesmente, não existe. Apesar do tamanho e do cosmopolitismo de São Paulo, o slam só começou a ser organizado enquanto tal (poesia + performance + competição) há cerca de três anos, quando a Roberta Estrela D'Alva organizou os seus comparsas do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, ali pertinho da Pompéia. Como o mundo é um penico, a Roberta é amiga desde a infância do Newton Cannito, um dos maiores responsáveis pela minha vinda para o Brasil, e, interessada pela proposta dos Social Smokers, aproveitou os conhecimentos comuns para meio que se auto-convocar para nos acompanhar quando a banda esteve no Brasil em Novembro do ano passado. Foi então que conheci o Núcleo e o ZAP!, a noite de slam mensal que eles organizam. Já lá tinha ido uma vez, mas só como jurado - fiquei na mesma mesa de um gaúcho e, curiosamente, éramos sempre os dois a dar as notas mais baixas, o que nos fez temer pela nossa integridade física face ao pessoal da Zona Leste. Ainda bem que poesia é amizade. Mas aconteceu que, na última quinta feira, deu-me uma vontade de fim de tarde de ir à competição e, contra todas as minhas expetativas, a noite acabou comigo a ser o Zapeão, ao mesmo tempo que a Roberta Estrela D'Alva sacava o terceiro lugar na Copa do Mundo do Slam em Paris. Ganhar é sempre bom, mas os minutos em que ouvi a poeta e atriz Ana Roxo fazer este poema foram o momento de slam ou recitais ou saraus ou leituras públicas ou seja lá o que for que mais me emocionaram na vida. Por isso, deixo-o aqui, desejando uma vida longa ao ZAP!
Comecei a escrever aquele texto triste

talvez não seja triste ou não tão triste
quanto deveria ser um texto sobre eu e você
talvez só seja assim, melancólico
com medo do sofrimento
que viria, e veio devagar
começa assim de repente
meio no meio de uma tarde chuvosa e com enchente
depois tem um espaço onde cabe o silêncio
e por onde podem escorrer umas lágrimas
não tem fluxo o texto
começa de supetão
e para um tempão num vácuo
depois fica bonito a beça
eu falo de cores que eu conheço e queria te contar
conto de coisas que vi e vivi
e te faço convites incríveis
descrições inimagináveis de lugares em que estive sozinha
falo de montanhas que são ondas, deuses hindus, mitologias inventadas
animais fantasiosos, deuses pagãos, sagas heróicas,
dançarinas de vários braços, de um homem com três bocas cantantes
do dia em que o capeta me paquerou
e de como os deuses as vezes descem a terra e brincam com a gente
conto quase tudo de impensável
e nessa parte eu te impressiono.
Depois vai ficando mais cafona,
porque meu repertório não é tão bom assim.
Mais pra frente fica triste e bonito de novo.
Eu vou dizendo que te amo de vários jeitos
primeiro clichês e mais pra frente novos,
que nem aquele dia
que eu disse eu te amo só com o olho,
no meio de uma frase e você não esperava
(porque eu passei grande parte da nossa história
inventando jeitos diferente de dizer eu te amo
então nada mais justo do que colocar isso naquele texto)
Coloco um mar no meio, pra deixar mais água
e nessa hora fica feio, um pouco infantil
eu me fragilizo muito e digo
que foi tudo culpa minha
como se a culpa existisse mesmo e eu acreditasse nisso
mas é só pra você se impressionar de novo
e ficar mais um pouco do meu lado.
Mas nem assim adianta
você parte mesmo assim
e talvez até por causa disso
(no final dos meus textos você sempre vai embora)
mas aí no texto eu minto
dizendo te dei um mais beijo
e disse tchau com muita dignidade
(e não chorei nem fiquei aflita
nem me joguei no chão
e quis tomar formicida)
ou talvez eu coloque uma piada
não sei, eu ainda não terminei o texto.
Mas acho que no fim
eu saio com uma desculpa esfarrapada
dizendo por exemplo
que eu ainda não terminei.

Canções do exílio: "São Paulo 451"

httpv://www.youtube.com/watch?v=Dj9bhGxlyIg
Belle Chase Hotel foi das bandas que mais acompanhei. Estive em 1998 em Paredes de Coura, quando eles foram o primeiro grupo não editado a tocar no palco principal. Fossanova foi a minha banda sonora para os tempos iniciais de Coimbra, numa altura em que a cena musical lá se dividida entre a pop de cabaret deles e o rockabilly dos Tédio Boys. O segundo álbum, La Toilette des Étoiles, sumarizava na perfeição o espírito que se sentia por aqueles tempos. E, curiosamente, quando em Março deste ano andei por Portugal a atuar com os Social Smokers, o próprio Jp Simões (vocalista da banda, entretanto desfeita) veio-nos acompanhar nalguns concertos. Por isso, companhia por companhia, eles estiveram sempre lá. Cantei São Paulo 451 várias vezes por aqui, principalmente em coro com amigos portugueses, para provar aos brasileiros que há canções portuguesas em PT-BR. Pelo menos uma, vá. E, não, o Roberto Leal não conta.

