maio 2010

Archive for maio 2010

Tou ficando atoladinho

Um autocarro de São Paulo não passa em muitas ruas. Primeiro, porque se é autocarro em São Paulo é ônibus. Depois, porque as avenidas são tão longas que é mais fácil fazer piscinas do que começar o corta-mato. Subir e descer a Paulista à procura da minha paragem foi um passatempo muito agradável para a minha manhã.

Por falar em Paulista, depois de me ter sentido como um alcoólico no meio da maior adega do mundo, prometi a mim mesmo que não voltava à Livraria Cultura. Mas aquela autobiografia do Tom Zé estava mesmo com cara de quem não se ia ler sozinha.

Um tecnólogo é um técnico, pereba é um atleta mau, não tem choro nem vela é não ter alternativa, um dia pode ser pipi se for problemático e isso é massa véio se for bom, porque se for mau é paia - assim parece que os traficantes de droga definiram. Os polícias andam com rojões, mas quem comem são os outros.

Felizmente, encontrei café numa lanchonete - muito insípido e muito doce, mas já estava prevenido. O senhor era simpático, principalmente porque lhe comprei pão de queijo, uma linguiça, um pastel de carne dentro do que sabia a pão de leite e uma paçoquinha. O jet-lag vai melhorando dia após dia. Hoje o meu cérebro já só estava três horas adiantado.

Brasil via Alemanha

A ver a fila que se fazia para o avião em Frankfurt, percebi: isto é outra gente. Todas as cores, tamanhos e expressões e todos a falarem a mesma língua, a partilharem o mesmo país. Num guia que li há dias, dizia-se que o passaporte brasileiro é dos mais cobiçados no mercado negro, porque qualquer um passa por brasileiro. É algo que eles têm em comum com os habitantes do Vaticano, tirando o facto de estes usarem hábitos e não treparem com adultos. É algo que não têm em comum com os habitantes de Frankfurt, que são invariavelmente mulheres, mal-dispostas e trabalhadoras em estações e aeroportos. Nunca vi gente com tão má vontade de dar indicações, esclarecer, ser simpático. E gostava que acabassem já com o mito de que os alemães são um povo muito organizado. Eles não são organizados, eles organizam é tudo segundo uma lógica que está muito clara na cabeça deles, tão clara que questioná-la é questioná-los a eles. Mas os homens não são tão maus. Enquanto esperava a ligação, comi um gulash, umas salsichas (frankfurter, evidentemente) com salada de batata, uma cerveja e um expresso, tudo servido por um homem tão simpático que não hesitou em trazer-me tudo ao mesmo tempo. Talvez sejam assim os frankfurtianos: prestáveis, mas toscos. Isso, claro deve ser chato para as mulheres. Assim fica tudo explicado.

Em trânsito

Tu gostas da viagem. Sempre gostaste de aeroportos e estações, porque um aeroporto é sempre um local onde alguma coisa começa, seja a viagem ou tudo aquilo que vem a seguir. Quando vais levar alguém, gostas de ficar sempre mais um bocadinho, antes ou depois, só para ver as pessoas passar, notar-lhes as expressões e pensar no que estará a começar para elas. O problema, portanto, não é a viagem, mas o facto de a cabeça não parar e de te estar constantemente a anotar os fins. Esta é a última viagem de Metro. Este é o último jantar no restaurante aonde costumas ir quando estás sozinho. Esta é a última vez que passas a esfregona no chão de casa. A última coisa que entra nas malas, a última coisa a imprimir, a última mensagem. Esvazias a carteira, tiras tudo aquilo que não te vai fazer falta ou já estava a mais e ia continuando lá por inércia, e pensas "Metade das coisas que trago comigo só servem para deitar fora" e tu pensas "O que mais poderia caber nesta divisão?". Trabalho? Afectos? Memórias? Mas depois há o momento em que paras de pensar e as coisas deixam de acabar. É quando a viagem começa. E por isso mesmo esta é a última palavra deste texto.

O criado brasileiro

Naquela fase de me ir orientando, deparo-me com o seguinte anúncio: O quarto é bem iluminado, tem uma cama box casal, uma mesa para tv e um criado mudo. Luz e mesa para tv é claro; cama box casal também se percebe; mas criado mudo?

Saber que é uma mesa de cabeceira é muito menos excitante do que  a perspectiva de, no escuro, ir depositando porcarias na mão de um desgraçado que não consegue dizer "que merda do trabalho".

Papa

Um grupo de católicos espanhóis teve um acidente. O autocarro que os trazia a Fátima e ao Papa Bento XVI ia entrar numa estação de serviço, falharam-lhe os travões e espetou-se contra o rail de protecção. Aparentemente, iam todos a rezar e o meu comentário irónico foi logo se calhar, não estavam a rezar bem, mas o líder do grupo apareceu então a dar a perspectiva também razoável de que foi graças à Senhora de Fátima que não houve consequências de maior, para além de uma rapariga com um hematoma nas costas e outra que teve uma quebra de açúcar. Assim, só essas duas raparigas estariam a rezar mal. A Senhora de Fátima não os livrou de serem espanhóis, mas isso já é outra conversa. Ironias à parte, não se pode ter senão respeito por quem é capaz de fazer centenas de quilómetros, castigando corpo e alma, para se despojar, para suplicar algo com toda a força possível. Os putos dos Tokio Hotel têm muito a aprender.

Monção

Esta terra é três cores: verde, castanho e cinzento. Vêm das árvores, da vinha, da terra e do céu. Se fecho os olhos e me quero lembrar, a imagem é a de encostas cheias de pinheiros e fasco, atravessadas por caminhos de terra batida que, do que devem ter custado a conquistar, bem podiam ser feridas abertas no chão. O som da televisão ao meu lado ou do rádio na cozinha a atravessarem o silêncio enorme, aquele em que aprendi a pensar, a inventar histórias na minha cabeça, a fechar-me. Sabemos que estamos todos sozinhos no meio deste silêncio, somos desconfiados. As ligações com os outros são acidentais, corpos que se encontram ao calhas no meio de percursos aleatórios. Uma vez disseram-me que Torga chamou ao Minho o inferno verde, mas isso não está certo. O Inferno deve estar cheio de ruído. Em Monção não pára de chover.

A vigília

Quem escreve online há já uns anos sabe que esta coisa de se justificar silêncios é desculpa de mau postador. Em blog recente, então, é como não dar de comer a um bebé, a versão Internet da incubadora de Santana Lopes. Mas não tive outra hipótese. Nas últimas três semanas, o meu mundo tem sido uma sucessão de contratos, marcações, cartões, assinaturas, filas, senhas, vistos, passaportes, seguros, malas, cerimónias, e-mails, bilhetes, pagamentos, vacinas, viagens, talões, recibos e facturas. Aparecem-me flutuando, como se eu estivesse num sonho, sem conseguir prever a ordem com que preparar as placagens. E, ainda assim, vou ouvindo os anos dizer-me na cabeça não te canses com a preparação, porque vais precisar de força depois ou aguenta-te, fofo, tens de ganhar o céu de alguma forma. Nos momentos mais baixos, em que o stress e o cansaço me fazem doer os olhos se os viro muito para os lados, olho para o que aqui está e pergunto vale a pena só para poder responder logo que não tenho outra opção, porque, se queres entrar no jogo, tens de saber que podes chegar ou não ao outro lado e, se tiveres sorte, chegas esmurrado e a sangrar dos pés à cabeça, mas com a quantidade de língua suficiente para poderes dizer consegui. Não tinha de ser assim, talvez, mas se não for a doer não sentias nada. Não vou estar aqui com merdas, podia dizer que o melhor que faço é escrever, mas o que quero dizer não é bem isso, é que, do que fiz, o melhor foi a escrever. A Estrada Curva, A Peste, o João Ícaro, A Chorona, As Portas, a Agenda, o Cidadão, a Passagem, o 13 de Março. Algumas tu conheces, outras não, nenhuma é perfeita, mas em todas houve sempre pelo menos uma coincidência entre o meu gosto e o de outra pessoa qualquer. E esse apreço é uma coisa tão rara, um modo tão profundo de conseguires comunicar com outrem que nem conheces e nem vais conhecer, que tu sabes que não queres procurar mais do que isso: mais oportunidades de perceber que o caminho que os outros fazem também passou pelo que fizeste dentro de ti. É por isso que vou. Se parar, não valho a pena para ninguém. Pelo menos, não a valho para mim.