Canção: São Paulo 451
Intérprete: Belle Chase Hotel
Álbum: La Toilette des Étoiles

Letra:
Naquela praça suja com merda de pombo,
patrulhada pelo sexo,
ele chega às quatro
polindo o sapato
p'ra vender o seu amplexo

E os homens passam,
notam seu bigode,
mas na coxa se extravasam.
Veio sua amiga,
a loira José,
convidando para o café.

E ao segundo brande,
já José se expande,
esboroando seu baton:
"Amanhã não estaremos aqui,
veja se bebe um pouco e sorri
tira esses olhos do chão!
O futuro é lindo: eu já vi!
E o avião vai directo para lá!
Vamos embora dessa aflição!".

E Manuel morena
tomou os seus calmantes
por causa dos joanetes.
E disse cansado que estava assustado
pois nunca tinha voado:
"E se há um acidente?
E se o passaporte?
Será que não sentes o medo da morte?
Me dá um cigarro!
Me dói a cabeça!
P'ra quê tanta pressa?
E a depilação?".

"Amanhã não estaremos aqui
veja se bebe um pouco e sorri
tira esses olhos do chão!
O futuro é lindo: eu já vi!
E o avião vai directo para lá!
Vamos embora dessa aflição!".

No dia seguinte
num canto da praça
quem passou podia ver
duas prostitutas tão deselegantes
acenando p'ra você.

O primeiro ato da ópera Deu-la-Deu: vídeo

httpv://www.youtube.com/watch?v=Eqy1yE1O1n8&feature=share
A qualidade de som e imagem não é a melhor, mas a Valença TV gravou a ópera Deu-la-Deu na íntegra. É uma ideia bem aproximada do que foi o espectáculo que aconteceu no sábado nas muralhas de Monção e que será interpretado na íntegra a 12 de Agosto.

Canções do exílio: "Meu Mundo Caiu"

http://www.youtube.com/watch?v=f_2MtwlnLg0
Maysa Matarazzo, ou simplesmente Maysa, casou-se aos 17 anos com um homem de 34 duma família bem numerosa - numerosa, entenda-se, de uns bons biliões de dólares. Felizmente, ela teve o bom senso de se separar 4 anos depois, porque ele não aprovava a sua carreira artística. Acabaria por se tornar uma das cantoras mais carismáticas e uma das mulheres mais desejadas do Brasil, o que talvez fosse fruto de um truque que ela fazia em palco chamado "cara de quem quer dar". Pelo menos, foi o que li numa entrevista recente a uma cantora a quem ela ensinou a habilidade. Desse ou não desse, quando interpretava Meu Mundo Caiu Maysa tinha uma violência e uma arrogância fora do comum, o que talvez tenha a ver com o facto de ela ter lançado esta canção imediatamente a seguir à sua separação. Há dignidade na sua interpretação, a de alguém que não se deixa rebaixar. É esse confronto - ao contrário da submissão que, por exemplo, a sua equivalente portuguesa Simone de Oliveira tem em Sol de Inverno - que a torna única.

Canção: Meu Mundo Caiu
Autor e intérprete: Maysa

Letra:
Meu mundo caiu
E me fez ficar assim
Você conseguiu
E agora diz que tem pena de mim

Não sei se me explico bem
Eu nada pedi
Nem a você nem a ninguém
Não fui eu que caí

Sei que você me entendeu
Sei também que não vai se importar
Se meu mundo caiu
Eu que aprenda a levantar

O primeiro ato da ópera que eu escrevi estreia amanhã


Uma ópera popular, invocando Deu-La-Deu Martins, heroína de Monção, vai ser apresentada no sábado nas muralhas da vila, contando com a inédita participação de 200 pessoas, inclusive grupos de bombos e gaitas de foles.
Escrevi Deu-la-Deu a pedido da Câmara Municipal de Monção, a minha terra natal. O curioso disto de se mudar de terra é que, ao mesmo tempo, eu já deixei a terra e, ao mesmo tempo, eu nunca a deixarei. Ou seja, já não sou monçanense, mas, ao mesmo tempo, monçanense é aquilo que eu nunca deixarei de ser. Por isso, quando me foi proposto que revisse o mito fundador da minha vila para a comemoração dos 750 anos do foral com que D. Afonso III a reconheceu como município, eu não podia deixar de refletir isso. Como poderia repetir uma história que ouvi vezes sem conta, sobre a qual já seria difícil ter algum poder de objetividade, e, ao mesmo tempo, torná-la interessante para quem também já a ouviu vezes sem conta? Fiz análise histórica, vi tratados de genealogia espanhóis e portugueses, almanaques com centenas de anos - e, depois, quando já tinha bem separada a História da lenda, ficcionei a minha ficção por cima para a fazer universal. A proposta de encenação das Comédias do Minho, integrando os grupos corais e de bombos locais, faz ainda mais sentido, faz todos os sentidos. Agora, ela já não é monçanense, mas, ao mesmo tempo, monçanense é aquilo que ela nunca deixará de ser.

O primeiro ato da ópera Deu-la-Deu será interpretado amanhã, sábado, em Monção. Vão vê-la, pois eu não posso.